Loe raamatut: «Memorias Posthumas de Braz Cubas»

Publicado pela Editora Good Press, 2022
goodpress@okpublishing.info
EAN 4064066412326
RIO DE JANEIRO
TYPOGRAPHIA NACIONAL
1881
OBRAS DO AUTOR
Memorias Posthumas de Braz Cubas
Helena, romance
Yayá Garcia, romance
Resurreição, romance
A mão e a luva, romance
Historias da meia noite
Contos Fluminenses
Americanas, poesias
Phalenas, poesias
Chrysalidas, poesias
Tu só, tu, puro amor, comédia
Os deuses de casaca, comédia
Desencantos, comédia
Theatro
AO LEITOR
Que, no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havel-o escripto para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cincoenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra diffusa, na qual eu, Braz Cubas, se adoptei a fórma livre de um Sterne, de um Lamb, ou de um de Maistre, não sei se lhe metti algumas rabugens de pessimismo. Póde ser. Obra de finado. Escrevi-a com a penna da galhofa e a tinta da melancholia; e não é difficil antever o que poderá sair desse connubio. Accresce que a gente grave achará no livro umas apparencias de puro romance, ao passo que a gente frivola não achará nelle o seu romance usual; e eil-o ahi fica privado da estima dos graves e do amor dos frivolos, que são as duas columnas maximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as sympatias da opinião, e o meio efficaz para isso é fugir a um prologo explicito e longo. O melhor prologo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um geito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinario que empreguei na composição destas Memorias, trabalhadas cá no outro seculo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessario ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Braz Cubas.
AO VERME
QUE
PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
DO MEU CADAVER
DEDICO
COMO SAUDOSA LEMBRANÇA
ESTAS
MEMORIAS POSTHUMAS
CAPITULO I
Obito do autor
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memorias pelo principio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro logar o meu nascimento ou a minha morte. Supposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adoptar differente methodo: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escripto ficaria assim mais galante e mais novo. Moysés, que tambem contou a sua morte, não a poz no introito, mas no cabo: differença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei ás duas horas da tarde de uma sexta feira do mez de agosto de 1869, na minha bella chacara de Catumby. Tinha uns sessenta e quatro annos, rijos e prosperos, era solteiro, possuia cerca de tresentos contos e fui acompanhado ao cemiterio por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem annuncios. Accresce que chovia—peneirava—uma chuvinha miuda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daquelles fieis da ultima hora a intercalar esta engenhosa idéa no discurso que proferiu á beira de minha cova:—«Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer commigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparavel de um dos mais bellos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do ceu, aquellas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funereo, tudo isso é a dor crua e má que lhe róe á natureza as mais intimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso illustre finado.»
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apolices que lhe deixei. E foi assim que cheguei á clausula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ancias nem as duvidas do moço principe, mas pausado e tropego, como quem se retira tarde do expectaculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre ellas tres senhoras,—minha irmã Sabina, casada com o Cotrim,—a filha, um lyrio do valle,—e… Tenham paciencia! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anonyma, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, epileptica. Nem o meu obito era cousa altamente dramatica… Um solteirão que expira aos sessenta e quatro annos, não parece que reuna em si todos os elementos de uma tragedia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anonyma era apparental-o. De pé, á cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crêr na minha extincção.
–Morto! morto! dizia comsigo.
E a imaginação della, como as cegonhas que um illustre viajante viu desferirem o vôo desde o Illysso ás ribas africanas, sem embargo das ruinas e dos tempos,—a imaginação dessa senhora tambem voou por sobre os destroços presentes até ás ribas de uma Africa juvenil… Deixal-a ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros annos. Agora, quero morrer tranquillamente, methodicamente, ouvindo os soluços das damas, as fallas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chacara, e o som estridulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fóra, á porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orchestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer; e de certo ponto em deante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns impetos de vaga marinha, esvaia-se-me a consciencia, eu descia á immobilidade physica e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéa grandiosa e util, a causa da minha morte, é possivel que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe summariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
CAPITULO II
O emplasto
Com effeito, um dia de manhã, estando a passear na chacara, pendurou-se-me uma idéa no trapezio que eu tinha no cerebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volantim, que é possivel crer. Eu deixei-me estar a contemplal-a. Subito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a fórma de um X: decifra-me ou devoro-te.
Essa idéa era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hypocondriaco, destinado a alliviar a nossa melancholica humanidade. Na petição de privilegio que então redigi, chamei a attenção do governo para esse resultado, verdadeiramente christão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniarias que deviam resultar da distribuição de um producto de tamanhos e tão profundos effeitos, Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornaes, mostradores, folhetos, esquinas, e emfim nas caixinhas do remedio, estas tres palavras: emplasto Braz Cubas. Para que negal-o? Eu tinha a paixão do arruido, do cartaz, do foguete de lagrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio porém que esse talento me hão de reconhecer os habeis; e eu era habil. Assim, a minha idéa trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o publico, outra para mim. De um lado, philanthropia e lucro; de outro lado, sêde de nomeada. Digamos:—amor da gloria.
Um tio meu, conego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da gloria temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a gloria eterna. Ao que retorquia outro tio, official de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da gloria era a cousa mais verdadeiramente humana que ha no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuina feição.
Decida o leitor entre o militar e o conego; eu volto ao emplasto.
CAPITULO III
Genealogia
Mas, já que fallei nos meus dous tios, deixem-me fazer aqui um curto esboço genealogico.
O fundador da minha familia foi um certo Damião Cubas, que floreceu na primeira metade do seculo XVIII. Era tanoeiro de officio, natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penuria e na obscuridade, se sómente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se lavrador, plantou, colheu, permutou o seu producto por boas e honradas patacas, até que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luiz Cubas. Neste rapaz é que verdadeiramente começa a serie de meus avós—dos avós que a minha familia sempre confessou—, porque o Damião Cubas era afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Luiz Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei conde da Cunha.
Como este appellido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, allegava meu pae, bisneto do Damião, que o dito appellido fôra dado a um cavalleiro, heroe nas jornadas da Africa, em premio da façanha que praticou, arrebatando tresentas cubas aos mouros. Meu pae era homem de imaginação; escapou á tanoaria nas azas de um calembour. Era um bom caracter meu pae, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verdade, uns fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? Releva notar que elle não recorreu á inventiva, senão depois de experimentar a falsificação; primeiramente, entroncou-se na familia daquelle meu famoso homonymo, o capitão-mór Braz Cubas, que fundou a villa de S. Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de Braz. Oppoz-se-lhe porém a familia do capitão-mór; e foi então que elle imaginou as tresentas cubas mouriscas.
Vivem ainda alguns membros de minha familia, minha sobrinha Venancia, por exemplo, o lyrio do valle, que é a flor das damas do seu tempo; vive o pae, o Cotrim, um sujeito que… Mas não anticipemos os successos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto.
CAPITULO IV
A idéa fixa
A minha idéa, depois de tantas cabriolas, constituira-se idéa fixa. Deus te livre, leitor, de uma idéa fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéa fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que o Bismark não morreu; mas, cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a historia uma eterna loureira. Por exemplo, o Suetonio deu-nos um Claudio, que era um verdadeiro banana,—ou «uma abobora» como lhe chamou Seneca, e um Tito, que mereceu ser as delicias de Roma. Veiu modernamente um professor e achou meio de demonstrar que ambos esses conceitos eram erroneos e abstrusos, e que dos dous cesares, o delicioso, o verdadeiramente delicioso, foi o «abobora» de Seneca. E tu, madama Lucrecia, flor dos Borgias, se um poeta te pintou como a Messalina catholica, appareceu um Gregorovius incredulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lyrio, tambem não ficaste pantano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sabio.
Viva pois a historia, a voluvel historia que dá para tudo; e, tornando á idéa fixa, direi que é ella a que faz os varões fortes e os doudos; a idéa mobil, vaga ou furta-cor é a que faz os Claudios,—formula Suetonio.
Era fixa a minha idéa, fixa como… Não me occorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pyramides do Egypto, talvez a finada dieta germanica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja dahi a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegámos á parte narrativa destas memorias. Lá iremos. Creio que prefere a anecdota á reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escripto com pachorra, com a pachorra de um homem já desaffrontado da brevidade do seculo, obra supinamente philosophica, de uma philosophia desegual, agora austera, logo brincalhona, cousa que não edifica nem destróe, não inflamma nem regéla, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.
Vamos lá; rectifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a historia com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confissão do Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell, é só pela idéa de que Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o parlamento, teria imposto aos inglezes o emplasto Braz Cubas. Não se riam dessa victoria commum da pharmacia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, publica, ostensiva, ha muitas vezes varias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteam e fluctuam á sombra daquella, com ella cahem, e não poucas vezes lhe sobrelevam? Mal comparando, é como a arraia-miuda, que se acolhia á sombra do castello-feudal; cahiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castellã… Não, a comparação não presta.
CAPITULO V
Em que apparece a orelha de uma senhora
Vae se não quando, estando eu occupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei. Tinha o emplasto no cerebro; trazia commigo a idéa fixa dos doudos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e remontar ao ceu, como uma aguia immortal; e não é deante de tão excelso expectaculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia estava peor; tratei-me emfim, mas incompletamente, sem methodo, nem cuidado, nem persistencia; tal foi a origem do mal que me trouxe á eternidade. Sabem ja que morri n'uma sexta feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha invenção que me matou. Ha demonstrações menos lucidas e não menos triumphantes.
Não era impossivel, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de um seculo, e a figurar nas folhas publicas, entre macrobios. Tinha saude e robustez. Supponha-se que, em vez de estar lançando os alicerces de uma invenção pharmaceutica, tratava de colligir os elementos de uma instituição politica, ou de uma reforma religiosa. Vinha a corrente do ar, que vence, em efficacia, o calculo humano, e lá se ia tudo. Um sopro de ar foi portanto o meu grão de arêa de Cromwell. Assim corre a sorte dos homens.
Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas com certeza mais formosa entre as contemporaneas suas, a anonyma do primeiro capitulo, a tal, cuja imaginação á semelhança das cegonhas do Illysso… Tinha então 54 annos, era uma ruina, uma imponente ruina. Imagine o leitor que nos amámos, ella e eu, muitos annos antes, e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar á porta da alcova…
CAPITULO VI
Chimène, qui l'eut dit?—Rodrigue, qui l'eut cru?
Vejo-a assomar á porta da alcova, pallida, commovida, trajada de preto, e alli ficar durante uns dez segundos, sem animo de entrar, ou detida pela presença de um homem que estava commigo. Da cama, onde jazia, contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de fazer nenhum gesto. Havia já dous annos que nos não viamos; e eu via-a agora não qual era, mas qual fôra, quaes foramos ambos, porque um Ezechias mysterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as miserias; e este punhado de pó, que a morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que tempo, que é o ministro da morte. Nenhuma agua de Juventa egualaria alli a simples saudade.
Cream-me, o menos mau é recordar; ninguem se fie da felicidade presente; ha nella uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se póde gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas illusões, melhor é a que se gosta, sem doer.
Não durou muito a evocação; a realidade dominou logo; o presente expelliu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste livro, a minha theoria das edições humanas. O que por agora importa saber é que Virgilia—chamava-se Virgilia—entrou na alcova, firme, com a gravidade que lhe davam as roupas e os annos, e veiu até o meu leito. O extranho levantou-se e sahiu. Era um sujeito, que me visitava todos os dias para fallar do cambio, da colonisação e da necessidade de desenvolver a viação ferrea; nada mais interessante para um moribundo. Saiu; Virgilia deixou-se estar de pé; durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dous grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia alli, vinte annos depois; havia apenas dous corações murchos, devastados pela vida e saciados della, não sei se em egual dóse, mas emfim saciados. Virgilia tinha agora a belleza da velhice, um ar austero e maternal; estava menos magra do que quando a vi, pela ultima vez, n'uma festa de S. João, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora começavam os cabellos escuros a intercalar-se de alguns fios de prata.
–Anda visitando os defuntos? disse-lhe eu.—Ora, defuntos! respondeu Virgilia com um muxoxo. E depois de me apertar as mãos:—Ando a ver se ponho os vadios para a rua.
Não tinha a caricia lacrymosa de outro tempo; mas a voz era amiga e doce. Sentou-se. Eu estava só, em casa, com um simples enfermeiro; podiamos fallar um ao outro, sem perigo. Virgilia deu-me longas noticias de fóra, narrando-as com graça, com um certo travo de má lingua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo, sentia um prazer satanico em mofar delle, em persuadir-me que não deixava nada.
–Que idéas essas! interrompeu-me Virgilia um tanto zangada. Olhe que eu não volto mais. Morrer! Todos nós havemos de morrer; basta estarmos vivos.
E vendo o relogio:
–Jesus! são tres horas. Vou-me embora.
–Já?
–Já; virei amanhã ou depois.
–Não sei se faz bem, retorqui; o doente é um solteirão e a casa não tem senhoras…
–Sua mana?
–Ha de vir cá passar uns dias, mas não póde ser antes de sabbado.
Virgilia reflectiu um instante, levantou os hombros e disse com gravidade:
–Estou velha! Ninguem mais repara em mim. Mas, para cortar duvidas, virei com o Nhonhô.
Nhonhô era um bacharel, unico filho de seu casamento, que, na edade de cinco annos, fôra complice inconsciente de nossos amores. Vieram juntos, dous dias depois; e confesso que, ao vel-os alli, na minha alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permittiu corresponder logo ás palavras affaveis do rapaz. Virgilia adivinhou-mo e disse ao filho:
–Nhonhô, não repares nosso grande manhoso que ahi está; não quer fallar para fazer crer que está á morte.
Sorriu o filho; eu creio quo tambem sorri; e tudo acabou em pura galhofa. Virgilia estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas immaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse denunciar nada; uma egualdade de palavra e de espirito, uma dominação sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocassemos, casualmente, n'uns amores illegitimos, meio secretos, meio divulgados, vi-a fallar com desdem e um pouco de indignação da mulher de que se tratava, aliás sua amiga; e o filho sentia-se satisfeito, ouvindo aquella palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões, se Buffon tivesse nascido gavião…
Era o meu delirio que começava.
CAPITULO VII
O delirio
Que me conste, ainda ninguem relatou o seu proprio delirio; faço-o eu, e a sciencia m'o agradecerá. Se o leitor não é dado á contemplação destes phenomenos mentaes, póde saltar o capitulo; vá direito á narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos.
Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinez, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.
Logo depois, senti-me transformado na Summa Theologica de S. Thomaz, impressa n'um volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; idéa esta que me deu ao corpo a mais completa immobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguem as descruzava (Virgilia de certo), porque a attitude lhe dava a imagem de um defunto.
Ultimamente, restituido á fórma humana, vi chegar um hippopotamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança, mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogal-o, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.
–Engana-se, replicou o animal, nós vamos á origem dos seculos.
Insinuei que deveria ser muitissimo longe; mas o hippopotamo não me entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas cousas; e, perguntando-lhe, visto que elle fallava, se era descendente do cavallo de Achilles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dous quadrupedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir á ventura. Já agora não se me dá de confessar que sentia umas taes ou quaes cocegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos seculos, se era tão mysteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma cousa mais ou menos do que a consummação dos mesmos seculos; tudo isto reflexões de um cerebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho; lembra-me só que a sensação de frio augmentava com a jornada, e que chegou uma occasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com effeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava n'uma planicie branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegetação de neve, e varios animaes grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei fallar, mas apenas pude grunhir esta pergunta anciosa:
–Onde estamos?
–Já passámos o Eden.
–Bem; paremos na tenda de Abrahão.
–Mas se nós caminhamos para traz! redarguiu motejando a minha cavalgadura.
Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou a parecer-me enfadonha e extravagante, o frio incommodo, a conducção violenta, e o resultado impalpavel. E depois—cogitações de enfermo—dado que chegassemos ao fim indicado, não era impossivel que os seculos, irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser tão seculares como elles. Em quanto assim pensava, iamos devorando caminho, e a planicie voava debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais tranquillamente em torno de mim. Olhar sómente; nada vi, além da immensa brancura da neve, que desta vez invadira o proprio ceu, até alli azul. Talvez, a espaços, me apparecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silencio daquella região era egual ao do sepulchro: dissera-se que a vida das cousas ficára estupida deante do homem.
Cahiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto immenso, uma figura de mulher me appareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das fórmas selvaticas, e tudo escapava á comprehensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita voz diaphano. Estupefacto, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava; curiosidade de delirio.
–Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta ultima palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o effeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas.
–Não te assustes, disse ella, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se affirma. Vives: não quero outro flagello.
–Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existencia.
–Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dôr e o vinho da miseria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciencia rehouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.
Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabellos e levantou-me ao ar, como se fôra uma simples pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorsão violenta, nenhuma expressão de odio ou ferocidade; a feição unica, geral, completa, era a da impassibilidade egoista, a da eterna surdez, a da vontade immovel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais debil e descrepito dos seres.
–Entendeste-me? disse ella, no fim de algum tempo de mutua contemplação.
–Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fabula. Estou sonhando, de certo, ou, se é verdade que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma cousa vã, que a razão ausente não póde reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagello, nem, como tu, traz esse rosto indifferente, como o sepulchro. E porque Pandora?
–Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?
–Sim; o teu olhar fascina-me.
–Creio; eu não sou somente a vida; sou tambem a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra echoou, como um trovão, naquelle immenso valle, afigurou-se-me que era o ultimo som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição subita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos supplices, e pedi mais alguns annos.
–Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do expectaculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos afflictivo: o alvor do dia, a melancholia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o somno, emfim, o maior beneficio das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
–Viver somente, não te peço mais nada. Quem me poz no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, porque te has de golpear a ti mesma, matando-me?
–Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, suppõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoismo, dizes tu? Sim, egoismo, não tenho outra lei. Egoismo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocinio da onça é que ella deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, atravez de um nevoeiro, uma cousa unica. Imagina tu, leitor, uma reducção dos seculos, e um desfilar de todos elles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos imperios, a guerra dos appetites e dos odios, a destruição reciproca dos seres e das cousas. Tal era o expectaculo, acerbo e curioso expectaculo. A historia do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a sciencia, porque a sciencia é mais lenta e a imaginação mais vaga, emquanto que o que eu alli via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevel-a seria preciso fixar o relampago. Os seculos desfilavam n'um turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delirio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim,—flagellos e delicias,—desde essa cousa que se chama gloria até essa outra que se chama miseria, e via o amor multiplicando a miseria, e via a miseria aggravando a debilidade. Ahi vinham a cobiça que devora, a colera que inflamma, a inveja que baba, e a enxada e a penna, humidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancholia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruil-o, como um farrapo. Eram as formas varias de um mal, que ora mordia a viscera, ora mordia o pensamento, e passeiava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da especie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia á indifferença, que era um somno sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagellado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atraz de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpavel, outro de improvavel, outro de invisivel, cosidos todos a ponto precario, com a agulha da imaginação; e essa figura,—nada menos que a chimera da felicidade,—ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ella ria, como um escarneo, e sumia-se, como uma illusão.
Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angustia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me puz a rir,—de um riso descompassado e idiota.
–Tens razão, disse eu, a cousa é divertida e vale a pena,—talvez monotona—mas vale a pena. Quando Job amaldiçoava o dia em que fôra concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o expectaculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa é divertida, mas digere-me.
A resposta foi compellir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os seculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham ás gerações, umas tristes, como os Hebreus do captiveiro, outras alegres, como os devassos de Commodo, e todas ellas pontuaes na sepultura. Quiz fugir, mas uma força mysteriosa me retinha os pés; então disse commigo:—«Bem, os seculos vão passando, chegará o meu, e passará tambem, até o ultimo, que me dará a decifração da eternidade.» E fixei os olhos, e continuei a ver as edades, que vinham chegando e passando, já então tranquillo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada seculo trazia a sua porção de sombra e de luz, de apathia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de systemas, de idéas novas, de novas illusões; em cada um delles rebentavam as verduras de uma primavera, e amarelleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendario, fazia-se a historia e a civilisação, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construia o tugurio e o palacio, a rude aldêa e Thebas de cem portas, creava a sciencia, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecanico, philosopho, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia á esphera das nuvens, collaborando assim na obra mysteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancholia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distrahido, viu emfim chegar o seculo presente, e atraz delle os futuros. Aquelle vinha agil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco diffuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miseravel como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e egual monotonia. Redobrei de attenção; fitei a vista; ia emfim ver o ultimo,—o ultimo!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a comprehensão; ao pé della o relampago seria um seculo. Talvez por isso entraram os objectos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo,—menos o hippopotamo que alli me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era effectivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava á porta da alcova, com uma bola de papel…