O Médico Enigmático

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O Médico Enigmático
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O

Médico

Enigmático

Juan Moisés de La Serna

Traduzido por Valéria Cristina Ferreira Ventura

Editorial Tektime

2019

“O Médico Enigmático”

Escrito por Juan Moisés de La Serna

1ª edição: junho 2019

© Juan Moisés de La Serna, 2019

© Edições Tektime, 2019

Todos os direitos reservados

Distribuído por Tektime

https://www.traduzionelibri.it

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Prólogo

Tinha levado menos tempo do que o calculado no trajeto, porque com estes avanços nos meios de locomoção eu mal tinha percebido ele enquanto estava revisando algumas páginas do jornal que eu havia comprado momentos antes na estação

O que eu achei mais difícil naquela viagem foi tomar a decisão final, aquela que sempre deixa dúvidas como as borras de um bom café no fundo da xícara, sobre se a opção escolhida era a mais correta ou não, mas depois de uma noite de sono profundo resolvi o problema com determinação e comecei este que seria, sem dúvida, o meu destino mais desejado.

Finalmente me encontrei diante de um dos mais belos e majestosos portais medievais preservados, portas de pedra esculpidas com esforço e cuidado por experientes pedreiros na arte de converter o material frio e áspero das pedreiras próximas em belas colunas, lintéis e arcos.

Dedicado aos meus pais

Índice de contenido

Prólogo

CAPÍTULO 1. A VOLTA

CAPÍTULO 2. A CRUZ

CAPÍTULO 3. A CIDADE

CAPÍTULO 4. O MENINO DA ÁGUA

CAPÍTULO 5. O PARENTE

CAPÍTULO 1. A VOLTA

Tinha levado menos tempo do que o calculado no trajeto, porque com estes avanços nos meios de locomoção eu mal tinha percebido ele enquanto estava revisando algumas páginas do jornal que eu havia comprado momentos antes na estação

O que eu achei mais difícil naquela viagem foi tomar a decisão final, aquela que sempre deixa dúvidas como as borras de um bom café no fundo da xícara, sobre se a opção escolhida era a mais correta ou não, mas depois de uma noite de sono profundo resolvi o problema com determinação e comecei este que seria, sem dúvida, o meu destino mais desejado.

Finalmente me encontrei diante de um dos mais belos e majestosos portais medievais preservados, portas de pedra esculpidas com esforço e cuidado por experientes pedreiros na arte de converter o material frio e áspero das pedreiras próximas em belas colunas, lintéis e arcos.

Um monumento imperecível e imóvel, um espectador silencioso da lenta passagem das décadas que deixa de pequenas e minúsculas fendas a grandes vazios, como marcas indeléveis do passar do tempo, como sulcos indeléveis mais próprios do rosto cansado de um ancião de idade avançada.

Uma testemunha inevitável dos acontecimentos que ocorreram a seus pés, desde as épocas de maior esplendor e auge, de grande nobreza e festanças, o centro dos mais destacados senhores e o berço de distintos artistas, estudiosos e filósofos, até àquelas épocas que foram especialmente difíceis para os seus habitantes enfrentando duras batalhas, que provocaram enquanto foi possível a fuga em massa de seus vizinhos.

Uma espetacular fortaleza natural localizada na colina de uma grande rocha, como um mosteiro, distante e isolada do mundo, suas encostas são atravessadas por um amplo e sinuoso rio que a envolve como um fosso natural, que aumenta seus dotes defensivos e a transforma em um extraordinário e forte lugar a conquistar, testemunhado pelos inúmeros fracassos de seus inimigos que viram seu ímpeto frustrado para conseguir o saque tão desejado.

Uma cidade milenar com um grande património histórico-monumental com o qual se pode deleitar onde quer que se olhe, com casas antigas preservadas em tão bom estado que é fácil adivinhar como as pessoas viviam há séculos.

Um belo destino de muito charme, com edifícios centenários cheios de história, lugares escondidos que ainda cheiram a velho e que parecem melhorar a sua espetacularidade com o tempo como bom vinho.

Uma cidade rodeada de muralhas largas e guardada por ameias de ferro, cujo acesso só podia ser feito a partir daqueles enormes pórticos ricamente esculpidos e ornamentados com brasões, dentro dos quais se estendia uma rede de ruas estreitas, terminando em frente as edificações mais comemorativas ou em frente a belas praças com terraços vividamente coloridos pelas mais belas flores.

E tudo isto num lugar sem igual, uma extraordinária combinação da natureza na sua forma mais pura com a arquitetura mais modesta, que me cativou desde o primeiro momento em que a vi e cuja memória me acompanhou ao longo da minha vida, pois o tempo não tinha conseguido abalar na minha memória.

Esta era a segunda vez que eu vinha, mas agora era diferente, eu não me sinto como um estranho, um turista em busca de uma bela recordação, ansioso para viver algo memorável para contar aos meus companheiros e amigos quando eu voltar para casa, agora eu não venho de passagem, eu sinto que estou no lugar que corresponde a mim e pretendo ficar. Mas para isso eu teria que resolver uma pequena mas importante questão, para a qual eu tinha gasto muito tempo pensando em possíveis alternativas sem encontrar qualquer solução, conseguir um emprego com o qual pudesse pagar minha estadia e minha manutenção.

Anteriormente e sem ter deixado cair os anéis, eu tinha realizado muitos e variados trabalhos, desde os mais simples e ao mesmo tempo fisicamente custosos, como trabalhador de obras, até aqueles que exigiam o desenvolvimento de habilidades especiais no tratamento com as pessoas e no momento de lembrar datas e nomes, como o de guia turístico.

Eu tinha me defendido mais ou menos muito bem nestas tarefas que não implicavam qualquer responsabilidade ou obrigações maiores do que a de cumprir o meu dia de trabalho e esperar receber o pagamento correspondente no final do dia, independentemente de qual fosse a jornada de trabalho.

Ainda que seja verdade que tinha preferências entre uns trabalhos e outros, porque as forças e energias que me acompanhavam na minha juventude foram dando lugar à quietude e tranquilidade da maturidade, de modo que o esforço que fazia com as tarefas de construção ou de campo já se tornavam eternas e pouco gratificantes.

Por outro lado, o trabalho de guia era cada vez mais atraente para mim, não só porque não exigia tanta dedicação física, mas porque eu ficava muito mais grato no que diz respeito à remuneração, especialmente quando, além do pagamento acordado, obtinha generosas gratificações dos clientes que se sentiam geralmente satisfeitos por terem tido uma boa viagem, em que tinham aprendido alguns aspectos que certamente lhes eram desconhecidos.

Com este trabalho de guia aprendi muito, porque cada cliente que vinha tinha seu próprio interesse em conhecer um aspecto ou outro dos lugares que eu mostrava, até mesmo ocasionalmente o visitante conhecia detalhes da história do lugar que para mim eram desconhecidos com o qual muito me enriquecia, e ser tão bem pago me permitiu poupar algum dinheiro para viajar que no final me levou até aos mesmos portões desta cidade.

Além de aprofundar meu conhecimento dos lugares que visitei, tive uma certa curiosidade em conhecer alguns dos mistérios que envolvem a condição humana, querendo desvendar um pouco mais sobre como ao longo da história as diferentes civilizações têm levantado as mesmas questões essenciais, oferecendo respostas distintas e até contraditórias de um lugar para outro.

Querer conhecer e controlar os acontecimentos futuros, saber o que vem depois desta vida e se há algo além do que vemos e tocamos; procurar o sentido último da nossa existência ou tentar entender por que, como espécie, somos tão diferentes do resto dos seres vivos da natureza, questões importantes que cientistas, estudiosos, filósofos, oradores e até charlatães têm tentado resolver.

Todos eles procurando acalmar as consciências inquietas de alguns ansiosos por compreender o mundo que os rodeia e o seu futuro, o qual por vezes se mostra tão incerto como imprevisto, podendo se apresentar extremamente benevolente ou cruel.

Mas, para minha surpresa, em vez de encontrar uma única resposta que revela uma verdade superior, válida para todos e em todos os momentos, encontrei uma amálgama de respostas parciais, que refletia mais o interesse particular dos governantes que chefiavam os povos, sejam políticos, militares ou religiosos, do que um verdadeiro conhecimento independente do poder.

 

O que me enchia de espanto quando eu refletia sobre isso, era como o homem não havia podido chegar à verdade depois de tanto tempo?, e se tivesse chegado, o que era e por que não era conhecida e assumida por todos?

Com minhas roupas quase esfarrapadas, mais pelo excesso de uso que por falta de cuidado e higiene pessoal, passei entre aquelas massas de pedra esculpidas que formavam uma bela porta medieval, em cujo pórtico orgulhosamente mostra aquele brasão em relevo do escudo de armas de um dos maiores e mais poderosos governantes da Europa, só comparável à majestade alcançada por Napoleão ou pelo Rei Sol.

Ladeado por robustas muralhas ameaçadoras que guardavam a ricamente decorada entrada, a cujos lados se estendiam aquelas inatingíveis e grossas muralhas que separavam o mundo exterior conhecido do misterioso e tão zelosamente guardado tesouro escondido atrás das volumosas e pesadas portas de madeira, reforçadas com ferro que se cruzavam para ficar ameaçadoras, como lanças em punho.

De acordo com os anos em que esta edificação se conservou em pé e de sua espessura, atrevo-me a calcular para mim que foram milhares os operários que trabalharam nesta grande obra, tantos quantos poderiam ter sido utilizados para construir uma das catedrais majestosas da época, um inegável traço da fé férrea e da convivência e cumplicidade da religião com o poder governador do momento.

Construções assim já não são possíveis, pois requerem uma idéia clara de como chegar a um fim tão importante que vai sobreviver milhares de anos para além das breves vidas de seus construtores, tal como sucedeu antigamente para levantar as edificações mais longevas e lindas que o homem já conheceu, as pirâmides.

Foram tempos difíceis para os povos submetidos, convertidos em escravos a fim de garantir uma mão-de-obra barata, um trabalho minucioso e trabalhoso, sem outra recompensa que a de continuar vivos no dia seguinte, e com os oficiais brandindo seus chicotes à espera de que alguém se atrase para fazer uso justo deles para deixar a sua marca na pele daquele escravo.

Agora, uma situação como esta seria impensável, e ainda menos quando há tantas máquinas, elevadores e guindastes disponíveis, o que facilita grandemente qualquer tarefa pesada, com a qual parece agora ridículo ter tantos trabalhadores envolvidos numa obra tão colossal.

Além disso, agora seria desnecessário usar uns blocos de granito tão grandes, já que atualmente existem materiais mais resistentes, menos pesados e mais rápidos de instalar, dando maior segurança, mas claro, isso é agora, antes… era o único que tinham.

Era tudo tão artesanal e rudimentar, com poucas ferramentas, todas elas manuais, utilizando principalmente a força bruta acompanhado de muita perseverança e capacidade de sacrifício.

Na verdade, não invejo nenhum desses infelizes trabalhadores que, com muito esforço e sofrimento, deram forma a uma edificação tão luxuosa, pois certamente mais de um deixou sua vida neste trabalho, especialmente quando tiveram que fazê-lo sob este sol de justiça, que fadiga e esgotam a vontade dos mais determinados.

A escolha desta cidade para a qual estou indo, atravessando uma passagem pequena, mas imponente, que separa o acesso da porta interna, e que serve como o último contraforte na defesa, embora eu pudesse ter escolhido qualquer outro lugar neste momento da minha vida , senti-me internamente levado a vir aqui e tentar desvendar seus segredos.

Tenho visto muitos turistas admirar as construções antigas como as pirâmides espalhadas pelo mundo, tanto no Oriente Médio como na América Latina ou as mais recentes edificações, maravilharem-se da grandeza do Coliseu de Roma ou da altura da Torre Eiffel, em Paris.

Tenho sido testemunha de como alguém se encolhia diante de monumentos gigantescos e estátuas como a de David de Miguel Angelo, que representava a mitologia do lugar, mas o que ouvi desta cidade sempre foram maravilhas surpreendentes.

Não só por sua arquitetura rica, mas também, nem por causa de sua história, que ela tem e muito! É outra coisa! Algo que a tornou um ímã por tantos e tantos anos, como um local de culto ou de peregrinação que acolhe todos de braços abertos, sem distinguir entre homem ou mulher, grande ou pequeno, nem mesmo entre raça ou religião.

Muitas são as localidades que recebem devotos fervorosos ao longo do ano que viajam para os lugares que consideram especiais, às vezes indicados por uma construção megalítica erguida ou por uma simples travessia como sinal ou monumento natural, como montanhas ou cavernas, ou que chegam certas épocas do ano para comemorar uma data especial em que o ciclo sazonal muda como os solstícios ou um evento extraordinário como os eclipses.

Mas um lugar como este em que me encontro não é encontrado todos os dias e, felizmente, tive a sorte de poder vir e viver atrás das suas portas, na zona mais antiga e humilde, mas para mim também a mais autêntica e original.

Viajei meio caminho ao redor do mundo trabalhando como guia, visitando cada vilarejo, vila ou cidade, levando meus clientes de um lugar para outro, tentando ensiná-los e explicar o que eles estavam procurando por si mesmos.

Para alguns, eram as maiores maravilhas que a natureza havia esculpido pacientemente, durante séculos, como o Grand Canyon do Colorado ou as mais majestosas construções que se conservam atualmente.

Em contrapartida, outros procuravam o contrário, lugares humildes mas não com menos encanto, onde pudessem ver a tradição de suas festividades, tentando abordar a história em estado vivo que pode ser contemplada em algumas cidades longe das grandes multidões, onde é difícil chegar mas é difícil de ecoar, comentando nestes casos as histórias de cada lugar, por vezes muito bem documentadas e outras quase improváveis que se mantêm através da tradição oral entre os anciãos da localidade, conservando com ela a essência dos lugares visitados.

Eu mesmo fiquei surpreso com a beleza de alguns lugares que nem sequer estavam marcados no mapa, ou com o charme de alguns povoados que eram difíceis de encontrar devido ao seu pequeno tamanho, mas tudo ficou pequeno, quase insignificante, ao lado do que eu estava prestes a encontrar.

Pelo menos assim o vivia, com grande emoção e incerteza, como uma criança a quem é dado um presente embrulhado, o qual a enche de inquietação e alegria ao mesmo tempo em que fica apreensiva por saber o que está por baixo desse embrulho cativante e impressionante, maravilhosamente ornamentado com uma grande fita vermelha.

Pela minha longa experiência e pelo muito que falei com outros viajantes com quem encontrei em lugares tão estranhos e escondidos, sei o que outros sentiram e vivenciaram quando chegaram aqui, e a única coisa que eu esperava a este respeito era poder ter uma experiência pelo menos semelhante à que eles me contaram, algo que muda substancialmente a minha maneira de ver e compreender o que me rodeia, como o batismo que me introduz em uma nova vida, com o que me desperta para outra realidade e me transporta a um nível superior de compreensão de mim e dos outros, talvez estivesse esperando demais, mas se outros já haviam sido capazes de experimentá-lo antes, por que não eu?

Qualquer outra sensação de surpresa, admiração e até confusão, seria uma decepção para mim, porque já a vivi, além do efeito momentâneo que recebi quando estava presente do que me surpreendeu, nada mudou em mim. Continuei sendo o mesmo que antes daquela visão, com meus defeitos e virtudes, sem transcender para além de tudo o que conheço e sinto, tudo o contrário, ao que espero nesta cidade.

Talvez seja confiar demasiado numa construção tão antiga, é provável que eu tenha de me contentar em ter uma boa estadia e que não tenha problemas, como me aconteceu em alguma ocasião, mas, há que dizer tudo, nunca foi culpa minha, eu estava simplesmente no lugar menos indicado no momento mais inoportuno.

Ainda que isso, evidentemente, nunca tenha convencido as autoridades policiais ou judiciais, por isso tive de visitar em mais do que uma ocasião as paredes frias e húmidas da prisão, onde a boa companhia de celas era escassa, sendo bêbados, perturbadores ou reincidentes, ou os três ao mesmo tempo.

Foi um difícil aprendizado de humildade que eu tive que passar quando fui injustamente tratado, preso e mantido contra a minha vontade por dias até que o julgamento fosse realizado e eu fosse libertado, mas enquanto isso eu estava sujeito a condições tão precárias que não desejaria isso ao meu pior inimigo.

Mas por estranho que pareça, foi nesses sombrios exílios, precisamente na quietude da noite quebrada apenas pelo vaguear do carcereiro para verificar se tudo está em ordem ou pelo comentário vil de algum outro prisioneiro reclamando de seu confinamento.

Na escuridão da minha pequena sala emprestada, iluminada apenas pelo reflexo da lua cheia que é introduzida como um hóspede inesperado entre as grades de uma pequena janela no topo da cela, é então que percebi que a nossa passagem pela vida tem de ser algo mais do que uma sucessão desorganizada e por vezes arbitrária de momentos de alegria ou tristeza.

Como eu acredito que aconteceu com todos eles, eu recebi muitos paus ao longo dos anos, mas também gostei, me diverti e compartilhei minha alegria com amigos e familiares, e suponho que ainda terei muitos bons e maus momentos para viver.

Mas algo dentro de mim se quebrou na primeira noite que tive que passar encolhido em um canto daquele quarto úmido, onde eu enfrentei solidão forçada, sem ninguém ao meu lado para me apoiar ou mesmo me ouvir, assustado com a idéia de não poder acordar no dia seguinte àquela terrível experiência que superou qualquer pesadelo que eu tivesse tido antes.

Pensando nisso, a minha vida não era tão diferente da dos outros, talvez um pouco mais agitada e comovente, comparável à de qualquer marinheiro que visite vários portos, à dos pilotos de aviões que por vezes amanhecem todos os dias num país diferente, ou à de um soldado que vai onde a sua pátria o exige, Seja para impor a paz ou para participar em missões humanitárias, profissões que, a longo prazo, tornam difícil recordar todos e cada um dos locais visitados, nem sequer é possível recordar todos os bons momentos partilhados, nem as pessoas que se conhecem, sejam colegas, amigos ou qualquer outra coisa.

Talvez se eu tivesse nascido num desses grandes e inóspitos desertos, que surgem em quase todos os continentes como cogumelos que recordam a fragilidade do ecossistema em que vivemos e a necessidade de cuidar de um bem tão precioso como a água, talvez eu tivesse tido este tipo de experiência muito antes.

Se tivesse sido um nativo do deserto do Saara, outro berbere, um daqueles que atravessam as dunas sem fim, sob um sol de justiça, às vezes sem outra companhia senão a do incessante vento escaldante que caprichosamente redesenha a paisagem, seguindo caminhos que não existem mas se cruzam há gerações, fazendo caminhos com as pegadas dos dromedários, instantaneamente apagada pela brisa silenciosa que silencia a voz afogada do tempo, orientada apenas por aquelas estrelas estáticas e luminosas, e pelas belas histórias contadas de caminhante a caminhante em que se observa os lugares para abastecer-se de água ou onde se abrigar em caso de encontro com uma tempestade de areia.

Sendo assim, teria a oportunidade de experimentar, que eu não me sentiria diferente do resto, mas sim o contrário, estaria mais ligado ao mundo que me rodeia, aceitando a natureza tal como ela é, sem questionar por que acontecem certos acontecimentos, e os outros pelo que são e não pelo que possuem, sem fazer distinções entre países, raças ou religiões.

Quando você anda pelo mundo tanto quanto eu, percebe que o que une a humanidade é sua capacidade de se reinventar continuamente e que muitas vezes nos limitamos a essas fronteiras, às vezes tão absurdamente inventadas que dividem uma população ou um vale em dois, transformando em inimigos os habitantes que até aquele momento eram família e vizinhos.

Ou a linguagem, não haverá uma invenção pior do que a linguagem que separa e divide, que impede a comunicação fluida, que confunde e obstrui o processo de compreensão? Quantas vezes eu já vi outras pessoas sofrerem por não serem capazes de se comunicar adequadamente, tentando gesticular para para se explicarem, injustamente detidos, ou sofrendo a indiferença e o desprezo daqueles que não os compreendem?

Quando você quer dizer alguma coisa e os outros não te compreendem, turistas, visitantes, imigrantes ou exilados têm de enfrentar a nova realidade, vendo-se forçados a aprender um novo idioma como meio para sobreviver, e não apenas para poder encontrar um trabalho.

 

Para mim não há pior do que a invenção desses dialetos que surgiram como castigo pela arrogância humana, pelo menos é assim que os Livros Sagrados os recolhem quando se lembram com vergonha do que aconteceu com a torre de Babel, que seria a maior construção da humanidade, que chegaria com seu cume à abóbada celeste e ficou inacabada como símbolo da dissolução desse povo, que se acreditava ser tão superior.

Seja qual for a origem das línguas diferentes, estas ao longo da história, em vez de servir para comunicar-se melhor, separam e dividem comunidades em guetos, impedindo a troca de ideias e experiências fluidas, chegando a confundir e dificultar o processo do entendimento, em prol de um falso modernismo e ideal de diferenciação e independência.

Apesar de terem sido feitas muitas tentativas para ultrapassar estas diferenças, tentando dominar uma língua sobre as outras, durante muitos anos o inglês tem sido a língua dominante a nível comercial, enquanto o francês, em termos de diplomacia e relações entre países, tem sido a língua dominante. Inclusive chegou-se a criar uma língua que incluísse uma boa parte das línguas ocidentais existentes, com a ideia de substitui-las todas, estabelecendo assim uma língua única e universal, o esperanto.

Um belo sonho de unidade sob uma única língua que procurava facilitar a comunicação entre os povos, evitando assim conflitos, disputas e invejas, conduzindo ao intercâmbio e à compreensão, criando, em última análise, uma sociedade onde todos pudessem compreender, independentemente do lugar, raça ou religião de origem.

Um sonho que ficou no esquecimento, presente apenas aos mais nostálgicos e que poucos se empenham em manter vivo, com a esperança de que um dia, aquilo que nos une, superará o que nos diferencia e nos separa, e que criou tantos problemas e dificuldades no que diz respeito à convivência.

Quantas vezes vi pais sofrerem com seus filhos, detidos nas fronteiras por quererem acessar o que entendiam ser um mundo melhor para sua família, apenas por não serem capazes de se comunicar adequadamente, tentando gesticular para se explicarem, presos injustamente enquanto sofriam a indiferença e o desprezo daqueles que não entendem ou se importam em entender a sua situação.

Ou profissionais altamente qualificados que se mudam para outro país e têm de recomeçar a sua vida profissional, assumindo empregos abaixo do seu potencial e que nunca pensaram que poderiam desenvolver por serem considerados demasiado simples e desmotivantes, e tudo porque não dominavam a língua do país de acolhimento.

É o que acontece com turistas, visitantes, imigrantes ou exilados, quando eles querem dizer algo e outros não os entendem, então eles têm que enfrentar a nova realidade linguística, sendo forçados a aprender o que até agora era uma língua desconhecido, tanto para encontrar trabalho quanto para sobreviver naquele país estranho durante sua estadia.

Um esforço de adaptação que não faz distinção de idade ou condição, já que afeta a todos igualmente quando devem emigrar ou quando a permanência no país se torna algo mais longo do que uma simples viagem turística.

Mas se a injustiça se refere, o mais aborrecido para mim é o sofrimento causado de propósito e só justificado por ter a pele de outra cor ou por algo tão íntimo e pessoal, como é a prática de qualquer outra religião.

Quanta loucura no mundo, ao querer diferenciar-nos, dividir-nos e separar-nos, assinalar a uns e a outros, de acordo com sua ideologia, gênero, raça ou crença, e tudo para quê?

Talvez alguém, em algum lugar, pode considerar-se o dono da verdade, tanta dor infligida e justificada com verdades tão fracas que dificilmente cabe em sua cabeça como, “meus pais estavam nestas terras antes de vocês” ou “se eu deixá-lo eu tenho que deixar qualquer um que venha depois”.

É verdade que quando comecei esta vida de transeunte eu sabia que teria a oportunidade de conhecer em profundidade a condição humana, os melhores atos de generosidade e amor, e a sujeira mais inenarrável, que eu iria assistir a momentos de alegria e outros amargos, dos primeiros eu estou feliz e orgulhoso de ter sido capaz de participar das alegrias dos outros, dos últimos …, muito eu tive que manter o silêncio como uma forma de sobreviver, mesmo que às vezes eu tinha que morder a língua para não gritar e processar as injustiças e ultrajes a que se viam submetidos seus semelhantes.

Provavelmente nunca terei tempo para registrar minhas muitas e múltiplas aventuras ao redor do mundo, os lugares conhecidos, as pessoas com quem tive encontros esporádicos, os costumes e ritos mais estranhos e exóticos, e tudo graças a uma decisão.

Agora estou prestes a tomar a minha segunda grande decisão na vida, pelo menos eu me sinto dessa forma, é provavelmente algo trivial para os outros, sabendo onde você vive ou quanto tempo você vai ficar no mesmo lugar, mas para mim é tão importante …, quantas anedotas eu posso contar simplesmente por fechar os olhos e lembrar de um lugar nesta Terra, tantas experiências acumuladas, e mais surpreendentemente mais positivo.

É verdade que surgiram momentos de dificuldade, outros em que eu não tinha certeza que poderia sair de um deles, mas estes foram se dissipando entre os outros bons dos quais me enriqueci mais com o contato de pessoa a pessoa.

Os edifícios, monumentos, estátuas e outras obras do homem sempre me pareceram algo temporário, mesmo amostras de banalidade, cachoeiras, desfiladeiros e desertos, pelo contrário, têm sido tão semelhantes a mim de um lugar para outro, é verdade que o calor pode afetar a terra de diferentes maneiras dependendo da sua latitude ou da composição do solo, mas em ambos os casos são fendas e areia, desfiladeiros ou gargantas, por vezes quebrados por cascatas espetaculares e abundantes ou por fios finos que, como se fossem feitos de prata, lançam o seu precioso líquido no fundo do canal, mas o que sempre foi diferente foram as pessoas, cada uma com as suas experiências e experiências anteriores, com a sua forma de pensar e compreender a vida e o mundo, com as suas crenças e valores, que foi para mim uma descoberta.

Não é que me considere um filósofo ou algo assim, e por isso me atraia mais, ver e compreender a natureza humana, que outros aspectos da vida. Nada mais longe da realidade, era uma descoberta verificar como cada um tem dentro de si a possibilidade de ser o melhor e o pior de cada vez, e que só depende da vontade da pessoa.

Não só me refiro à felicidade, esse conceito para muitos nos escapa e parece estar reservado apenas para alguns poucos agraciados por pais abastados ou um negócio pessoal frutífero ou simplesmente por acaso, tornando-os felizes com um bom prêmio na loteria, mas para o resto dos mortais esse conceito de felicidade contradiz o esforço diário de se levantar e ir trabalhar, voltar depois de várias horas de trabalho duro e intenso, e ver que o que resta do dia é compartilhar com seus entes queridos os momentos de relaxamento e pouco mais, e no final da noite você pensa novamente como no dia seguinte você terá que continuar com a rotina cansativa da vida profissional, esperando por aqueles dias quase mágicos, onde tudo pode ser desejado, as férias.

Momentos de distrair-se e esquecer-se de qualquer tarefa para concentrar-se apenas em desfrutar com a família e amigos de uns dias de lazer e descanso, mas a realidade às vezes não faz nada, senão nos lembrar o que realmente é a nossa vida, e surgem problemas de última hora.

Chamadas do trabalho para resolver algum imprevisto que surgiu no escritório, problemas com os cônjuge com quem parece que você não se dá bem também como até esse momento você acreditava, e tudo acontece nesses dias mágicos, que para mais de um se tornam momentos de nervosismo desejando voltar à rotina de trabalho, mas para mim, conhecer uma pessoa ou outra tem me permitido ver e entender outras realidades, mesmo entender como outros vêem que essa vida monótona que outros reclamaram tanto.