Futuro Perigoso

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FUTURO PERIGOSO
Mª del Mar Agulló

Título: Futuro perigoso

© Mª del Mar Agulló, 2020

Tradutor: Lucas Rodrigues Oliveira

Ilustração da capa: mores345

Design da capa: © Mª del Mar Agulló

Primeira edição

Todos os direitos reservados. Sem limitar os direitos do autor, nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida por um sistema de recuperação de informações, de qualquer forma ou por qualquer meio (seja eletrônico, mecânico, por fotocopiadora, gravura ou qualquer outro) sem a permissão prévia e por escrito do proprietário dos direitos autorais deste livro. Este livro é uma obra de ficção, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, lugares ou eventos é pura coincidência. Os personagens são produto da imaginação do autor e são usados de maneira fictícia.

Este ebook está licenciado apenas para seu uso pessoal. Ele não pode ser revendido ou doado a outras pessoas. Se deseja compartilhar este livro com outra pessoa, favor adquirir uma cópia adicional para cada pessoa com quem deseja compartilhar. Se você está lendo este livro e não o comprou, ou caso ele não tenha sido adquirido para seu uso exclusivo, por favor adquira sua cópia. Obrigado por respeitar o trabalho do autor.

Para Xena


1. A ordem a partir do caos

Carolina trabalhava em um laboratório. Ela era uma jovem de vinte e cinco anos de Maiorca e que estava escrevendo uma tese de biologia. Ela estudava vírus que afetavam os humanos de forma mortal. Procurava possíveis antígenos e, quando entendia que estavam prontos, testava-os em "cobaias humanas".

As cobaias humanas eram pessoas que se dedicavam a usar seu corpo para fins de estudo clínico. Primeiro, era injetado o vírus, e, depois, o antígeno. Eram submetidas a uma grande variedade de testes antes, durante e depois do processo. Qualquer um poderia ser uma cobaia humana (CoHu); a única condição era ser maior de idade e não ter nenhuma doença mental que afetasse a capacidade de decisão. Os laboratórios pagavam muito bem. Apesar de, no início, a sociedade ser contrária à ideia, com o tempo as cobaias se tornaram populares. Atualmente, havia filas de espera.

Havia duzentos anos que as cobaias humanas existiam de forma legal, quando o governo da Finlândia legalizou esses experimentos com humanos. Logo chegaram outros países, até que a maioria aderiu. Antes de ser legalizada, essa prática era ilegal e punida com prisão para os funcionários dos laboratórios.

Muita gente morria nos testes. Alguns porque os antígenos não funcionavam, outros por causa de infecções. Em caso de morte, a família recebia uma grande quantia em dinheiro por vários anos, de acordo com o contrato que havia sido assinado. Havia pessoas que não morriam, mas acabavam com sequelas, como paralisia facial, perda de visão, ganho repentino de peso, entre outras, muitas delas com cura, outras não. Havia também pessoas que passavam por alterações em parte de sua aparência física; algumas ficavam com manchas por todo o corpo, outras sofriam modificações na cor do cabelo ou dos olhos, na altura, etc.

Atualmente, os vírus mortais haviam se multiplicado de forma exponencial, tornando indispensável o trabalho de Carolina e seus colegas.

***

Keysi era a típica britânica, com olhos azul-claros e cabelos loiros. Ela morava na Espanha havia três anos, quando conheceu em Londres seu atual namorado, um jovem estudante espanhol da mesma idade, intercambista do Programa Erasmus. Keysi havia trabalhado em laboratórios na Inglaterra, na Alemanha e, agora, na Espanha. Seus pais eram alemães, e seus avós eram ingleses, então ela não tinha problemas com os idiomas.

Fazia dois anos que Keysi era colega de laboratório de Carolina. As duas tinham a mesma idade e mantinham uma relação cordial. Keysi gostava de trabalhar em silêncio, sem ninguém para incomodá-la; na melhor das hipóteses, ela tolerava música clássica. Entretanto, Carolina falava sem parar, o que no início incomodava a britânica. Após os primeiros dias trabalhando juntas, Keysi disse a Carolina que não conseguia se concentrar se ela não parasse de falar sobre sua vida. A partir daquele dia, o relacionamento delas se baseava nos bons dias e noites de dedicação diária.

O trabalho de Keysi no laboratório era o mesmo de sua colega: procurar antígenos. Diferente de Carolina, ela sentia a necessidade de encontrar mais de um antígeno; não suportava a ideia de que houvesse pessoas que morressem por causa de um erro seu. Em seus testes, já tinha perdido duas cobaias humanas; com Carolina, morreram três cobaias.

– Bom dia, senhoritas – disse um homem de quase dois metros de altura e cabelos volumosos, entrando pela porta da Sala 4, onde as duas virologistas trabalhavam diariamente.

– Bom dia, senhor Norberto – respondeu Keysi.

– Trouxe cinco novos vírus. Tenham muito cuidado ao manipular, os rapazes da seção de coleta de vírus tiveram dificuldade para encontrar eles. O primeiro – Norberto levantou uma pequena garrafa contendo uma substância esverdeada. – é um vírus que coletamos na Índia; estima-se que tenha afetado trezentas mil pessoas, das quais sessenta mil morreram. Tem prioridade dois e, nas próximas semanas, pode se tornar um, se ele se atingir outros países. Perguntas? – Norberto olhou para Keysi e Carolina, que se entreolharam. – Esse outro – Norberto ergueu um frasco em forma de esfera que continha uma substância que parecia areia vermelha. – é um vírus que encontramos na fronteira entre a China e a Mongólia; lá, eles apelidaram de areia que voa, devido às tempestades que aconteceram nos últimos meses, que faziam com que esse vírus – Norberto apontou para o frasco. – saísse voando por causa do vento. O número de pessoas afetadas é desconhecido, tem prioridade cinco e é muito perigoso em contato com a água. Esse outro – Norberto pegou uma garrafa contendo uma substância azul parecida com massa de modelar. – é um grande mistério. Foi encontrada pela senhorita González – a senhorita González era filha de Norberto e a melhor no departamento de coleta de vírus. – na costa da Austrália durante suas férias. Ele começou matando uma grande quantidade de animais marinhos que apareceram na costa. Mais tarde, o vírus passou para as pessoas.

– Como passou dos animais para as pessoas? – perguntou Keysi.

– Por contato direto. A primeira pessoa afetada, o paciente zero, foi uma das pessoas que transportaram os corpos sem vida dos animais.

– Como sabemos que foi o paciente zero? As outras pessoas que retiraram os animais das praias não se contagiaram? – perguntou Carolina.

– Não, não se contagiaram. Todas as outras pessoas foram testadas, e todas estavam e continuam saudáveis. As próximas pessoas afetadas pelo vírus foram duas mulheres que atenderam nosso paciente zero no hospital.

– O que aconteceu com o paciente zero? – perguntou Keysi.

– Ele morreu três dias depois de ter sido infectado, assim como as duas mulheres e outras vinte pessoas.

– Quando tudo isso aconteceu? Por que não falaram nada na televisão? – perguntou Carolina.

– Carolina, todos os dias descobrimos novos vírus mortais. Não dá pra divulgar todos, ou o caos reinaria em cada lugar em que aparecesse um novo vírus. Imagine o que aconteceria na Austrália se dissessem que existe um vírus que pode matar em três dias e que não tem cura. Ou na Índia, que é um foco de surgimento de vírus, onde sessenta mil pessoas morreram só com esse vírus aqui. Nosso trabalho é vencer a guerra contra esse mal, que hoje é a principal causa de morte no mundo. Quando descobriram a cura do câncer, do mal de Alzheimer e de todas as doenças que agora são história, nosso corpo ficou mais forte, mas também mais fraco, e é dessa fraqueza que esses vírus se aproveitam. – Norberto foi até a janela e olhou, sentindo saudade; seu bisavô ficou famoso por descobrir uma vacina contra qualquer tipo de câncer, motivo pelo qual ele decidiu se tornar biólogo. Por várias décadas, as pessoas não morreram de doenças, mas um dia, uma mulher, em sua casa em Paris, começou a ficar doente. Depois de três horas, ela morreu por causa de um vírus. Desde então, os vírus se multiplicaram, e novos laboratórios eram abertos todos os dias para estudá-los em busca de uma cura. – A prioridade desse vírus é três. Se aumentar o número de vítimas, vai subir pra dois. – Norberto apontou para um pequeno frasco oval contendo uma substância de um tom amarelo esverdeado. – Esse aqui é um vírus encontrado aqui na Espanha, especificamente na província de Sória. Foi detectado ontem à noite; logo depois, uma de nossas equipes foi pra lá imediatamente pra coletar amostras. Afetou duas pessoas, um casal de idosos. A mulher morreu algumas horas depois do contágio, que foi entre duas e seis horas antes; o marido ainda tá vivo. A prioridade desse vírus é nível nove. E, por último, temos esse outro vírus – Norberto pegou uma garrafa cilíndrica contendo um líquido azul-claro. —, que vem de uma montanha fria da Noruega. Foi descoberto por acaso. Um alpinista tava passeando nas montanhas quando começou a se sentir mal e a sangrar pela boca. Ele correu o máximo que pôde até um abrigo de montanhistas, onde, já inconsciente, foi levado pra um hospital. O alpinista chegou ao hospital em parada cardíaca. Por sorte, conseguiram fazer a reanimação, e ele ainda tá vivo. Todos os alpinistas do abrigo começaram a sofrer os mesmos sintomas minutos depois, assim como aqueles que tavam no hospital naquele momento. Algumas horas depois, o hospital tava em quarentena, e continua até agora.

 

– Meu Deus, quantos infectados temos agora? – perguntou Keysi, que estava boquiaberta.

– Umas quinhentas pessoas até essa manhã, pode ser que agora já tenha alcançado mil. É muito contagioso, e o pior é que não sabemos a forma como se espalha.

– Quando tudo isso aconteceu? – perguntou Carolina.

– Ontem à tarde. Sairá no jornal do meio-dia. Tem prioridade dois. Meninas, ao trabalho.

– Espere, por que temos uma amostra desse vírus tão rápido? – perguntou Carolina.

– Nos enviaram de um laboratório da Noruega. Segundo eles, somos os melhores.

O laboratório de Norberto, O Farol da Luz, tinha prestígio internacional. Para trabalhar lá, primeiro era necessário passar por uma série de exames teóricos e práticos muito exigentes.

A pesquisa de antígenos tinha um grau de prioridade de um a nove, sendo um o maior grau. No início, o nível da prioridade foi delimitado pelo número de mortes, que depois foi alterado para o número de infectados, até que, no final, cada laboratório passou a escolher a prioridade de acordo com seu próprio sistema. O laboratório de Norberto escolhia a prioridade de encontrar um antígeno com base em cálculos que projetassem o número de infectados e mortos nos próximos dias.

Keysi fazia anotações de tudo o que Norberto tinha dito em uma agenda, e logo compartilhava com Carolina. A inglesa tinha uma memória eidética, por isso não precisava fazer anotações enquanto Norberto falava.

Aquele dia seria duro. Eles tinham trazido cinco vírus; poderia demorar horas, dias, semanas ou meses para descobrir os antígenos. Cada segundo era importante. A vida ou a morte de várias pessoas dependia de gente como elas.

Keysi então voltou ao vírus com o qual estava trabalhando antes de Norberto aparecer; era de prioridade dois, e ela estava prestes a encontrar o antígeno.

– Acho que consegui – disse Keysi.

– O quê? – perguntou Carolina, que estava imersa em seus pensamentos.

– O antígeno para o vírus de Cancún. Vou mandar para Norberto testar, já temos trabalho suficiente.

– Você não vai procurar outros possíveis antígenos? – Keysi estava sempre procurando por vários antígenos.

– Carolina, eu tô nervosa, muita gente tá morrendo, temos que nos apressar.

– Keysi, se acalme, desse jeito você não vai ajudar. Se quiser, pode tirar o dia de folga.

– Tirar o dia de folga? Com esse caos? – perguntou a inglesa, perdendo a paciência.

– Nesse caso, vá pra cafeteria, tome um café, relaxe. Se quiser, ligue pro seu namorado – Keysi fez uma careta. – e depois, quando tiver melhor, volte.

– Tá bom, vou ligar pra Clara – Clara era a secretária de Norberto, que atuava como garota de recados.

A secretária de Norberto entrou na sala depois de alguns minutos.

– Clara, leve esse antígeno pra Norberto, diga a ele que tá pronto pros testes, e que esse é o de Cancún.

– Clara, diga também a Norberto que eu gostaria de ter uma cópia dos relatórios do hospital do alpinista norueguês e o do caso zero da Austrália – disse Carolina.

Keysi seguiu o conselho de Carolina e foi tomar alguma coisa na sala que era usada para relaxar, mas ela não ligaria para o namorado, com quem tinha discutido, talvez pela última vez.

Keysi voltou para o local onde trabalhava, a Sala 4. Carolina já tinha começado a trabalhar com o vírus da Índia.

A britânica ficou ali, com a porta aberta, olhando para sua colega. Carolina se virou e olhou para ela, sem entender nada. Naquele momento, a britânica começou a chorar, então Carolina foi até ela e a abraçou.

– O que aconteceu, Keysi?

– Meu namorado me largou.

Carolina tinha visto o namorado de sua colega poucas vezes, em festas de Natal e em algum outro evento no laboratório. Ele parecia um rapaz muito atraente, mas um pouco antipático.

– Talvez ele não fosse o melhor cara para você.

– Carolina, eu sei que ele não era, mas isso não facilita as coisas. Eu deixei toda a minha vida na Inglaterra por ele, aprendi espanhol e vim morar em Maiorca com ele.

– Não tem mais volta?

– Não tem mais volta? – repetiu Keysi. – Eu não quero que tenha volta.

– Eu pensei que vocês tavam indo bem.

– A gente tava, até que no ano passado eu fiquei grávida.

– Eu não sabia disso – Carolina estava surpresa.

– Nem eu, até que era muito tarde. Uma noite, meu namorado levantou à meia-noite pra pegar um copo d'água. A cama tava cheia de sangue; aparentemente eu tava sangrando porque algo não tava funcionando dentro de mim. Eu tava tendo um aborto e nem sabia que tava grávida. Tava de dois meses. Tudo aconteceu muito rápido. Nos dias seguintes, eu tava triste, mas tudo continuava do mesmo jeito. – Keysi fez uma pausa. – A gente devia continuar.

– Claro – respondeu Carolina.

Essa tinha sido a conversa mais íntima que as duas colegas haviam tido, e também a mais longa. As duas continuaram trabalhando. Keysi adorava Richard Wagner, então Carolina foi ao computador e colocou uma playlist de Wagner, sem dizer nada.

Elas decidiram que cada uma criaria um antígeno para todos os cinco vírus, compartilhando informações para acelerar o processo.

2. Sou uma sobrevivente

Eram dez da manhã. Mónica tinha deixado seu filho pequeno, Samuel, na escola. Naquele dia, chegou mais tarde porque tinha um check-up marcado com o médico. Samuel nasceu como qualquer outra criança, mas algo mudou com dois meses de vida. Samuel estava ficando cego, e o avô de Mónica também era cego. Graças ao progresso da medicina, uma operação simples foi suficiente para parar a cegueira e recuperar a visão perdida. Samuel tinha que ir ao médico a cada seis meses para verificar se a visão estava perfeita.

Mónica estava caminhando para sua casa, pensativa. Ele estava desempregado, mas recebia uma pensão como viúva. Ele tinha que pagar o aluguel da casa em que morava com seus dois filhos, Samuel e Óscar, as contas do mês, o uniforme das aulas de karatê de Samuel e todas as despesas em geral. Seu marido tinha morrido de parada cardíaca quando detectaram a cegueira precoce de Samuel; infelizmente, não havia cura para tudo.

O seu marido era o pai de Samuel. O pai de Óscar era um antigo namorado da escola que ela não suportava. Pedir ajuda financeira era a última coisa que pensava em fazer.

Para Samuel, que tinha quatro anos, seu irmão mais velho era como um pai, mesmo que ainda faltassem vários dias para que ele atingisse a maioridade.

Antes de voltar para casa, ela encontrou uma de suas vizinhas, que tinha comprado um carro novo muito caro, que sempre havia sido a obsessão de seu marido.

– Oi, vizinha.

– Oi, Maribel.

– Você parece triste. Tudo bem na consulta de Samuel?

– Tudo bem, brigada.

– Você viu o carro que eu comprei? – disse, esboçando um grande sorriso. – Não pense que eu ganhei na loteria ou alguma coisa assim, conseguimos isso trabalhando.

Os vizinhos de Mónica tinham um açougue que não estava passando por seus melhores momentos. Mónica duvidava que a pequena empresa pudesse render tanto.

– Também não pense que roubamos um banco. Como disse, conseguimos trabalhando. Hoje à tarde, se você quiser, podemos dar uma volta com você e as crianças.

Depois de dizer isso, ela piscou, entrou em seu carro possante e saiu.

Outra vizinha saiu de casa para forçar um encontro com Mónica.

– Você viu o carro de Maribel?

– Sim, Rocío, eu vi – Mónica estava cansada e queria entrar em casa.

– Mas você sabe como eles conseguiram? Já ficou sabendo?

– Ela me disse que trabalhando.

– Trabalhando? Eu não chamaria assim. Ela foi a um desses lugares onde eles te injetam um vírus e depois injetam o antivírus. Se você se curar, fica rico, se não, bem…

– Você quer dizer que eles trabalharam como CoHu?

– Mas isso não é trabalhar, é sorte. E pensar no dinheiro que pagaram pra eles…

–Rocío, é trabalho, e além disso é muito perigoso, e também é necessário. Tem que ser muito corajoso para deixar que injetem um vírus mortal sem saber se você vai sobreviver.

Depois de dizer isso, ela entrou em casa, deixando a vizinha falando sozinha.

Suas duas vizinhas, Maribel e Rocío, eram muito parecidas. Eles competiam em tudo, queriam ser as primeiras a saber de tudo. Todos os vizinhos fugiam delas assim que as viam se aproximar. Para Mónica, suas duas vizinhas fofoqueiras eram cansativas.

Assim que a porta se fechou, a campainha tocou. Mónica abriu a porta, saindo para a pequena varanda da casa. Um homem baixinho, com pouco cabelo e óculos esperava na porta.

– Oi, Mónica – o homem cumprimentou.

– Oi, Ignacio.

– Tudo bem com Samuel?

– Sim, tudo perfeito – respondeu Mónica, que pensava que seus vizinhos não a deixariam em paz nem por um momento.

– Fico feliz. – o homem tirou os óculos e os limpou. – Vi você entrar e aproveitei pra vir perguntar se você já tem o dinheiro do aluguel.

– Ignacio…

– Você me deve dois meses, sem contar com o atual. Sou bom com você porque você tem dois filhos pra cuidar sozinha, mas eu também tenho que comer.

Mónica olhou automaticamente para a barriga proeminente de Ignacio, e, sem saber por que, começou a rir. Ignacio olhou para ela irritado.

– Desculpe, mas acho que a minha pensão de viúva não dá pra tanto.

– Então você vai ter que procurar outro lugar…

Mónica bateu a porta sem deixar Ignacio terminar de falar. Mónica sabia que as ameaças de Ignacio nunca eram cumpridas; no ano anterior, ela chegou a dever seis meses, e ele não a despejou. Mónica era uma mulher de trinta e quatro anos bastante atraente, aos olhos de Ignacio inclusive. Ele vinha flertando com Mónica desde que ela tinha se mudado, alguns anos atrás, após a morte de seu marido.

Ignacio era seu vizinho, mas também era o dono de todo o bloco de casas. Ele comprou depois que ganhou na loteria, quando as casas estavam 90% construídas. Ele morava em uma delas e alugava as outras. Vários vizinhos tentavam comprá-las, mas ele recusava, alegando que assim ganhava mais dinheiro.

Ignacio morava sozinho. Todos os vizinhos pagavam um dia, exceto Mónica, por isso que ela, quando ouviu que ele também precisava comer, começou a rir. Ela sabia que ele não precisava de dinheiro, ao contrário dela.

Mónica sentou-se em sua mesa e começou a fazer contas. Naquele mês, também não poderia pagar o aluguel a Ignacio, era impossível. Ela analisou as ofertas de emprego em vários sites, nada em que pudesse trabalhar: uma oferta muito bem paga como engenheiro de computação, uma oferta para ser o motorista pessoal de uma celebridade, outra oferta procurando um advogado e assim por diante. Mónica havia começado uma carreira em arquitetura, mas depois de dois anos ela a deixou. Depois disso, ele fez vários cursos de design de interiores e exteriores, e depois começou a trabalhar como assistente de arquitetos, como designer de interiores e outros trabalhos correlatos. Ela também trabalhou como jornalista freelancer para vários veículos de comunicação.

Mónica levantou-se da mesa e foi até a janela com um café na mão esquerda, sua mão mais hábil. Ela ligaria para se informar sobre a oferta de motorista. A princípio, poderia aceitá-la. A parte ruim era o horário; ela teria que contratar uma babá para ficar com Samuel pela manhã e levá-lo para a escola.

Ao meio-dia, Óscar e Mónica comeram macarrão pré-cozido em silêncio, com o som de fundo da televisão. Ela estava com uma expressão séria.

– Mãe, o que tá acontecendo?

– Temos problemas de dinheiro.

Óscar sorriu.

– Como sempre.

– Isso é engraçado pra você?

– Não, mãe, mas a gente também não tá tão mal.

– Não posso pagar o aluguel, nem os boletos…

– Mãe, para. Com a pensão de viúva e a pensão de órfão, podemos pagar quase tudo se economizarmos um pouco.

– Você tá certo, podemos pagar tudo, menos o aluguel, e já faz vários meses.

– Você pode pedir ajuda pro vovô e pra vovó.

– Não vou pedir ajuda pra ninguém.

– Não seja orgulhosa, mãe. E o meu pai?

– Quê?

– Você sabe, meu pai.

– Vou fingir que não ouvi nada.

– Mas ele teria que te pagar alguma coisa.

– Prefiro não ter que pedir nada a ele.

– Sempre tem a opção de sair com Ignacio.

Os dois riram.

– Acho que vou ligar para tentar uma oferta de motorista muito bem paga.

– Motorista? Você? – Óscar riu.

– Eu não dirijo tão mal.

– E o que acha disso? Eu posso? – Óscar apontou para um folheto em cima da mesa, de um laboratório que precisava urgentemente de CoHu.

– Nem pensar. E menos ainda quando se pede com urgência. Isso é porque eles têm algum vírus muito perigoso e têm várias curas possíveis. Você não vai ser um experimento de laboratório.

 

– Depois de amanhã eu faço dezoito, então você não pode me impedir.

– Meus filhos não vão ser CoHu.

– Eu pensei que você defendia as CoHu.

– Eu defendo, mas é muito perigoso.

– A maioria sobrevive.

– É o que dizem, nunca mostram provas.

– Mãe, precisamos de dinheiro. Deixa eu falar com meu pai.

– Vou pensar.

Óscar não conhecia o pai, só tinha visto em fotos antigas de quando adolescente. Se o encontrasse na rua, nem saberia. Nas fotos que ele tinha visto, notou uma grande semelhança: os dois morenos, com olhos escuros, indiscutivelmente atraentes.

Para Mónica, o pai do seu filho mais velho tinha sido seu grande amor na época, mas tudo mudou depois que ele a trocou por outra mulher. E, embora o pai de Óscar tivesse tentado vê-lo quando bebê, Mónica sempre recusou.

Mais tarde, Samuel estava brincando pela casa com seu irmão. Era quarta-feira, o que significava o dia de uma caça ao tesouro. Depois que Samuel e Óscar fizeram seus deveres de casa, os dois irmãos esconderam um objeto que o outro teria que encontrar; o que encontrasse primeiro ganhava. Quase sempre Óscar encontrava antes, mas fingia que não para deixar seu irmãozinho ganhar.

Naquele dia, Samuel estava mexendo no guarda-roupa de Mónica, que tinha saído para fazer compras. Samuel olhou as gavetas da parte de baixo sem muito sucesso. Depois, pegou uma cadeira para tentar alcançar a parte mais alta do guarda-roupa. Mas, quando puxou um lenço de Mónica, que estava lá, ele sem querer jogou uma caixa de papelão no chão. Óscar, que estava no térreo, subiu correndo quando ouviu o barulho, pensando que seu irmão tinha caído.

– Samuel, você tá bem? – Óscar estava gritando quando subiu as escadas.

– Sim, eu tô bem.

Óscar entrou no quarto de sua mãe. Samuel estava sentado olhando alguns papéis, entre os quais algumas fotografias.

– Quem é esse homem? – perguntou Samuel.

– É meu pai.

Óscar não queria se intrometer na privacidade de sua mãe, então começou a recolher os papéis e as fotos e pediu que Samuel continuasse a procura em outra cômodo. De repente, seu coração disparou. Era uma foto de sua mãe grávida com seu pai. Por trás da foto, estava escrito o nome completo de seu pai, que também se chamava Óscar. Mas naquela caixa havia muito mais. Ele fechou a porta e começou a olhar tudo. Havia cartas de seu pai endereçadas a sua mãe, dedicatórias, poesias. Aquela caixa transpirava amor. Ele encontrou um número de telefone, que ele supôs que era do pai. Mas a pior coisa para Óscar foi o que encontrou no fundo da caixa. Havia vários brinquedos e figurinhas, além de várias cartas fechadas. Ele abriu uma das cartas, que estava endereçada a ele. Todos os brinquedos eram para ele, um presente de seu pai. Inclusive havia fotos ainda mais recentes. Óscar chorava por tudo o que havia perdido. Pegou as cartas endereçadas a ele e colocou o resto na caixa. Ao sair do quarto, mudou a expressão e agiu como se nada tivesse acontecido.

– Samuel, não conte pra mamãe que vimos a caixa.

– Por quê?

– Porque ela ia ficar chateada.

Horas depois, Mónica voltou. Óscar agiu como se nada tivesse acontecido. Tudo parecia normal.

À noite, ele lia cada carta, e a cada carta ele chorava mais profundamente, tentando não fazer barulho.

No dia seguinte, à tarde, Óscar segurava o folheto do laboratório em uma mão e, na outra, o celular com o número do pai gravado. Ele decidiu ligar para ele. Ele saiu da casa com o celular chamando. Três toques. Quatro toques. Antes de soar o quinto toque, atenderam. Era uma voz masculina, quente e suave, como se fosse de uma pessoa da sua idade. Óscar congelou. E se ele tivesse outros irmãos?

– Alô? – a voz repetiu do outro lado da linha.

Óscar desligou e entrou em casa. Sua mãe estava olhando para ele.

– Aconteceu alguma coisa?

– Não, nada.

– Você não sabe mentir. Vamos, me diga, o que tá acontecendo?

– É que eu tô com dificuldade em um trabalho de ciências.

– Deve ser bem complicado pra ser difícil pra você.

Óscar sorriu. Ele tinha um QI alto, sempre tirava boas notas.

No jantar, comeram uma receita da avó de Samuel e Óscar.

– Tá muito bom, mamãe – disse Samuel.

– Brigada – disse Mónica, maravilhada.

– Mamãe, conta a história de como você conheceu o pai de Óscar.

Mónica olhou na direção de Óscar, que ficou vermelho.

– Nós já sabemos a história do meu pai, você já contou muitas vezes – continuou Samuel, enfatizando o "muitas".

– Tá bom, assim que terminarmos o jantar, eu vou contar pra vocês.