Loe raamatut: «Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial)», lehekülg 34

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Ficando só, Rubião atirou-se a uma poltrona, e viu passar muitas coisas suntuosas. Estava em Biarritz ou Compiègne, não se sabe bem; Compiègne, parece. Governou um grande Estado, ouviu ministros e embaixadores, dançou, jantou, — e assim outras ações narradas em correspondências de jornais, que ele lera e lhe ficaram de memória. Nem os ganidos de Quincas Borba logravam espertá-lo. Estava longe e alto. Compiègne era no caminho da lua. Em marcha para a lua!

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Quando desceu da lua, ouviu os ganidos do cachorro e sentiu frio nos queixos. Correu ao espelho e verificou que a diferença entre a cara barbada e a cara lisa era grande, mas que, assim lisa, não lhe ficava mal. Os comensais chegaram à mesma conclusão.

— Está perfeitamente bem! Há muito que devia ter feito isso. Não é que as barbas grandes lhe tirassem a nobreza do rosto; mas, assim como está agora, tem o que tinha, e mais um tom moderno...

— Moderno, repetiu o anfitrião.

Fora, igual espanto. Todos achavam sinceramente que este outro aspecto lhe ia melhor que o anterior. Uma só pessoa, o Dr. Camacho, posto julgasse que os bigodes e a pêra ficavam muito bem ao amigo, ponderou que era de bom aviso não alterar o rosto, verdadeiro espelho da alma, cuja firmeza e constância devia reproduzir.

— Não é por lhe falar de mim, concluiu; mas, nunca me há de ver a cara de outro modo. É uma necessidade moral da minha pessoa. Minha vida, sacrificada aos princípios, — porque eu nunca tentei conciliar princípios, mas homens, — minha vida, digo, é uma imagem fiel da minha cara, e vice-versa.

Rubião ouvia com seriedade, e acenava de cabeça que sim, que devia ser assim por força. Sentia-se então imperador dos franceses, incógnito, de passeio; descendo à rua, voltou ao que era. Dante, que viu tantas coisas extraordinárias, afirma ter assistido no inferno ao castigo de um espírito florentino, que uma serpente de seis pés abraçou de tal modo, e tão confundidos ficaram, que afinal já se não podia distinguir bem se era um ente único, se dois. Rubião era ainda dois. Não se misturavam nele a própria pessoa com o imperador dos franceses. Revezavam-se; chegavam a esquecer-se um do outro. Quando era só Rubião, não passava do homem do costume. Quando subia a imperador, era só imperador. Equilibravam-se, um sem outro, ambos integrais.

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— Que mudança é essa? perguntou Sofia, quando ele lhe apareceu no fim da semana.

— Vim saber do seu joelho; está bom?

— Obrigada.

Eram duas horas da tarde. Sofia acabava de vestir-se para sair, quando a criada lhe fora dizer que estava ali Rubião, — tão mudado de cara que parecia outro. Desceu a vê-lo curiosa; achara-o na sala, de pé, lendo os cartões de visita.

— Mas que mudança é essa? repetiu ela.

Rubião, sem nenhum sentimento imperial, respondeu que supunha ficarem-lhe melhor os bigodes e a pêra.

— Ou estou mais feio? concluiu.

— Está melhor, muito melhor.

E Sofia disse consigo que talvez fosse ela a causa da mudança. Sentou-se no sofá, e começou a enfiar os dedos nas luvas.

— Vai sair?

— Vou, mas o carro ainda não veio.

Caiu-lhe uma das luvas. Rubião inclinou-se para apanhá-la, ela fez a mesma coisa, ambos pegaram na luva, e teimando em levantá-la sucedeu que as caras encontraram-se no ar, o nariz dela bateu no dele, e as bocas ficaram intactas para rir, como riram.

— Machuquei-a?

— Não! eu é que lhe pergunto...

E riram outra vez. Sofia calçou a luva, Rubião fitou-lhe um pé que se mexia disfarçadamente, até que o criado veio dizer que a carruagem chegara. Ergueram-se, e ainda uma vez riram.

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Teso, descoberto, o lacaio abriu a portinhola do coupé, quando Sofia assomou à porta. Rubião ofereceu a mão para ajudá-la a entrar, ela aceitou o obséquio e entrou.

— Agora, até...

Não pôde acabar a frase; Rubião entrara após ela e sentara-se-lhe ao lado; o lacaio fechou a portinhola, trepou à almofada, e o carro partiu.

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Tão rápido foi tudo, que Sofia perdeu a voz e o movimento; mas, ao cabo de alguns segundos:

— Que é isto?... Sr. Rubião, mande parar o carro.

— Parar? Mas a senhora não me disse que ia sair e esperava por ele?

— Não ia sair com o senhor... Não vê que... Mande parar...

Desatinada, quis ordenar ao cocheiro que parasse; mas o receio de um possível escândalo fê-la deter-se a meio caminho. O coupé entrara na Rua Bela da Princesa. Sofia novamente pediu a Rubião que advertisse na inconveniência de irem assim, à vista de Deus e de todo mundo. Rubião respeitou o escrúpulo, e propôs que descessem as cortinas.

— Eu acho que não faz mal que nos vejam, explicou Rubião; mas, fechando as cortinas, ninguém nos vê. Se quer?

Sem aguardar resposta, desceu as cortinas de um e outro lado, e ficaram os dois a sós, porque, se de dentro podiam ver uma ou outra pessoa que passasse, de fora ninguém os via. Sós, completamente sós, como naquele dia em que às mesmas duas horas da tarde, em casa dela, Rubião lhe lançou em rosto os seus desesperos. Lá, ao menos, a moça estava livre; aqui, dentro do carro fechado, não podia calcular as conseqüências.

Rubião, entretanto, acomodara as pernas e não dizia nada.

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Sofia encolhera-se muito ao canto. Podia ser estranheza da situação, podia ser medo; mas era principalmente repugnância. Nunca esse homem lhe fez sentir tanta aversão, asco, ou outra coisa menos dura, se querem, mas que se reduzia à incompatibilidade, — como direi que não agrave os ouvidos? — à incompatibilidade da epiderme. Onde iam os sonhos de há poucos dias? Ao simples convite de um passeio, a sós, à Tijuca, subiu com ele a montanha, a galope, desmontou, ouviu palavras de adoração, e sentiu um beijo na nuca. Onde iam essas imaginações? Onde iam os olhos fixos e grandes, as mãos amigas e longas, os pés inquietos, as palavras meigas e os ouvidos cheios de misericórdia? Tudo esqueceu, tudo desapareceu, agora que ambos se achavam deveras sós, insulados pelo carro e pelo escândalo.

E os cavalos continuavam a andar, sacudindo as patas, arrastando lentamente o carro, pelas pedras da Rua Bela da Princesa. Que faria ela chegando ao Catete? Iria à cidade com ele? Pensou em seguir para a casa de alguma amiga; deixa-lo-ia dentro, diria ao cocheiro que se fosse embora. Contaria tudo ao marido. No meio daquela agonia, atravessaram-lhe o cérebro algumas memórias banais, ou estranhas à situação, como a notícia de um roubo de jóias lida de manhã nos jornais, a ventania da véspera, um chapéu. Afinal fixou-se em um só cuidado. Que lhe ia dizer o Rubião? Viu que ele continuava a olhar para a frente, calado, com o castão da bengala no queixo. Não lhe ficava mal a atitude, tranqüila, séria, quase indiferente; mas então para que se meteu no carro? Sofia quis romper o silêncio; por duas vezes moveu nervosamente as mãos; quase que a irritou a quietação do homem, cuja ação só podia ser explicada pela paixão antiga e violenta. Depois, imaginou que ele próprio estaria arrependido, e disse-lho em bons termos.

— Não vejo que me possa arrepender de coisa nenhuma, acudiu ele, voltando-se. Quando a senhora disse que era mau irmos assim, à vista do público, abaixei as cortinas. Não concordei, mas obedeci.

— Chegamos ao Catete, atalhou ela; quer que o leve a casa? Não podemos ir juntos para a cidade.

— Podemos andar à toa.

— Como?

— À toa, os cavalos vão andando e nós vamos conversando, sem que nos ouçam nem adivinhem...

— Pelo amor de Deus! não me fale assim; deixe-me, saia do carro, ou eu saio aqui mesmo, e o senhor toma conta dele. Que é que quer dizer? Bastam poucos minutos... Olhe, já dobramos para o lado da cidade; mande ir para Botafogo, vou deixá-lo à porta de casa...

— Mas eu saí há pouco de casa, vou para a cidade. Que mal há em levar-me até lá? Se é para que não nos vejam, apeio-me, em qualquer lugar, — na Praia de Santa Luzia, por exemplo, — do lado do mar...

— O melhor é descer aqui mesmo.

— Mas por que não iremos até à cidade?

— Não, não pode ser. Peço-lhe por tudo que lhe for mais sagrado! Não faça escândalo; vamos, diga-me o que é preciso para obter uma coisa tão simples? Quer que me ajoelhe aqui mesmo?

Apesar da estreiteza do espaço, ia dobrando os joelhos; mas Rubião deu-se pressa em fazê-la sentar-se outra vez.

— Não é preciso que se ajoelhe, disse com brandura.

— Obrigada; peço-lhe então por Deus, por sua mãe, que está no Céu...

— Deve estar no Céu, confirmou Rubião. Era uma santa senhora! As mães são sempre boas; mas daquela, ninguém que a conheceu poderá dizer outra coisa senão que era uma santa. E prendada, como poucas. Que dona de casa! Hóspedes, para ela, tanto fazia cinco como cinqüenta, era a mesma coisa, cuidava de tudo a tempo e a hora, e criou fama. Os escravos davam-lhe o nome de Sinhá Mãe, porque era, realmente, mãe para todos. Deve estar no Céu!

— Bem, bem, atalhou Sofia. Pois faça-me isto por amor de sua mãe; faz?

— Isto quê?

— Apear-se aqui mesmo.

— E ir a pé para a cidade? Não posso. É cisma sua; ninguém nos vê. E depois estes seus cavalos são magníficos. Já reparou como atiram as patas, lentamente, plás... plás... plás... plás...

Cansada de pedir, Sofia calou-se, cruzou os braços e coseu-se ainda mais, se era possível, ao cantinho do carro.

— Agora me lembro, pensou ela; mando parar à porta do armazém do Cristiano; digo-lhe o modo por que este homem se introduziu no coupé, os pedidos que lhe fiz e as respostas que me deu. Antes isso que fazê-lo apear misteriosamente em qualquer rua.

Entretanto, Rubião estava quieto. De vez em quando volvia no dedo o anel de brilhante, — um solitário esplêndido. Não olhava para ela, não lhe dizia nem pedia nada. Iam como um casal de aborrecidos. Sofia começava a não entender que razão o teria levado a entrar no carro. Necessidade de transporte não podia ser. Vaidade, também não; fechara as cortinas, à sua primeira queixa de publicidade. Nenhuma palavra amorosa, uma alusão remota que fosse, a medo, cheia de veneração e súplica. Era um inexplicável, um monstro.

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— Sofia... disse de repente Rubião; e continuou com pausa: — Sofia, os dias passam, mas nenhum homem esquece a mulher que verdadeiramente gostou dele, ou então não merece o nome de homem. Os nossos amores não serão esquecidos nunca, — por mim, está claro, e estou certo que nem por ti. Tudo me deste, Sofia; a tua própria vida correu perigo. Verdade é que eu te vingaria, minha bela. Se a vingança pode alegrar os mortos, terias o maior prazer possível. Felizmente, o meu destino protegeu-nos, e pudemos amar sem peias nem sangue...

A moça olhava espantada.

— Não te espantes, continuou ele; não nos vamos separar; não, não te falo de separação. Não me digas que morrerias; sei que havias de chorar muitas lágrimas. Eu não, — que não vim ao mundo para chorar, — mas nem por isso a minha dor seria menor; ao contrário, as dores guardadas no coração doem mais que as outras. Lágrimas são boas porque a pessoa desabafa. Querida amiga, falo-te assim, porque é preciso termos cautela; a nossa insaciável paixão pode esquecer esta necessidade. Temos facilitado muito, Sofia; como nascemos um para o outro, parece-nos que estamos casados, e facilitamos. Ouve, querida, ouve, alma da minha alma... A vida é bela! a vida é grande! a vida é sublime! Contigo, porém, que nome haverá que lhe possa dar? Lembras-te da nossa primeira entrevista?

Rubião disse esta última palavra, querendo pegar-lhe na mão. Sofia recuou a tempo; estava desorientada, não entendia e tinha medo. A voz dele crescia, o cocheiro podia ouvir alguma coisa... E aqui uma suspeita a abalou: talvez o intento de Rubião fosse justamente fazer-se ouvir, para obrigá-la pelo terror, — ou então para que a abocanhassem. Teve ímpeto de atirar-se a ele, gritar que lhe acudissem, e salvar-se pelo escândalo.

Ele baixinho, depois de curta pausa:

— A mim lembra-me, como se fosse ontem. Tu chegaste de carro, não era este; era um carro de praça, uma caleça. Desceste medrosa, com o véu pela cara; tremias como varas verdes... Mas os meus braços te ampararam... O sol daquele dia devia ter parado, como quando obedeceu a Josué... E contudo, minha flor, aquelas horas foram compridas como diabo, não sei por quê; a rigor, deviam ser curtas. Era talvez porque a nossa paixão não acabava mais, não acabou, nem há de acabar nunca... Em compensação, não vimos mais o sol; ia caindo para o outro lado das montanhas quando minha Sofia, ainda medrosa, saiu para a rua, e pegou de outra caleça. Outra ou a mesma? Creio que foi a mesma. Não imaginas como fiquei; parecia tonto, beijei tudo em que havias tocado; cheguei a beijar a soleira da porta. Creio que já te contei isto. A soleira da porta. E estive quase quase a ir de rastos, beijar os degraus da escada... Não o fiz, recolhi-me, fechei-me para que se não perdesse o teu cheiro; violeta, se bem me recordo...

Não, não era possível que o intuito de Rubião fosse fazer crer ao cocheiro uma aventura mentirosa. A voz era tão sumida que Sofia mal podia escutá-la; mas, se lhe custava entender as palavras, não chegava a compreender o sentido delas. A que vinha aquela história não sucedida? Quem quer que a ouvisse, aceitaria tudo por verdade, tal era a nota sincera, a meiguice dos termos e a verossimilhança dos pormenores. E ele continuou suspirando as belas reminiscências...

— Mas que caçoada é essa? atalhou finamente Sofia.

Não lhe respondeu o nosso amigo; — tinha a imagem diante dos olhos, não ouviu a pergunta, e foi andando. Citou-lhe um concerto de Gottschalk. O divino pianista melodiava ao piano; eles ouviam, mas o demônio da música levou os olhos de um para outro, e ambos esqueceram o resto. Quando a música cessou, as palmas romperam, e eles acordaram. Ai tristes! acordaram com o olhar do Palha em cima deles, um olho de onça brava. Nessa noite cuidou que ele a matasse.

— Senhor Rubião...

— Napoleão, não; chama-me Luís. Sou o teu Luís, não é verdade, galante criatura? Teu, teu... Chama-me teu; o teu Luís, o teu querido Luís. Ai, se tu soubesses o gosto que me dás quando te ouço essas duas palavras: "Meu Luís!" Tu és a minha Sofia, — a doce, a mimosa Sofia da minha alma. Não percamos estes momentos; vamos dizer nomes ternos; mas baixo, baixinho, para que os malandros da almofada do carro não escutem. Para que há de haver cocheiros neste mundo? Se o carro andasse por si, a gente falava à vontade, e iria ao fim da Terra.

Já então iam costeando o Passeio Público; Sofia não deu por isso. Olhava fixamente para Rubião; não podia ser cálculo de perverso, nem lhe atribuía mofa... Delírio, sim, é o que era; tinha a sinceridade da palavra, como pessoa que vê ou viu realmente as coisas que relata.

— É preciso pô-lo fora daqui, pensou a moça. E aparelhando-se de coragem: — Onde estaremos nós? perguntou-lhe. É ocasião de separar-nos. Veja do lado de lá; onde estamos? Parece que é o convento; estamos no Largo da Ajuda. Diga ao cocheiro que pare; ou, se quer, pode apear-se no Largo da Carioca. Meu marido...

— Vou nomeá-lo embaixador, disse Rubião. Ou senador, se quiser. Senador é melhor; ficam os dois aqui. Embaixador que fosse, não consentiria que tu o acompanhasses, e as más línguas... Tu sabes a oposição que sofro, as calúnias... Ah! ruim gente! Convento da Ajuda, disseste? Que tens tu com ele? Queres ser freira?

— Não; digo que já passamos o convento da Ajuda. Vou deixá-lo no Largo da Carioca. Ou vamos até o armazém de meu marido?

Sofia tornou a apegar-se ao segundo alvitre; não se faria suspeita ao cocheiro, provaria melhor a sua inocência ao Palha, narrando-lhe tudo, desde a entrada inesperada no carro até o delírio. E que delírio era esse? Sofia pensou que o motivo podia ser ela própria, e esta conjetura fê-la sorrir de piedade.

— Para quê? disse Rubião. Vou apear-me aqui mesmo, é mais seguro. Para que há de ele desconfiar de nós e maltratar-te? Posso castigá-lo, mas sempre me ficaria o remorso do mal que ele te causaria. Não, linda flor amiga; o vento que se atrevesse a tocar em tua pessoa, acredita que eu mandaria pôr fora do espaço, como um vento indigno. Tu ainda não conheces bem o meu poder, Sofia; anda, confessa.

Como Sofia não confessasse nada, Rubião chamou-lhe de bonita, e ofereceu-lhe o solitário que tinha no dedo; ela, porém, conquanto amasse as jóias e tivesse a intuição dos solitários, recusou medrosamente a oferta.

— Compreendo o escrúpulo, disse ele; mas não perdes por isso, porque hás de receber outra pedra ainda mais bela, e pela mão de teu marido. Far-te-ei duquesa. Ouviste? O título é dado a ele, mas tu é que és a causa. Duque... Duque de quê? Vou ver um título bonito; ou então escolhe tu mesma, porque é para ti, não é para ele, é para ti, minha mimosa. Não é preciso escolher já, vai para casa e pensa. Não te vexes; manda-me dizer o que achares mais bonito, e faço lavrar imediatamente o decreto. Também podes fazer outra coisa: escolhe, e diz-me no nosso primeiro encontro, no lugar do costume. Quero ser o primeiro que te chame duquesa. Querida duquesa... O decreto virá depois. Duquesa de minha alma!

— Sim, sim, disse ela desvairadamente, mas avisemos o cocheiro que nos leve até a casa de Cristiano.

— Não, apeio-me aqui... Pára! pára!

Rubião ergueu as cortinas, e o lacaio veio abrir a portinhola. Sofia, para tirar toda a suspeita a este, pediu novamente ao Rubião que fosse com ela à casa do marido; disse-lhe que este precisava falar-lhe com urgência. Rubião olhou um pouco espantado para ela, para o lacaio e para a rua; e respondeu que não, que iria depois.

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Apenas separados, deu-se em ambos um contraste.

Rubião, na rua, voltou a cabeça para todos os lados, a realidade apossava-se dele e o delírio esvaía-se. Andava, estacava diante de uma loja, atravessava a rua, detinha um conhecido, pedia-lhe notícias e opiniões; esforço inconsciente para sacudir de si a personalidade emprestada.

Ao contrário, Sofia, passado o susto e o espanto, mergulhou no devaneio; todas as referências e histórias mentirosas de Rubião como que lhe davam saudades, — saudades de quê? — "saudades do Céu", que é o que dizia o Padre Bernardes do sentimento de um bom cristão. Nomes diversos relampejavam no azul daquela possibilidade. Quanto pormenor interessante! Sofia reconstruiu a caleça velha, onde entrou rápida, donde desceu trêmula, para esgueirar-se pelo corredor dentro, subir a escada, e achar um homem, — que lhe disse os mimos mais apetitosos deste mundo, e os repetiu agora, ao pé dela, no carro; mas não era, não podia ser o Rubião. Quem seria? Nomes diversos relampejavam no azul daquela possibilidade.

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Espalhou-se a nova da mania de Rubião. Alguns, não o encontrando nas horas do delírio, faziam experiências, a ver se era verdadeiro o boato; encaminhavam a conversação para os negócios de França e do imperador. Rubião resvalava ao abismo, e convencia-os.

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Passaram-se alguns meses, veio a guerra franco-prussiana, e as crises de Rubião tornaram-se mais agudas e menos espaçadas. Quando as malas da Europa chegavam cedo, Rubião saía de Botafogo, antes do almoço, e corria a esperar os jornais; comprava a Correspondência de Portugal, e ia lê-la no Carceler. Quaisquer que fossem as notícias, dava-lhes o sentido da vitória. Fazia a conta dos mortos e feridos, e achava sempre um grande saldo a seu favor. A queda de Napoleão III foi para ele a captura do rei Guilherme, a revolução de 4 de Setembro um banquete de bonapartistas.

Em casa, os amigos do jantar não se metiam a dissuadi-lo. Também não confirmavam nada, por vergonha uns dos outros; sorriam e desconversavam. Todos, entretanto, tinham as suas patentes militares, o Marechal Torres, o Marechal Pio, o Marechal Ribeiro, e acudiam pelo título. Rubião via-os fardados; ordenava um reconhecimento, um ataque, e não era necessário que eles saíssem a obedecer; o cérebro do anfitrião cumpria tudo. Quando Rubião deixava o campo de batalha para tornar à mesa, esta era outra. Já sem prataria, quase sem porcelana nem cristais, ainda assim aparecia aos olhos de Rubião regiamente esplêndida. Pobres galinhas magras eram graduadas em faisões; picados triviais, assados de má morte traziam o sabor das mais finas iguarias da Terra. Os comensais faziam algum reparo, entre si, — ou ao cozinheiro, — mas Luculo ceava sempre com Luculo. Toda a mais casa, gasta pelo tempo e pela incúria, tapetes desbotados, mobílias truncadas e descompostas, cortinas enxovalhadas, nada tinha o seu atual aspecto, mas outro, lustroso e magnífico. E a linguagem era também diversa, rotunda e copiosa, e assim os pensamentos, alguns extraordinários, como os do finado amigo Quincas Borba, — teorias que ele não entendera, quando lhas ouvira outrora em Barbacena, e que ora repetia com lucidez, com alma, — às vezes, empregando as mesmas frases do filósofo. Como explicar essa repetição do obscuro, esse conhecimento do inextricável, quando os pensamentos e as palavras pareciam ter ido com os ventos de outros dias? E por que todas essas reminiscências desapareciam com a volta da razão?

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