Loe raamatut: «Romancistas Essenciais - Joaquim Manuel de Macedo»
O Autor
Joaquim Manuel de Macedo nasceu em Itaboraí em 1820. Em 1844 formou-se em Medicina no Rio de Janeiro e, no mesmo ano, estreou na literatura com a publicação daquele que viria a ser seu romance mais conhecido, A Moreninha, que lhe deu fama e fortuna imediata.
Além de médico, Macedo foi jornalista, professor de Geografia e História do Brasil no Colégio Pedro II, e sócio fundador, secretário e orador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, desde 1845. Em 1849 fundou, juntamente com Gonçalves Dias e Manuel de Araújo Porto-Alegre, a revista Guanabara, que publicou grande parte do seu poema- romance A nebulosa — considerado por críticos como um dos melhores do Romantismo. Foi membro do Conselho Diretor da Instrução Pública da Corte (1866).
Joaquim Manuel de Macedo abandonou a medicina e criou uma forte ligação com Dom Pedro II e com a Família Imperial Brasileira, chegando a ser preceptor e professor dos filhos da Princesa Isabel. Era amigo íntimo e confidente de uma celebridade da Corte, Manuel José de Araújo Porto- Alegre, Cônsul do Brasil na Alemanha, de quem recebeu uma longa e histórica correspondência pela qual o remetente se declara um espírita convicto e apaixonado pelo credo que na metade do século XIX fora codificado por Allan Kardec, na França.
Sua obra é extensa e fez grande sucesso na época. Havia, entre os críticos, o argumento de que ele abusou do sentimentalismo, muito ao gosto popular, daí seu enorme sucesso de público. Os críticos, entretanto, não negam que Macedo foi cronista aberto e analítico do Rio de Janeiro do final do Império.
Sua grande importância literária está no fato de ser considerado um dos fundadores do romance no Brasil e, certamente, um dos principais responsáveis pela criação do teatro no Brasil. A Moreninha certamente foi considerada a primeira obra da Literatura Brasileira a alcançar êxito de público e é um dos marcos do Romantismo no Brasil.
Lançado em 1844, A Moreninha é tido como o primeiro romance publicado no país, embora tenha sido precedido por O Filho do Pescador, de Teixeira e Sousa, que, entretanto, é tido como uma obra menor, desenvolvida a partir de um enredo pouco articulado e confuso.
Macedo também atuou decisivamente na política, tendo militado no Partido Liberal, servindo-o com lealdade e firmeza de princípios, como o provam seus discursos parlamentares, conforme relatos da época. Durante a sua militância política foi deputado provincial (1850, 1853, 1854-1859) e deputado geral (1864-1868 e 1873-1881). Nos últimos anos de vida padeceu de problemas mentais, morrendo pouco antes de completar 62 anos.
A Moreninha
Duas palavras
Eis ahi vão algumas paginas escriptas, ás quaes me atrevi dar o nome de —ROMANCE. —Não foi elle movido por nenhuma dessas tres poderosas inspirações, que tantas vezes soem aparar as pennas dos authores: —gloria, amor e interesse—: d'esse ultimo estou eu bem a coberto com meus vinte e tres annos de idade; que não é na juventude que pode elle dirigir o homem: a gloria, só se andasse ella cahida de suas alturas, rojando as azas quebradas, me lembraria eu, tão pela terra que rastejo, de pretender ir apanhal-a: a respeito do amor não fallemos; pois, se me estivesse o buliçoso a fazer cocegas no coração, bem sabia eu que mais proveitoso me seria gastar meia duzia de semanas aprendendo n'uma sala de dança, do que velar trinta noites garatujando o que por ahi vai. Este pequeno romance deve sua existência somente aos dias de desenfado e folga que passei no belo Itaboraí, durante as férias do ano passado. Longe do bulício da corte e quase em ócio, a minha imaginação assentou lá consigo que bom ensejo era esse de fazer travessuras, e em resultado delas saiu a Moreninha.
Dir-me-ão que o ser a minha imaginação traquinas não é um motivo plausível para vir eu maçar a paciência dos leitores com uma composição balda de merecimento e cheia de irregularidades e defeitos; mas que querem? Quem escreve olha a sua obra como seu filho, e todo o mundo sabe que o pai acha sempre graças e bondades na querida prole.
Do que vem dito concluir-se-á que a Moreninha é minha filha: exatamente assim penso eu. Pode ser que me acusem por não tê-la conservado debaixo de minhas vistas por mais tempo, para corrigir suas imperfeições; esse era o meu primeiro intento. A Moreninha não é a única filha que possuo: tem três irmãos que pretendo educar com esmero, e o mesmo faria a ela; porém esta menina saiu tão travessa, tão impertinente, que não pude mais sofrê-la no seu berço de carteira e, para ver-me livre dela, venho depositá-la nas mãos do público, de cuja benignidade e paciência tenho ouvido grandes elogios.
Eu, pois, conto que, não esquecendo a fama antiga, o público a receba e lhe perdoe seus senões, maus modos e leviandades. E uma criança que terá, quando muito, seis meses de idade; merece a compaixão que por ela imploro; mas, se lhe notarem graves defeitos de educação, que provenham da ignorância do pai, rogo que não os deixem passar por alto; acusem-nos, que daí tirarei eu muito proveito, criando e educando melhor os irmãozinhos que a Moreninha tem cá.
F tu, filha minha, vai com a bênção paterna e queira o céu que ditosa sejas. Nem por seres traquinas te estimo menos; e, como prova, vou em despedida dar-te um precioso conselho: recebe, filha, com gratidão, a crítica do homem instruído; não chores se com a unha marcarem o lugar em que tiveres mais notável senão, e quando te disserem que por este erro ou aquela falta não és boa menina, jamais te arrepies, antes agradece e anima-te sempre com as palavras do velho poeta:
"Deixa-te repreender de quem bem te ama,
Que, ou te aproveita ou quer aproveitar-te."
Capítulo I: Aposta imprudente
—Bravo! exclamou Fillippe, entrando, e despindo a casaca, que pendurou em um cabide velho; bravo!.... interessante scena! mas certo que deshonrosa fôra para caza de um estudante de medicina, o já do sexto anno, a não valer-lhe o adagio antigo: O hábito não faz o monge.
—Temos discurso!.... attenção!... ordem!... gritárão a um tempo trez vozes.
—Cousa celebre! accrescentou Leopoldo, Fillippe sempre se torna orador depois do jantar.
—E dá-lhe para fazer epigramas, disse Fabricio.
—Naturalmente, acudiu Leopoldo, que, por dono da casa, maior quinhão houvera no cumprimento do recem-chegado; naturalmente: Bocage, quando tomava carraspanas, descompunha os medicos.
— C'est trop fort! bocejou Augusto, espreguiçando-se no canapé em que se achava deitado.
— Como quiserem, continuou Filipe, pondo-se em hábitos menores; mas por minha vida que a carraspana de hoje ainda me concede apreciar devidamente aqui o meu amigo Fabrício, que talvez acaba de chegar de alguma visita diplomática, vestido com esmero e alinho, porém tendo a cabeça encapuçada com a vermelha e velha carapuça do Leopoldo; este, ali escondido dentro de seu robe de chambre cor de burro quando foge, e sentado em uma cadeira tão desconjuntada que, para não cair com ela, põe em ação todas as leis de equilíbrio, que estudou em Pouillet; acolá, enfim, o meu romântico Augusto, em ceroulas, com as fraldas à mostra, estirado em um canapé em tão bom uso, que ainda agora mesmo fez com que Leopoldo se lembrasse de Bocage. Oh! V.S.as tomam café!
Ali o senhor descansa a xícara azul em um pires de porcelana... aquele de porcelana.... aquelle tem uma chávana com bellos lavôres dourados, mas o pires é côr de rosa... aquelle outro nem porcelana, nem lavôres, nem côr azul ou de roza, nem chicara... nem pires...; aquillo é uma tigella n'um prato......
— Carraspana!... carraspana!... gritárão os tres.
— Oh moleque! proseguio Fellippe, voltando-se para o corredor, traze-me café, ainda que seja no pucaro em que o côas; pois creio que, a não ser a falta de louça, já teu senhor m'o teria offerecido.
— Carraspana!.... Carraspana!.....
— Sim, continuou elle, eu vejo que vocês...
— Carraspana!.... Carraspana!.....
— Não sei de nós quem mostra,....
— Carraspana!.... carraspana!....
Seguirão-se alguns momentos de silencio: ficárão os quatro estudantes assim a modo de moças quando jogão o siso. Fellippe não fallava por conhecer o proposito em que estavão os tres de lhe não deixar concluir uma só proposição; e estes, porque esperavão vel-o abrir a boca para gritar-lhe: carraspana!
Enfim, foi ainda Filipe o primeiro que falou, exclamando de repente:
— Paz! Paz!...
— Ah! já?... disse Leopoldo, que era o mais influído.
— Filipe é como o galego, disse um outro; perderia tudo para não guardar silêncio durante uma hora.
— Está bem, o passado, passado: protesto não falar mais nunca na carapuça, nem nas cadeiras,
nem na louça do Leopoldo... Estão no caso... sim...
— Hein?... olha a carraspana...
— Basta! Vamos a negócio mais sério. Onde vão vocês passar o dia de Sant’Ana?
— Por quê?... Temos patuscada?... acudiu Leopoldo.
— Minha avó chama-se Ana.
— Ergo!...
Estou habilitado para convidá-los a vir passar a véspera e dia de Sant'Ana conosco, na ilha de...
— Eu vou, disse prontamente Leopoldo.
— E dois, acudiu logo Fabrício.
Augusto só guardou silêncio.
— E tu, Augusto?... perguntou Filipe.
— Eu?... Eu não conheço tua avó.
— Ora, sou seu criado; também eu não a conheço, disse Fabrício.
— Nem eu, acrescentou Leopoldo.
— Não conhecem a avó, mas conhecem o neto, disse Filipe.
— E ademais, tornou Fabrício, palavra de honra que nenhum de nós tomará o trabalho de lá ir por causa da velha.
— Augusto, minha avó é a velha mais patusca do Rio de Janeiro.
— Sim?... Que idade tem?
— Sessenta anos.
— Está fresquinha ainda... Ora.... se um de nós a enfeitiça e se faz avô de Filipe!
— E ela, que possui talvez seus 200 mil cruzados, não é assim, Filipe? Olha, se é assim, e tua avó se lembrasse de querer casar comigo, disse Fabrício, juro que mais depressa daria o meu "recebo a vós" aos cobres da velha, do que a qualquer das nossas "toma-larguras" da moda.
— Por quem são!... Deixem minha avó e tratemos da patuscada. Então tu vais, Augusto?
— Não.
— É uma bonita ilha.
— Não duvido.
— Reuniremos uma sociedade pouco numerosa, mas bem escolhida.
Melhor para vocês.
— No domingo, à noite, teremos um baile.
— Estimo que se divirtam.
— Minhas primas vão. Não as conheço.
— São bonitas.
— Que me importa?... Deixem-me. Vocês sabem o meu fraco e caem-me logo com ele: moças!... moças!... Confesso que dou o cavaco por elas, mas as moças me têm posto velho.
— E porque ele não conhece tuas primas, disse Fabrício.
— Ora... o que poderão ser senão demoninhas, como são todas as outras moças bonitas?
— Então tuas primas são gentis?... perguntou Leopoldo a Filipe.
— A mais velha, respondeu este, tem dezessete anos, chama-se Joana, tem cabelos negros, belos olhos da mesma cor, e é pálida.
— Hein?... exclamou Augusto, pondo-se de um pulo duas braças longe do canapé onde estava deitado: então ela é pálida?...
— A mais moça tem um ano de menos: loira, de olhos azuis, faces cor-de-rosa... seio de alabastro... dentes...
— Como se chama?
— Joaquina.
— Ai, meus pecados! ... disse Augusto.
— Vejam como Augusto já está enternecido...
Mas, Filipe, tu já me disseste que tinhas uma irmã.
— Sim: é uma moreninha de catorze anos.
— Moreninha! Diabo!... exclamou outra vez Augusto, dando novo pulo.
— Está sabido... Augusto não relaxa a patuscada.
— É que este ano já tenho pagodeado meu quantum satis; e, assim como vocês, também eu quero andar em dia com alguns senhores, com quem nos é muito preciso andar de contas justos no mês de novembro.
— Mas a pálida?... A loira?... A moreninha?...
— Que interessante terceto! exclamou em tom teatral Augusto; que coleção de belos tipos!... Uma jovem com dezessete anos, pálida... romântica e, portanto, sublime; uma outra, loira... de olhos azuis... faces cor-de-rosa... e... não sei que mais; enfim, clássica e por isso bela. Por último, uma terceira de catorze anos... moreninha, que, ou seja romântica ou clássica, prosaica ou poética, ingênua ou misteriosa, há de por força ser interessante, travessa e engraçada; e por conseqüência qualquer das três, ou todas ao mesmo tempo, muito capazes de fazer de minha alma peteca, de meu coração pitorra!... Está tratado... não há remédio... Filipe, vou visitar tua avó. Sim, é melhor passar os dois dias estudando alegremente nesses três interessantes volumes da grande obra da natureza, do que gastar as horas, por exemplo, sobre um célebre Velpeau, que só ele faz por sua conta e risco mais citações em cada página do que todos os meirinhos fizeram, fazem e hão de fazer pelo mundo.
— Bela conseqüência! É raciocínio o teu que faria inveja a um calouro, disse Fabrício.
— Bem raciocinado... não tem dúvida, acudiu Filipe; então, conto contigo, Augusto.
— Dou-te palavra... e mesmo porque eu devo visitar tua avó.
— Sim... já sei... isso dirás tu a ela.
— Mas vocês não têm reparado que Fabrício tornou-se amuado e pensativo, desde que se falou nas primas de Filipe?...
— Disseram-me que ele anda enrabichado com minha prima Joaninha.
— A pálida?... pois eu já me vou dispondo a fazer meu pé de alferes com a loira.
— E tu, Augusto, quererás porventura requestar minha irmã?...
— É possível.
— E de qual gostarás mais, da pálida, da loira ou da moreninha?...
Creio que gostarei, principalmente, de todas..
— Ei-lo aí com sua mania.
— Augusto é incorrigível.
— Não, é romântico.
— Nem uma coisa nem outra... é um grandíssimo velhaco.
— Não diz o que sente.
— Não sente o que diz.
— Faz mais do que isso, pois diz o que não sente.
— O que quiserem... Serei incorrigível, romântico ou velhaco, não digo o que sinto, não sinto o que digo, ou mesmo digo o que não sinto; sou, enfim, mau e perigoso, e vocês inocentes e anjinhos. Todavia, eu a ninguém escondo os sentimentos que ainda há pouco mostrei: em toda a parte confesso que sou volúvel, inconstante e incapaz de amar três dias um mesmo objeto; verdade seja que nada há mais fácil do que me ouvirem um "eu vos amo" , mas também a nenhuma pedi ainda que me desse fé; pelo contrário, digo a todas o como sou; e se, apesar de tal, sua vaidade é tanta que se suponham inesquecíveis, a culpa, certo que não é minha. Eis o que faço. E vós, meus caros amigos, que blasonais de firmeza de rochedo, que jurais amor eterno cem vezes por ano a cem diversas belezas... sois tanto ou ainda mais inconstantes que eu!... Mas entre nós há sempre uma grande diferença; vós enganais e eu desengano; eu digo a verdade e vós, meus senhores, mentis...
— Está romântico!... Está romântico!... exclamaram os três, rindo às gargalhadas.
— A alma que Deus me deu, continuou Augusto, é sensível demais para reter por muito tempo uma mesma impressão. Sou inconstante, mas sou feliz na minha inconstância, porque, apaixonando-me tantas vezes, não chego nunca a amar uma vez...
— Oh!... Oh!... Que horror!... Que horror!...
— Sim! Esse sentimento que voto às vezes a dez jovens num só dia, às vezes numa mesma hora, não é amor, certamente. Por minha vida, interessantes senhores, meus pensamentos nunca têm damas; porque sempre têm damas; eu nunca amei... eu não amo ainda... eu não amarei jamais.
— Ah!... Ah!... Ah!... E como ele diz aquilo!
— Ou, se querem, precisarei melhor o meu programa sentimental; lá vai: afirmo, meus senhores, que meu pensamento nunca se ocupou, não se ocupa, nem se há de ocupar de uma mesma moça durante quinze dias.
— E eu afirmo que segunda-feira voltarás da ilha de... loucamente apaixonado de alguma de minhas primas.
— Pode bem suceder que de ambas.
E que todo resto do ano letivo passarás pela rua de... duas e três vezes por dia, somente com o fim de vê-la.
— Assevero que não.
— Assevero que sim.
— Quem?... Eu?... Eu mesmo passar duas e três vezes por dia por uma só rua por causa de uma moça?... E para quê?... Para vê-ia lançar-me olhos de ternura, ou sorrir-se brandamente quando eu para ela olhar, e depois fazer-me caretas ao lhe dar as costas?... Para que ela chame as vizinhas que lhe devem ajudar a chamar-me tolo, paleta, basbaque e namorador?... Não, minhas belas senhoras da moda! Eu vos conheço!... Amante apaixonado quando vos vejo, esqueço-me de vós, duas horas depois de deixar-vos. Fora disto só queimarei o incenso da ironia no altar de vossa vaidade; fingirei obedecer a vossos caprichos e somente zombarei deles. Ah! ... Muitas vezes, alguma de vós, quando me ouve dizer: "Sois encantadora", está dizendo consigo: "Ele me adora", enquanto eu digo também comigo: "Que vaidosa!"
— Que vaidoso!... te digo eu, exclamou Filipe.
— Ora, esta não é má!... Então vocês querem governar o meu coração?...
— Não; porém eu torno a afirmar que tu amarás uma de minhas primas durante todo o tempo que for da vontade dela.
— Que mimos de amor que são as primas deste senhor!
— Eu te mostrarei.
— Juro que não.
Aposto que sim.
— Aposto que não.
— Papel e tinta: escreva-se a aposta.
— Mas tu me dás muita vantagem, e eu rejeitarei a menor. Tens apenas duas primas: é um número de feiticeiras muito limitado. Não sejam só elas as únicas magas que em teu favor invoquem para me encantar: meus sentimentos ofendem, talvez, a vaidade de todas as belas; todas as belas, pois, tenham o direito de te fazer ganhar a aposta, meu valente campeão do amor constante!
— Como quiseres, mas escreve.
— E quem perder?...
— Pagará a todos nós um almoço no Pharoux, disse Fabrício.
Qual almoço! acudiu Leopoldo. Pagará um camarote no primeiro drama novo que representar o nosso João Caetano.
— Nem almoço, nem camarote, concluiu Filipe; se perderes, escreverás a história da tua derrota; e se ganhares, escreverei o triunfo da tua inconstância.
— Bem, escrever-se-á um romance, e um de nós dois, o infeliz, será o autor.
Augusto escreveu primeira, segunda e terceira vez o termo da aposta; mas depois de longa e vigorosa discussão, em que qualquer dos quatro falou duas vezes sobre a matéria, uma para responder e dez ou doze pela ordem; depois de se oferecerem quinze emendas e vinte artigos aditivos, caiu tudo por grande maioria, e entre bravos, apoiados e aplausos, foi aprovado, salva a redação, o seguinte termo:
"No dia 20 de julho de 18... na sala parlamentar da casa n° ... da rua de..., sendo testemunhas os estudantes Fabrício e Leopoldo, acordaram Filipe e Augusto, também estudantes, que, se até o dia 20 de agosto do corrente ano, o segundo acordante tiver amado a uma só mulher durante quinze dias ou mais, será obrigado a escrever um romance em que tal acontecimento confesse; e, no caso contrário, igual pena sofrerá o primeiro acordante. Sala parlamentar, 20 de julho de 18... Salva a redação".
Como testemunhas — Fabrício e Leopoldo.
Acordantes — Filipe e Augusto.
E eram oito horas da noite quando se levantou a sessão.
Capítulo II: Fabrício em apuros
A cena que se passou teve lugar numa segunda-feira.
Já lá se foram quatro dias: hoje é sexta-feira, amanhã será sábado, não um sábado como outro qualquer, mas um sábado véspera de Sant’Ana.
São dez horas da noite; os sinos tocaram a recolher. Augusto está só, sentado junto de sua mesa, tendo diante de seus olhos seis ou sete livros, papéis, pena e toda essa série de coisas que compõem a família do estudante.
É inútil descrever o quarto de um estudante: aí nada se encontra de novo. Ao muito acharão uma estante, onde ele guarda os seus livros, um cabide, onde pendura a casaca, o moringue, o castiçal, a cama, uma até duas canastras de roupa, o chapéu, a bengala e a bacia, a mesa, onde escreve e que só apresenta de recomendável a gaveta cheia de papéis, de cartas de família, de flores e fitinhas misteriosas: é pouco mais ou menos assim o quarto de Augusto.
Agora ele está só. Às sete horas, desse quarto saíram três amigos: Filipe, Leopoldo e Fabrício. Trataram da viagem para a ilha de... no dia seguinte e retiraram-se descontentes, porque Augusto não se quis convencer de que deveria dar um ponto na clínica para ir com eles ao amanhecer. Augusto tinha respondido: Ora vivam! Bem basta que eu faça gazeta na aula de partos; não vou senão às dez horas do dia.
E, pois despediram-se amuados. Fabrício queria ainda demorar-se e mesmo ficar com Augusto, mas Leopoldo e Filipe o levaram consigo à força. Fabrício fez-se acompanhar do moleque que servia Augusto, porque, dizia ele, tinha um papel de importância a mandar.
Eram dez horas da noite, e nada de moleque. Augusto via-se atormentado pela fome, e Rafael, o seu querido moleque, não aparecia... o bom Rafael, que era ao mesmo tempo o seu cozinheiro, limpa-botas, cabeleireiro, moço de recados e... e tudo mais que as urgências mandavam que ele fosse.
Com justa razão, portanto, estava cuidadoso Augusto, que de momento a momento exclamava:
Vejam isto! ... Já tocou a recolher e Rafael está ainda na rua! Se cai nas unhas de algum beleguim, não é decerto o sr. Fabrício quem há de pagar as despesas da Casa de Correção... Pobre do Rafael! Que cavaco não dará quando lhe raparem os cabelos!
Mas neste momento ouviu-se tropel na escada... Era Rafael, que trazia uma carta de Fabrício, e que foi aprontar o chá, enquanto Augusto lia a carta. Ei-la aqui:
"Augusto. Demorei o Rafael porque era longo o que tenho de escrever-te. Melhor seria que eu te falasse, porém bem viste a impertinência de Filipe e Leopoldo. Felizmente, acabam de deixar-me. Que macistas!... Principio por dizer-te que te vou pedir um favor, do qual dependerá o meu prazer e sossego na ilha de... Conto com a tua amizade, tanto mais que foram os teus princípios que me levaram aos apuros em que ora me vejo. Eis o caso".
Tu sabes, Augusto, que, concordando com algumas de tuas opiniões a respeito de amor, sempre entendi que uma namorada é traste tão essencial ao estudante, como o chapéu com que se cobre ou o livro com que estuda. Concordei mesmo algumas vezes em dar batalha a dois e três castelos a um tempo; porém tu não ignoras que a semelhante respeito estamos discordes no mais: tu és ultra-romântico e eu ultraclássico.
O meu sistema era este:
1º Não namorar moça de sobrado. Daqui tirava eu dois proveitos, a saber: não pagava o moleque para me levar recados e dava sossegadamente, e a mercê das trevas, meus beijos por
entre os postigos das janelas.
2º Não requestar moça endinheirada. Assim eu não ia ao teatro para vê-la, nem aos bailes para com ela dançar, e poupava meus cobres.
3º Fingir e ficar mal com a namorada em tempos de festas e barracas no campo. E por tal modo livrava-me de pagar doces, frutas e outras impertinências.
Estas eram as bases fundamentais do meu sistema.
Ora, tu te lembrarás que bradavas contra o meu proceder como indigno da minha categoria de estudante; e, apesar de me ajudares a comer saborosas empadas, quitutes apimentados e finos doces, com que as belas pagavam por vezes a minha assiduidade amantética, tu exclamavas:
— Fabrício! Não convêm tais amores ao jovem de letras e de espírito. O estudante deve considerar o amor como um excitante que desperte e ateie as faculdades de sua alma: pode mesmo amar uma moça feia e estúpida, contanto que sua imaginação lha represente bela e espirituosa. Em amor a imaginação é tudo: é ardendo em chamas, é elevado nas asas de seus delírios que o mancebo se faz poeta por amor.
Eu então te respondia:
— Mas quando as chamas se apagam, e as asas dos delírios se desfazem, o poeta não tem, como eu, nem quitutes nem empadas.
E tu me tornavas:
— E porque ainda não experimentaste o que nos prepara o que se chama amor platônico, paixão romântica! Ainda não sentiste como é belo derramar-se a alma toda inteira de um jovem na carta abrasadora que escreve à sua adorada, e receber de troco uma alma de moça, derramada toda inteira em suas letras, que tantas mil vezes se beijam.
Ora, esses derramamentos de alma bastante me assustavam; porque eu me lembro que em patologia se trata mui seriamente dos derramamentos.
Mas tu prosseguias:
— E depois, como é sublime deitar-se o estudante no solitário leito e ver-se acompanhado pela imagem da bela que lhe vela no pensamento, ou despertar ao momento de ver-se em sonhos sorvendo-lhe nos lábios voluptuosos beijos!
A inda estes argumentos não me convenciam suficientemente, porque eu pensava: 1.° que essa imagem que vela no pensamento não será a melhor companhia possível para um estudante, principalmente quando ela lhe velasse na véspera de alguma sabatina; 2.° porque eu sempre acho muito mais apreciável sorver os beijos voluptuosos por entre postigos de uma janela, do que sorvê-los em sonhos e acordar com água na boca: beijos por beijos, antes os reais que os sonhados.
Além disto, no teu sistema nunca se fala em empadas, doces, petiscos etc; no meu eles aparecem e tu, apesar de romântico, nunca viraste as costas nem fizeste ma cara a esses despojos de minhas batalhas.
Mas, enfim, maldita curiosidade de rapaz!... Eu quis experimentar o amor platônico, e dirigindo-me certa noite ao teatro São Pedro de Alcântara, disse entre mim: esta noite hei de entabular um namoro romântico.
Entabulei-o, sr. Augusto de uma figa!... Entabulei-o, e quer saber como?... Saí fora do meu elemento e espichei-me completamente. Estou em apuros.
Eis o caso:
Nessa noite fui para a superior; eu ia entabular um namoro romântico; não podia ser de outro modo. Para ser tudo à romântica consegui entrar antes de todos; fui o primeiro a sentar-me quando ainda o lustre monstro não estava aceso; vi--o descer e subir depois, ornado e brilhante de luzes, vi se irem enchendo os camarotes; finalmente eu, que tinha estado no vácuo, achei-me no mundo: o teatro estava cheio. Consultei com meus botões como devia principiar, concluí que, para portar-me romanticamente, deveria namorar alguma moça que estivesse na quarta ordem. Levantei os olhos, vi uma que olhava para o meu lado, e então pensei comigo mesmo: seja aquela!... Não sei se é bonita ou fria, mas que importa? Um romântico não cura dessas futilidades. Tirei, pois, da casaca o meu lenço branco, para fingir que enxugava o suor, para abanar-me e enfim para fazer todas essas macaquices que eu ainda ignorava que estavam condenadas pelo Romantismo. Porém, oh infortúnio!... Quando de novo olhei para o camarote, a moça tinha-se voltado completamente para a tribuna; tossi, tomei tabaco, assoei-me, espirrei e a pequena... nem caso; parecia que o negócio com ela não era. Começou a ouverture e nada; levantou-se o pano, e ela voltou os olhos para a cena, sem olhar para o meu lado. Representou-se o 1º ato... Tempo perdido. Veio o pano finalmente abaixo.
— Agora sim, começará o nosso telégrafo a trabalhar, disse eu comigo mesmo, erguendo-me para tornar-me mais saliente.
Porém, nova desgraça! Mal me tinha levantado, quando a moça ergueu-se por sua vez e retirou-se para dentro do camarote, sem dizer por que, nem por que não.
— Isto só pelo diabo!... exclamei eu involuntariamente, batendo o pé com toda a força.
— O senhor está doido?! disse-me... gemendo e fazendo uma careta horrível, o meu companheiro da esquerda.
— Não tenho que lhe dar satisfações, respondi-lhe amuado.
Tem, sim senhor, retorquiu-me o sujeito, empinando-se.
Pois que lhe fiz eu então? acudi, alterando-me.
— Acaba de pisar-me, com a maior força, no melhor calo do meu pé direito.
— Oh! senhor... queira perdoar!...
E dando mil desculpas ao homem, saí do teatro, pensando no meu amor.
Confesso que deveria ter notado que a minha paixão começava debaixo de maus auspícios, mas a minha má fortuna ou, melhor, os teus maus conselhos me empurravam para diante com força de gigante.
Sem pensar no que fazia, subi para os camarotes e fui dar comigo no corredor da quarta ordem; passei junto do camarote de minhas atenções: era o nº 3 (número simbólico, cabalístico e fatal! repara que em tudo segui o Romantismo). A porta estava cerrada; fui ao fim do corredor e voltei de novo; um pensamento esquisito e singular acabava de me brilhar na mente, e abracei-me com ele.
Eu tinha visto junto à porta nº 3 um moleque com todas as aparências de ser belíssimo cravo da Índia. Ora, lembrava-me que nesse camarote a minha querida era a única que se achava vestida de branco e, pois, eu podia muito bem mandar--lhe um recado pelo qual me fizesse conhecido. E assim avancei para o moleque.
Ah! maldito crioulo... estava-lhe o todo dizendo o para que servia!... Pinta na tua imaginação, Augusto, um crioulo de dezesseis anos, todo vestido de branco com uma cara mais negra e mais lustrosa do que um botim envernizado, tendo, além disso, dois olhos belos, grandes, vivíssimos e cuja esclerótica era branca como o papel em que te escrevo, com lábios grossos e de nácar, ocultando duas ordens de finos e claros dentes, que fariam inveja a uma baiana; dá-lhe a ligeireza, a inquietação e rapidez de movimentos de um macaco e terás frito idéia desse diabo de azeviche, que se chama Tobias.
Não me foi preciso chamá-lo: bastou um movimento de olhos para que o Tobias viesse a mim, rindo-se desavergonhadamente. Levei-o para um canto.
— Tu pertences aquelas senhoras que estão no camarote, a cuja porta te encostavas?...perguntei.
— Sim, senhor, me respondeu ele, e elas moram na rua de... n° ... ao lado esquerdo de quem vai para cima.
E quem são?...
— São duas filhas de uma senhora viúva, que também aí está, e que se chama a Ilma. Sra. d. Luíza. O meu defunto senhor era negociante e o pai de minha senhora é padre.
— Como se chama a senhora que está vestida de branco?
— A sra. d. Joana... tem dezessete anos, e morre por casar.