I Comprehensão actual do suffragio politico. Opiniões de Dupont White, Bluntschli, Wirouboff, Oliveira Martins. Antinomias d'aquelle facto social; diversas soluções para as reduzir; a que deve ser preferida. – II Estado da questão tratada n'este folheto: a votação deve ser uninominal, ou de muitos nomes? É, fundamentalmente, uma questão de anthropologia. A philosophia naturalista do seculo XVIII em contradicção com a moderna anthropologia. – III Historia da lista multipla (scrutin de liste) na França e entre nós. Tem por si as melhores tradições democraticas. Juizo de Gambetta sobre a revolução de 1848. Como a questão eleitoral foi considerada no nosso parlamento em 1859. – IV A lista multipla é preferivel ao voto uninominal. Tem, principalmente, a vantágem de inverter o suffragio, tornando-o indirecto. Porque foi inefficaz na constituição da assembléa franceza de 1871. Objecções contra a lista multipla. – V Analyse da primeira objecção. O suffragio directo é uma illusão; se tem de ser dirigido, antes o seja pelas grandes commissões dos partidos do que pelas influencias locaes. Este regimen produz, quasi sempre, as melhores assembléas legislativas. Importancia da imprensa n'este modo de eleger; sua justificação. – IV Analyse da segunda objecção. A lista multipla rompe a intimidade do eleitor com o seu representante. O sentimento pessoal não é da essencia do voto. Aquella intimidade produz as seguintes consequencias: rebaixa a lucta eleitoral, permitte a seducção pelo dinheiro, obriga os eleitos a um servilismo indecoroso. Demonstração. – VII É o regimen mais proprio para a formação de parlamentos fortes e de governos viaveis. É esta a sua maior excellencia n'este momento da civilisação occidental. Apreciação rapida do estado da França, da Italia, da Hespanha e de Portugal. A representação das minorias é compativel com a fortaleza dos governos. A lista multipla, só por si, permitte, até certo ponto, aquella representação. Demonstra-se isto. – VIII Commentario a uma phrase de Lord Derby. Considerações sobre o presente estado da civilisação politica. Perigos das agitações muito repetidas. Incerteza do futuro. Gravidade d'esta incerteza.
O suffragio politico, que é, desde muito, um facto consummado na vida dos povos mais cultos, está ainda longe de ser um raciocinio triumphante uma verdade positivamente liquidada nas especulações da sciencia.
Em quanto dominou o mundo a philosophia absoluta, que tinha a intuição por methodo principal, a discussão d'aquelle facto foi apaixonada, levou alguns interessados n'ella á prova extrema do martyrio, chegou a determinar uma formidavel revolução, que é um dos acontecimentos culminantes d'este seculo; mas a ponderação das suas difficuldades praticas e o verdadeiro conhecimento da sua indole, antinomica com irrecusaveis condições sociaes, são obra de outra escola, que antepõe a analyse ao enthusiasmo inconsciente e a realidade das cousas ao optimismo dos espiritos.
E não são já sómente os discipulos d'essa escola, os puritanos seguidores da philosophia experimental, que vêem no suffragio politico as difficuldades, que elle importa, e as contradicções, que elle encerra. Graças á influencia dos novos methodos, sentida ainda por aquelles que fazem gala de os combater, essa instituição do Direito Publico perdeu o falso prestigio sentimental que a aureolava, e é geralmente tida hoje pela mais perigosa de todas as funcções sociaes.
Ao invez de tantos que saudaram o suffragio generalisado como aurora d'uma liberdade viavel e fecunda, insignes publicistas de todos os matizes são attestes em consideral-o um mal gravissimo, a que urge applicar remedio. Dupont White qualifica a democracia de contra-senso, de pura chimera, porque entrega e confia o que a sociedade tem de mais difficil nas suas obras a quem é mais incapaz entre os seus membros, e para a mais alta das funcções, que é o governo, destina o mais grosseiro de todos os orgãos, o suffragio do povo!1. Bluntschli friza muitas vezes a mesma idéa, e, na violenta apprehensão que lhe causam os perigosos abusos do voto universal, propõe, como forçoso antecedente ao exercicio dos direitos politicos, o que elle chama consagração civica, uma especie de chrisma administrado pelo Estado, n'uma festa solemne, aos que a edade vai collocando na categoria de cidadãos2. Wirouboff, o energico continuador de Littré, teve ainda ha pouco a coragem de dizer em plena França, no paiz classico do suffragio universal, que este, quando não era uma flagrante contradicção, não passava d'uma inanidade, a que a rhetorica constitucional revestia, a seu talante, toda a sorte de roupagens3. E, para produzirmos uma auctoridade nossa, transcrevemos as seguintes palavras de Oliveira Martins, o poderoso e brilhante escriptor, que dia a dia se habilita para exercitar gloriosamente o primado das letras portuguezas: «O descredito chegou a um ponto que os maiores amigos do systema são hoje os inimigos da liberdade. Os cesaristas são os primeiros defensores do suffragio universal, que a democracia, como partido, não teve ainda a coragem de confessar que é uma burla»4.
Por outro lado, a legislação eleitoral muda, transforma-se sempre dentro de curtos periodos, revelando-se assim frequentemente a desillusão padecida pelos povos, que teem de repellir, por inefficazes, as suas creações no dia seguinte ao da producção d'ellas. A propria Inglaterra, tão adherente ás suas tradições de toda a ordem, excepciona, a este respeito, o temperamento da sua raça.
Que explicação tem este grave conflicto, em que estão empenhados os mais distinctos entendimentos e os mais importantes interesses do nosso tempo? Tem a seguinte: a imprudentissima antecipação de reformas, que o povo, a ultima e mais numerosa classe da sociedade, está longe de comprehender e executar, e a manifesta impossibilidade de restringir faculdades, que a lei e o costume consagraram como direitos.
É certo que na Suissa e nos Estados-Unidos o suffragio universal funcciona menos imperfeitamente; mas o povo d'essas duas florescentes republicas tem uma longa educação democratica, e, sobre tudo, uma larga descentralisação administrativa e politica, e por isso o voto individual dos seus cidadãos satisfaz, pelo menos, a estes requisitos de todo o legitimo suffragio: interesse immediato e especialisação do saber. Nos outros paizes o regimen unitario annulla estas duas condições, e causa lastima, profunda lastima, ver como a humanidade culta relucta ahi infructuosamente com a fatalidade d'um legado historico, que não sabe aproveitar e não póde repellir!
Partindo da mesma comprehensão d'este phenomeno social, são diversissimas as direcções seguidas pelos pensadores que consideram e sentem as difficuldades do problema. Uns limitam-se, no maior desalento, á negação pessimista de todo o progresso. Outros, tão insensatos e estereis como aquelles, esperam que o suffragio universal se curará a si mesmo todos os males, como se fosse alguma cousa mais do que um instrumento material, manejavel a quaesquer impulsos! Não falta quem se contente com ostentosos programmas das reformas a operar para que o voto politico seja uma realidade efficaz, esquecendo-se de que taes reformas só em muito distante futuro são realisaveis, e de que, no entretanto, a suspensão do suffragio universal é absolutamente impossivel. Ha, emfim, alguns espiritos melhormente avisados, que, vendo as cousas como ellas são, curam de applicar desde já ao suffragio universal um systema de modificações que o torne mais racionavel na sua organisação e menos damnoso nos seus effeitos. Para estes toda a discussão dos fundamentos do suffragio é abandonada por ociosa e inutil. Elles sabem que são totalmente indifferentes ao interesse real dos povos as controversias apparatosas, que podem entreter os ocios d'uma sabia academia, mas não accrescentam um ceitil á economia das sociedades, nem despontam a rudeza das infimas classes, que, sem saberem para quê, nem porquê, estão hoje investidas dos supremos poderes.
Acceito o pensamento d'este grupo de pensadores, e já procurei servil-o formulando e desenvolvendo a grande verdade da representação proporcional5; e hoje continúo o primeiro trabalho, examinando uma questão, tambem eleitoral, que a França retomou ainda ha pouco, e exhibiu ao mundo n'aquella magnifica fórma com que esta gloriosa nação avulta e sobredoira sempre todos os assumptos que a impressionam sériamente.
Esta questão versa sobre a unidade ou multiplicidade de nomes na lista de cada eleitor.
O suffragio politico é concedido para a formação de assembléas legislativas, ou de corporações incumbidas da administração local. Para que elle produza, pelo melhor modo, o seu resultado, qual d'estas duas cousas será mais conveniente: a votação de cada eleitor n'um só nome, destinado a representar um determinado circulo, ou a votação de lista com muitos nomes, que ficam constituindo a representação collectiva d'uma area mais larga?
Do simples enunciado da questão resalta já que ella é de pura fórma, extranha ao que poderia chamar-se, em linguagem antiga, a essencia do suffragio. O que se debate é o valor relativo de dois processos empregados para a consecução da mesma cousa, de dois modos de aproveitar praticamente uma força, que, em qualquer d'elles, subsiste como era.
Não partem da mesma ordem de idéas os que defendem o voto uninominal e os que rompem lanças em defesa da lista multipla. Aquelles preoccupam-se mais do interesse e da competencia do eleitor; estes visam principalmente á melhor constituição das assembléas politicas. Os primeiros representam, n'esta questão, a escola que considera o suffragio como um direito; os segundos pertencem á que considera o voto politico, não como um direito do homem, mas como o privilegio do cidadão, subordinado aos interesses geraes do Estado.
Diga-se de passagem que esta distincção tem um grande sabor metaphysico. Contra a comprehensão do suffragio como um direito insurge-se a anthropologia, estudada pelos modernos processos; contra a definição d'elle como privilegio levanta-se a historia da sua generalisação, póde dizer-se que até ao limite extremo, nos mais adeantados povos da Europa e da America.
É á philosophia naturalista do seculo XVIII que se deve a idéa de que todos os homens, pelo só facto de serem homens, devem ter egual participação no governo das sociedades. A declaração dos direitos do homem e do cidadão, com que abre a constituição franceza de 1793, consagra, no art. 6.º, este principio: a liberdade tem por fundamento a natureza. Esta phrase vem da Encyclopedia.
Mas a natureza, como a entendia aquelle seculo, não é qual a descrevem as sciencias de hoje. Era então um mixto de factos positivos e de abstracções idealistas, um conceito absoluto de que era facil deduzir as mais ousadas consequencias. E passava-se da natureza para a sociedade, importando ao regimen d'esta as mesmas illusões egualitarias que a sciencia consagrava n'aquella. Se a natureza é a mesma em todos os homens, todos os homens devem ter os mesmos direitos politicos. Era este o raciocinio, sympathico ás inferioridades sociaes, fulminante para as tradições estabelecidas, excellente como instrumento de negação, mas falso, falsissimo, como base da nova ordem de instituições, que era necessario edificar sobre os escombros do passado.
O naturalismo de hoje formúla conclusões oppostas áquella doutrina. Buffon e Diderot são triumphantemente combatidos por Darwin e Haekel. É já verdade incontestada que os progressos da civilisação, differentes de povo para povo, e, dentro do mesmo povo, de classe para classe, produzem novas faculdades naturaes, e que a obra do esforço humano se perpetúa conjunctamente nas paginas da historia e na anatomia do cerebro.
A este modo de explicar as desegualdades sociaes corresponde a doutrina que considera o voto como um encargo, na phrase de Stuart Mill6, ou como um direito publico, por opposição a direito natural, na linguagem de Bluntschli8. O direito de suffragio, diz este illustre professor, não é um direito natural do individuo, como pretende o Contracto Social, mas um direito publico derivado do Estado, existindo só no Estado, não podendo servir contra elle. É como cidadão, não como homem, que o eleitor vota; elle não deduz o seu direito de si mesmo, das necessidades da sua existencia, ou do seu desenvolvimento pessoal, mas da constituição do Estado, e para bem d'este.
Infelizmente as lições da moderna biologia e as profundas theorias dos mais eminentes publicistas vieram tarde, demasiadamente tarde. A revolução politica, que estendeu a todas as classes a faculdade de intervirem na gerencia social, sem consideração pelo seu estado mental e pela sua situação economica, estava já consummada quando vieram a lume aquellas verdades. E uma revolução feita é uma fatalidade indestructivel; deixa sempre na organisação dos povos um elemento novo, bom ou máo, mas tão firme, tão persistente como as camadas geologicas que se sobrepõem na constituição do nosso planeta.