Loe raamatut: «Grandes escolhas: Autobiografía regeneradora»
Ricardo Beltran
Grandes Escolhas
autobiografia regeneradora
© Grandes Escolhas. Autobiografia regeneradora
© Ricardo Beltran
Março 2021
ISBN papel: 978-84-685-5653-6
ISBN ePub: 978-84-685-5654-3
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Índice
Grandes Escolhas
Take I. 1998: o desencontro
Take II. A última das opções, pode ser a melhor Escolha
Take III. Os momentos de cada momento
Take IV. Crescer no retrocesso
Take V. A fome como alimento
Take VI. Retroceder no crescimento
Take VII. Mal-empregado
Take VIII. Colheitas vintage
Take IX. O propósito
Take IX. Concretizar
Take X. 2019: o reencontro
Take XI. Até já
Perdidos e Achados
Grandes Escolhas
No verão de 1998, fiz uma viagem de autocarro pela antiga e sinuosa estrada nacional que liga as cidades de Chaves e Vila Real, em Trás-os-Montes, bem no norte de Portugal. Naquele autocarro, praticamente vazio, apercebi-me da presença de um jovem Tipo inquieto, que segurava firmemente na mão um papel amarrotado como se fosse uma qualquer joia de ouro.
Durante aquela viagem, eu quis que o Tipo me fizesse um recapitulativo da sua ainda curta vida, e quis também saber o que representava afinal aquele papel amarrotado. Ao chegarmos à cidade de Vila Real — o destino final daquela viagem — confesso que tive receio de permanecer em contacto com o Tipo, e decidi desencontrar-me dele até que vinte anos mais tarde — no verão de 2019 — nos reencontrámos dentro de um gabinete médico.
A história de vida do Tipo não é um exemplo a dar nem um exemplo a seguir. Não é uma lição de moral nem tão pouco se trata de uma mensagem. Não é uma bajulação aos corajosos nem um rebaixamento aos temerosos. É uma história real, e não faltam no mundo testemunhas humanas e documentos escritos que o comprovem. E por ser real, esta história está cheia de imperfeições e contradições.
Take I.
1998: o desencontro
Sou o Tipo e tenho dezanove anos. A minha Mãe é uma daquelas Mães que Escolheu mudar de vida quando a vida mais a impedia de Escolher! Uma Mulher criada numa Família pobre no dinheiro e rica na alma, educada numa aldeia apartada do mundo e sem autorização para deixar de ser menina nem Escolher o seu futuro. No seu tempo de jovem, ou ficava condenada às mentalidades conservadoras do povo ou arranjava maneira de procurar outro destino pelo próprio pé, o que equivale a dizer, fazer uma Grande Escolha! E foi o que fez.
Em 1971, saltou da profundamente cavada aldeia da Avarenta — algures por achar entre as colinas do norte de Portugal — para aterrar de bagagem limitada em Lisboa, sem nada nem ninguém. Sem medo nem mais além.
O meu Pai, um dos muitos descendentes da Família Beltran Franco — pacíficos invasores espanhóis em terras alentejanas de Reguengos de Monsaraz —, que com o passar das gerações foram plantando vinhas e olivais para mais tarde plantarem deserção. Uma geração constrói, a segunda estabiliza e a terceira leva a posterior a recomeçar do zero. É quase sempre assim!
A minha Mãe e o meu Pai cruzaram destinos em Lisboa, e foi lá que nasci biologicamente, a 9 de março de 1979. Para dizer a verdade, o meu nascimento existencial foi aos cinco anos de idade, em Reguengos de Monsaraz, o sítio para onde os meus Pais decidiram ir morar. A bagagem foi completada pela minha Irmã e por aquela que foi, é e sempre será o meu amparo por esta vida e para além dela: a minha avó materna — Emília — que havia tido a ousadia de abandonar também a cavada aldeia da Avarenta, para se aninhar no suposto conforto do nosso lar no Alentejo. Por si só, um ato de rebeldia e coragem de uma senhora sexagenária que nos anos 80 rompeu com o tradicional e conservador amor à terra que a viu nascer para ir viver para o outro extremo do país, talvez inspirada pela fuga precoce da sua filha, minha Mãe. Mulheres de coragem e Escolha.
Aos meus cinco anos de idade, lá pousámos todos no Monte Novo, uma das herdades vinícolas dos Beltran Franco, situada nos arredores de Reguengos de Monsaraz. No Alentejo, habituei-me logo à vida no campo, entre insetos, cabras, ovelhas, coelhos, raposas, javalis, vinhas e tratoristas. Naquela linda época da minha infância, os louva-a-deus eram o único cenário que me poderia aterrorizar.
Em setembro de 1985, com seis anos de idade biológica, mas com apenas alguns meses de idade existencial, fui levado até à escola primária Conde de Monsaraz. Foi um marco profundo, pois eu já não estava habituado a lidar com seres humanos e muito menos com aquele sotaque tão encantador.
A princípio, o meu ar inocente e bondoso fez com que os miúdos mais astutos e mal-intencionados da escola me usassem como cobaia, acusando-me das suas próprias atrocidades sempre que podiam! Coisas típicas da miudagem, mas que naquela altura me causaram mossa pelo sentimento de injustiça que me abatia.
Nos primeiros recreios, os miúdos da minha turma jogavam ao berlinde ou à bola, enquanto eu me empoleirava no tronco da árvore mais acessível, tentando atrair atenções, pois naquela altura eu não conhecia qualquer tipo de atividade social ou desportiva que não fosse o convívio com a alma do campo.
Com o passar do tempo, percebi que do cimo da árvore se podiam contar histórias para a plateia. Percebi que se alguma pergunta me fosse lançada por uma só voz, a minha resposta poderia alcançar muitos ouvidos de uma só vez e, percebendo isso, deixei-me estar. Pousado.
Os intervalos das aulas passaram de ser um suplício a ser um desejo. O mundo circundante começava a intrigar-se e instintivamente percebi que a situação não poderia continuar por muito mais tempo: ou o mundo subia ao meu galho ou eu descia a estralho! E assim fiz. Desci para entender e aprender sobre os outros. Interrompi jogos de berlinde para que me perguntassem quem eu era e de onde vinha. Comecei a contar e a inventar histórias do meu mundo na herdade do Monte Novo, onde vivia, e ao mesmo tempo que os outros miúdos me ouviam, eu absorvia intuitivamente tudo o que tinham. De vítima passei a vilão, sem uma única arma na mão. De não saber nada sobre relacionamentos humanos, passei a ser o maior consumidor, criando laços muito especiais com dois miúdos, um do campo e outro da vila.
Nos entretantos dessa fase não digital tão maravilhosa, a vida abençoa-me com a proximidade de um Homem adulto que me embebedou em água. Foi o Homem que me ensinou a pescar em águas interiores e me disse um dia que «a pesca é a única atividade em que o homem não vê o seu adversário». É essa a magia da pesca, que nos ensina que o adversário invisível, imprevisível e complicado de perceber é aquele que mais contribui para a nossa evolução, semeando capacidades visíveis em nós. A pesca é o meu mentor silencioso, o processo de fermentação de todas as Escolhas que vou fazendo e o único palco em que valorizo aquilo que mais me assusta: solidão e silêncio. Sim, porque muitas vezes o nosso equilíbrio se encontra também naquilo que mais nos aflige.
Existir era naquela fase da minha vida uma celebração diária da liberdade. Eu não tinha um único brinquedo de loja, não havia nada digital nem tecnológico, mas tinha paus, pedras, fisgas e uma imaginação que me permitia fazer de uma borracha um motociclo. Tinha liberdade, natureza, simplicidade, animais, proteção, descoberta, amizades genuínas, conquista, crescimento, aprendizagem e diversão. Enfim, tudo o que qualquer criança merece. Tão simples que era a fórmula do bem-estar.
Nas férias grandes de verão era costume eu ir passar quinze dias ao outro extremo do país — Chaves — onde residem os meus Tios, que também são meus Padrinhos. Em nome da honestidade desta confissão, o único embrião que me unia àquele sítio era a «veiga» do Tio Chico, onde ele era responsável por uma manada de vacas leiteiras e algumas culturas agrícolas. Saía do campo no Alentejo para ir passar férias no verão no campo de Trás-os-Montes com o Tio Chico, Engenheiro Agrónomo à antiga, Homem de guerra do ultramar e aquele a quem nunca precisei chamar de Pai para que o nosso amor fosse paterno.
No verão de 1990, tinha eu onze anos de idade biológica e já com o Alentejo bem entranhado e embebido em mim, é-me dito que — como de costume — iria passar alguns dias das férias do verão em Chaves com os Tios. Para mim eram apenas mais quinze dias de férias de verão épicas no campo com o Tio Chico.
Mas não. Naquele verão tudo foi distinto.
Estava eu apaixonadamente a viver as minhas férias nortenhas e eis que me cai um dilúvio de alheiras em cima. Para meu espanto, a minha Mãe, Irmã e Avó chegaram também a Chaves vindas do Alentejo, apresentando um estado de espírito afagado, devastado e com muito mais malas do que as que seriam necessárias para um curto período de férias. Perguntei-lhes o que estavam ali a fazer com tantas malas, e, num raio de palavras bruscamente soletradas, foi-me dito que não mais iríamos viver no Alentejo. A minha infância, os meus Amigos e a minha identidade existencial foram-me ali retiradas.
Aquele era o resultado de um divórcio abrupto entre a minha Mãe e o meu Pai, e eu não tinha Escolhido aquilo. O maior problema nem foi o divórcio propriamente dito, porque se os meus pais assim o decidiram é porque certamente seria o melhor. O que me impactou mais foi mesmo a forma repentina e bruta como tudo se passou e como me foi retirada a minha infância, tanto no espaço como no tempo. Sofri inocentemente e em silêncio, e deixei-me ficar imergido, banhado na inocência de um miúdo de onze anos que não tem noção daquilo que o espera.
No final desse verão conturbado — em que nem sequer tinha ainda assimilado a ideia de que vivia agora a mais de quinhentos quilómetros do meu Alentejo —, indicaram-me o caminho de uma nova vida e de uma nova escola, naquele extremo escondido de Portugal, onde mentalidades e sotaques eram completamente opostos aos meus.
O sexto ano de escolaridade foi o primeiro ano de uma nova vida. O sotaque do Norte era muito raro, frio, distante. Não se jogava ao berlinde. Ninguém calçava a bota caneleira. Havia árvores no recreio, isso sim, mas não fazia sentido trepá-las de novo. Para além dos traumáticos eventos de conflito com ciganos e das primeiras extravagantes paixões consumadas, eu recordo a crueldade típica daquela idade, com os miúdos transmontanos a não me perdoarem o sotaque ou a boa relação com os cães de rua.
Continuei a crescer e a evoluir inconscientemente, mas dentro de mim a liberdade estava ainda totalmente apegada ao que me havia sido retirado. Como o Alvarinho fora do Minho. Tinha tantas saudades do meu Alentejo, dos meus Amigos, da minha infância, do meu mundo. De quem eu queria ser e de onde eu queria estar.
No final daquele primeiro difícil ano de escolaridade em Chaves, eu já tinha conseguido encontrar um ritmo social mais equilibrado e feito um par de Amigos. No entanto, o sistema escolar português obrigava a uma nova mudança de escola, quando a última coisa que eu precisava era de recomeçar tudo de novo… outra vez! Eu queria obviamente ir para a escola dos novos Amigos que tinha feito entretanto, mas como a Família decidiu mudar de bairro, a Mãe, com a melhor das intenções, Escolheu uma escola diferente, e lá fui eu de novo invadido pela necessidade de recomeçar tudo de novo.
Seguiram-se mais três anos peníveis, com aquele meu feitio tão puro, inocente e bondoso que tanto jeito dava aos demais para me fazerem de cobaia. A melhor coisa que me aconteceu naquela nova escola foi ter encontrado um miúdo também ele vindo do nada, e também ele vítima de uma rotura familiar em tudo idêntica à minha. Um Amigo da vida e para a vida.
Com tantas roturas precoces, a ter de recomeçar tudo várias vezes, um Pai a quinhentos quilómetros e uma Mãe que dava o que lhe era possível, eu hoje estou em condições de reconhecer que, perante a adversidade precoce, tive de Escolher entre perder-me ou encontrar-me. Com o passar do tempo, comecei a perceber que os miúdos transmontanos eram demasiado homogéneos e aos poucos comecei a sentir-me um pouco «especial». Era difícil de explicar, mas sem ser o rapaz mais atraente ou bem vestido, atraía para perto de mim as atenções com alguma facilidade e sem ter de trepar às árvores. Ingenuamente, nunca tentei descodificar isso e, genuinamente, deixei que o dom da palavra se tornasse no meu logótipo.
Recordo, com especial saudade, os miúdos do bairro a tocarem à campainha de minha casa para me pedirem conselhos sobre desavenças amorosas ou técnicas de conquista, numa época em que a tecnologia era uma miragem e em que ainda se trocavam cartas de amor manuscritas.
Eu começava a ter os primeiros apreciadores do meu próprio mundo. Os miúdos rebeldes, agressivos e gozões começavam a distanciar-se de mim, e eu começava finalmente a vislumbrar alguns sinais de êxito social, sem, no entanto, conseguir apagar a saudade do meu Alentejo. Em Chaves, a dor da infância, que me havia sido roubada, apenas se acentuou com o tempo e as ânsias de reencontrar os cachos outrora caídos dos meus ramos, eram muitas.
Com quinze anos de idade biológica e depois de me ter enraizado durante três anos na mesma escola, o meu «terroir» começava a ganhar uma certa identidade. No entanto, a Escolha alheia viria a prevalecer mais uma vez.
A intenção da Mãe em me inscrever num curso profissional da área financeira — contra a minha vontade — era boa, pois a nossa Família não tinha dinheiro e a ideia era eu começar a trabalhar no final do ensino secundário. Apesar de eu saber que a área financeira e matemática eram a antítese da minha essência, eu resignei-me perante a sabedoria da minha Mãe e lá fui recomeçar tudo de novo mais uma vez… numa nova escola onde não conhecia ninguém.
Naquela idade, eu já não era tão inocente nem tão Amigo de todos — passei a ser um cocktail de bondade e inocência com loucura e coragem — mas ainda pagava o preço por ser genuinamente puro. Mais uma vez, os astutos mal-intencionados da escola usavam-me como cobaia e certos eventos germinavam em mim autênticas bombas-relógio de revolta, que com o passar dos anos fui aprendendo a gerir, colocando cada vez mais armaduras em redor de mim mesmo.
Recordo, sem saudade alguma, um chico esperto da turma que escreveu uma carta insultuosa e deploravelmente humilhante a uma rapariga também da turma, que cuja natureza não tinha favorecido. A certo ponto, dei por mim a ser o principal suspeito, mesmo antes de eu próprio saber da ocorrência de tão triste evento. Mais uma vez, o meu misto de rapaz rebelde e bondoso estava a expor-me perante a vulgaridade social de alguns. Ato seguinte, fui convocado para uma reunião com diretores da escola com o intuito de me acusarem formalmente e de me aplicarem a devida sanção. A minha Mãe foi também informada pela escola e confrontou-me com as acusações.
A conversa com a minha Mãe fluiu de forma natural, e ela rapidamente reconheceu a minha total inocência, propondo-se ela própria a falar diretamente com os diretores da escola. Mantive-me firme e disse-lhe para ficar tranquila que eu resolveria aquilo sozinho.
Uns dias mais tarde, teve lugar a dita reunião. Entrei numa sala, com seis pessoas, que mais parecia um cemitério, tal não era o espírito sobrecarregado dos intervenientes. Estavam presentes o diretor-geral da escola, o diretor pedagógico, o diretor de turma, uma alegada testemunha, uma psicóloga contratada para o efeito e a própria rapariga da minha turma que havia sido vítima daquela atrocidade.
Do alto dos meus dezasseis anos de idade, sentei-me na única cadeira disponível à volta daquela mesa redonda e notei em mim um estado de ansiedade que me apaixonava! A minha ansiedade não era alimentada apenas pela sensação de medo ou de injustiça, mas, acima de tudo, por uma excitação extrema ao ver ali tanta gente disponível para que eu pudesse pôr em prática aquilo que mais me fascinava. No fundo, eu estava entusiasmado com a ideia de ter de estudar e convencer todas aquelas pessoas acerca da minha inocência e tudo o que eu mais queria era que aquela negociação começasse!
A acusação começou forte, primeiro com o diretor da escola a soletrar os valores da moral, da ética e do código de sanções que imperavam na escola. Em seguida, o diretor de turma perguntou-me por que motivo eu tinha escrito aquilo à pobre rapariga.
A minha primeira reação foi racional e pedi-lhes para me mostrarem a carta insultuosa, pois eu não sabia do que estavam a falar. Os diretores continuaram agressivos com setas apontadas a mim e eu mantive-me calmamente fixado no meu pedido, argumentando apenas que gostaria de ler o conteúdo daquela carta. Com aquela minha insistência e inflexibilidade, eu estava a querer expor-me ao máximo perante a psicóloga, que era quem segurava a carta na mão e era também a única pessoa neutra no meio daquela gente toda.
Perante a minha pacífica insistência, fez-se silêncio durante alguns segundos, e lá acederam ao meu pedido. Li aquela carta pela primeira vez em frente daquela gente toda, que me observava atentamente, à espera de algum sinal meu que me denunciasse.
O conteúdo da carta era verdadeiramente nojento e repugnante, e aquela reunião tinha todo o sentido, exceto que o acusado não deveria ser eu! Quando levantei o olhar no final da leitura, já a minha primeira reação racional se tinha convertido num mundo de emoções. Os meus olhos, carregados de lágrimas de compaixão para com aquela pobre rapariga, fixaram-se frontalmente nela e lancei-lhe, sem hesitar, a pergunta mais frontal que podia: «achas mesmo que fui eu quem te escreveu isto?»
A rapariga ficou tão contagiada pela profundidade emotiva do meu olhar e da minha simples pergunta que me declarou inocente sem hesitar! Pelo canto do olho, consegui observar a psicóloga que perante aquela minha «negociação» com a vítima, se mostrou irremediavelmente convencida. Perante aquilo, todos os outros ficaram despidos de argumentos e sem saberem o que fazer. Em seguida, já com a razão e as emoções de mãos dadas, passeei o meu olhar pelos diretores e num ápice passaram de acusadores severos a meros acusados. Ainda com as lágrimas a quererem escorrer-me pelo rosto, fiz questão de que provassem o sabor da injustiça que estavam ali a cometer, ainda que de forma respeitosa.
No final do meu discurso moralista, olhei para a psicóloga, devolvi-lhe a carta e disse-lhe que no início da reunião haviam seis juízes e um acusado na sala e que no final da reunião passou a haver seis acusados e um juiz. Desejei a todos boa sorte no curso da investigação, levantei-me e saí da sala sem sequer esperar por qualquer pedido de desculpas. No final daquela reunião, cheguei a uma das conclusões mais simples e importantes da minha vida: qualquer momento implica uma negociação, seja ela interior ou com os outros, e o sucesso da negociação não se baseia apenas no resultado final, mas sobretudo nas conquistas que fazemos pelo caminho.
Debrucei-me profundamente sobre aquele evento e inspirado em METIS, a deusa da astúcia e das habilidades, decifrei a fórmula que intuitivamente fui desenvolvendo ao longo do tempo e que tanto me viria a ajudar nas mais diversas interações humanas e espirituais.
METIS = Motivação + Estratégia + Tática + Informação + Sedução, em que:
Motivação = satisfação de necessidades;
Estratégia = preenchimento e crescimento;
Tática = essência humana, com poucos filtros;
Informação = compreensão dos elementos e necessidades, muito para além do assunto em questão;
Sedução = emoções verdadeiras e inteligência emocional.
Com METIS, o objetivo principal nunca é apenas o êxito final, mas sim o preenchimento e satisfação durante todo o percurso. Resumindo simplisticamente, é como se um vendedor de gelados se preocupasse tanto em saber se o seu cliente é diabético como em vender-lhe um gelado.
Adiante.
No décimo primeiro ano de escolaridade, estava eu numa aula de não sei o quê, e eis que entra um funcionário da escola na sala a chamar pelo meu nome. Cá fora, encontrei a minha Mãe e a minha Irmã com o rosto devastado: morrera a avó Emília, que nos acompanhara por todo o lado. Eu era o menino dos olhos dela, aquele netinho a quem ela fritava batatas fritas redondas.
Fiquei tão congelado que não derramei uma única lágrima! Eu, a criança e o adolescente mais emotivo das redondezas planetárias, reagi como se aquilo fosse um evento que ultrapassara o limite de qualquer dor. Foi o meu primeiro contacto com a morte e devo dizer que desde esse dia a minha existência neste planeta nunca mais foi a mesma. Não quero falar aqui das minhas crenças e experiências nesse campo, mas digamos que tenho uma relação muito especial com os que partem e que isso tem uma influência brutal na minha interação com os que cá continuam — incluindo eu mesmo. Com a partida da minha Avó materna, foi-se uma vida no seu corpo, mas entrou uma alma no meu mundo.
Aos dezoito anos acabei a escolaridade obrigatória na escola profissional de Chaves e, em abono da verdade, nem sei como logrei chegar até ali. Fui fazendo a escola ao ritmo da desorganização e ao som da superação pessoal. Na verdade, bastava-me um mínimo de esforço para superar obstáculos e quando me via mais apertado, dedicava-me o suficiente para passar. Como não tinha adquirido bons métodos nem bons hábitos, passava a vida a correr atrás do prejuízo, mas nunca deixei que ele me tomasse de avanço.
Supostamente, eu estava agora pronto para fazer o mesmo que a minha Irmã mais velha, ou seja, começar a trabalhar para ganhar a minha independência e ajudar a Família. No entanto, eu estava decidido a Escolher outro rumo e pedi à minha Mãe uma oportunidade para ingressar na universidade. Havia dois entraves: a situação financeira e o facto de ter frequentado a escola profissional, que não me dava preparação suficiente para encarar os exames nacionais de acesso à universidade — uma aberração do sistema de ensino português — sendo por isso necessário frequentar mais um ano preparatório numa outra escola da cidade. E assim fiz.
Resumindo a minha juventude em poucas palavras, eu vivi uma rutura cruel com aquela saída abrupta do Alentejo, seguida de quatro trocas de escola em Chaves, entre os onze e os dezoito anos, sempre a deixar raízes para trás e a ter de recomeçar praticamente tudo de novo.
Entretanto, numa conversa corriqueira com a minha Mãe, eu fiquei a saber que o meu nascimento não tinha sido planeado nem desejado! Uma importante descoberta aos dezoito anos.
Antes da candidatura à universidade, a minha Mãe deu-me uns trocos para ir de férias com dois dos poucos Amigos especiais que havia feito em Chaves. Carregámos debaixo do braço uma tenda envolta num saco do lixo preto, vinho em garrafão de plástico e lá fomos a caminho de um festival de música de verão. Entre transportes e boleias, recordo a chegada à Póvoa do Varzim, num final de dia em que vi e ouvi o mar pela primeira vez em muitos anos. As minhas lágrimas da saudade e liberdade fundiram-se com o oceano e talvez eu estivesse também a chorar a saudade da avó Emília. Afinal, naquela fase da minha vida eu ainda era aquela pessoa emotiva capaz de chorar sem qualquer pré-aviso, tal não era a forma pura e intensa com que vivia os eventos mais marcantes. Vivi aquelas primeiras férias em liberdade tão intensamente que no final do famoso festival de verão fui a figura Escolhida por um famoso jornal para ilustrar o ambiente que por lá se viveu!
Ao regressar a casa, eu fui invadido por uma força interior incrível e totalmente nova para mim, que me catapultou para uma dimensão de força interior muito estranha.
Organizei uma conversa com a minha Mãe para debater o tema da universidade, mas, para minha total frustração, o guião da Escolha alheia voltou a manifestar-se. Fui confrontado com uma proposta do género:
«Filho, a Mãe não tem meios financeiros para te pagar um quarto nem os estudos universitários numa cidade cara e longe de Chaves. Por isso, vamos ter de Escolher as universidades mais cercanas, aqui em Trás-os-Montes.»
Era perfeitamente compreensível a postura da minha Mãe, mas eu entrei num pânico e ebulição interiores tão intensos que nem o dom da palavra se soltou para argumentar perante ela. Ironicamente, naquele momento, eu queria que me roubassem a adolescência da mesma forma que não quis que me tivessem roubado a infância. Eu queria que me tirassem de Chaves e de Trás-os-Montes com a mesma intensidade com que nunca quis ter saído de Reguengos de Monsaraz e do Alentejo.
O formulário de candidatura à universidade é composto por oito opções, apresentadas por ordem decrescente de preferência. Enquanto a Mãe estava a preencher o papel, o meu ar de desespero silencioso devia ser tão evidente que ela me deixou Escolher as sétima e oitava opções! Ufa, que alívio!!!! Entre as seis primeiras opções por ela propostas, constavam as universidades de Mirandela, Bragança e Vila Real, todas em Trás-os-Montes. Quando chegou a minha vez de Escolher as tais sétima e oitava opções, coloquei Porto e Aveiro, por saber que os escassos Amigos de Chaves que eu tinha feito, iriam para essas cidades.
Tive náuseas só de pensar em ter de recomeçar tudo de novo, outra vez, e ter de ficar amarrado ali, enquanto via os meus Amigos distanciarem-se de mim, outra vez. Desculpem-me os transmontanos que devem estar a perguntar-se o porquê de tanta revolta com a região! Contudo, hoje percebo que a minha aversão às terras do norte não está necessariamente relacionada com algo de negativo que ali se respire — muito pelo contrário —, mas sim com a revolta que em mim vivia por me terem retirado cruelmente do sul.
A candidatura à universidade é entregue em mão e em versão em papel nos serviços administrativos da capital de distrito, Vila Real. E pronto, é essa a razão pela qual estou neste autocarro.
Sonhei tanto e tão intensamente nesta viagem, testemunhando cada árvore pela janela como se de um novo episódio da minha vida se tratasse. À medida que passavam os quilómetros, fui recapitulando o sinuoso caminho que vivi até aqui. O meu cérebro e alma estão numa sintonia tão sinfónica que a cada um destes quilómetros que passam, o meu corpo se agiganta e a minha passada se alarga. É como se algo de muito forte em mim se esteja a querer manifestar. Deve ser a liberdade, não sei! Talvez seja aquele espírito audaz da minha Mãe, ou talvez seja o amparo de minha Avó Emília que partiu fisicamente, mas que se encontra mais do que nunca perto de mim.
Estás a ver este papel amarrotado que tenho na mão? É o formulário da candidatura que supostamente vou entregar a seguir nos serviços administrativos. Mas isso não vai acontecer! Estou cansado que a vida e os outros me peçam constantemente para recomeçar tudo de novo, mas, desta vez, vou recomeçar com o selo de uma Escolha minha.
***
As fases da infância e da juventude são o germinar do nosso ser e são vistas pelos gurus das terapias como aquilo que define a base e os valores pelos quais o adulto se vai reger ao longo da sua vida. Pode em parte até ser verdade, mas o maior disparate que se comete é usarmos isso como justificação para as falhas maiores do adulto! É óbvio que se formos abusados sexualmente ou levarmos um grande par de cornos do nosso melhor Amigo enquanto somos jovens, não é a mesma coisa do que termos uma infância e uma juventude em que tudo é mais certinho e lógico!
É normal e expectável que, mediante os cenários vividos na juventude, o adulto se venha a comportar e a desenvolver de forma distinta, havendo, no entanto, uma grande margem de manobra para que o adulto possa Escolher entre viver mais perto ou mais longe dos seus traumas de criança. Essa é uma Escolha que fazemos e que estará sempre à nossa disposição.
Não é porque um dia somos católicos e acreditamos em curas milagrosas que no outro dia não podemos acreditar convictamente na espiritualidade e na reencarnação. Não é porque um dia vivemos longe daquilo que julgamos serem os genes das nossas raízes, que mais tarde não podemos regenerar comportamentos e formas de amar.
Por mais que queiramos dar o mérito ou acusar os outros pelo que nos acontece na vida, são sempre as nossas Escolhas de hoje que definem os estados em que nos vamos encontrar amanhã. Não importa se são Escolhas boas ou menos boas, nem importa se são Escolhas factuais ou simplesmente sobre a forma como encaramos e sentimos os eventos que nos vão surgindo na vida. O importante é ter consciência de que mesmo em situações em que o destino parece estar traçado, podemos fazer Escolhas que alteram as formas de encarar, sentir e digerir esse mesmo destino. Na maioria dos casos, não são os factos que importam, mas sim o significado que lhes damos no nosso interior.
Por razões óbvias, o Tipo não conseguiu abraçar conscientemente nenhuma vantagem daquela saída brusca do Alentejo nem de todas aquelas mudanças de escola. Por mais desamparado que se sentisse e por maior que fosse o seu sentimento de revolta, a verdade é que foi dessa forma que o Tipo se tornou no animal decidido que conheci naquele autocarro! Pareceu-me ser alguém capaz e pronto para poder Escolher, com vontade de moldar a adversidade a seu favor, transformando-a no combustível da sua própria evolução! No entanto, consegui também vislumbrar uma cegueira emergente, provocada por toda aquela revolta interior, que poderia talvez acabar por guiar o Tipo por caminhos e decisões mais instáveis e desgastantes no futuro.
Tasuta katkend on lõppenud.