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A Revolução Portugueza: O 31 de Janeiro (Porto 1891)

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CAPITULO XX
Triste balanço: o das victimas da insurreição

Vinte e quatro horas apoz a liquidação do movimento, espalhou-se que o numero de mortos na refrega não passara de doze – na sua maioria guardas municipaes. Entretanto, na população portuense ficou durante muito tempo a impressão de que esse numero não representava a verdade e que os cadaveres de revoltosos sepultados nos cemiterios da capital do Norte se tinham contado por centenas. O Primeiro de Janeiro, do dia immediato ao da revolta, forneceu aos seus leitores esta lista de feridos graves – muitos dos quaes vieram a fallecer dos ferimentos recebidos:

«Recolhidos no hospital do Terço.– Manuel Canedo, soldado de infantaria 10; Manuel Barreira, guarda municipal; Francisco Joaquim, guarda municipal; Manuel Maria, soldado do 10; José Joaquim Teixeira, guarda fiscal; João Manuel Gomes, guarda fiscal; Antonio Carneiro, soldado do 18; Pedro da Rocha, soldado do 10; Manuel Cardoso, cabo da municipal; João Nepomuceno, guarda fiscal; Antonio Pereira de Almeida, civil; Francisco José e José Antonio Carneiro, municipaes; João José Pereira de Azevedo Lobo e Joaquim Gomes, cabos da municipal; dr. João Henrique da Rocha, redactor da Luz; Maria Custodia Alves, costureira. Esta rapariga estava á janella da casa do sr. Henrique de Mello quando rebentou o tiroteio e recebeu uma bala no pescoço.

«Recolhidos no hospital da Misericordia. Victorino da Assumpção e Domingos da Cunha, guardas fiscaes; Antonio Joaquim, municipal; Bernardino Gonçalves Losa, cabo da municipal; Albino Cardoso, guarda fiscal; Julio Cordeiro, sargento do 18; João Aleixo, corticeiro; José Manuel da Silva Monteiro, charuteiro; Joaquim Sant'Anna, pedreiro; João de Castro, empregado forense; Antonio Gomes Junior, alfaiate; Manuel Pereira da Fonseca, chapelleiro; Cosme Campos Cabral, estudante; Marianna Rosa, serviçal.

«Recolhidos no hospital militar.– Lemos Junior, cabo do 10; um soldado do 9 e tres soldados da guarda municipal.»

Sobre o numero de mortos, dizia:

«No hospital do Terço.– Um soldado da guarda fiscal.

«No hospital da Misericordia.– José Joaquim d'Almeida, tamanqueiro; João de Carvalho, trolha; um desconhecido e José Gustavo Adolpho Alves de Almeida Guimarães.

«Nas ruas– Um desconhecido; Silverio d'Almeida Santos, guarda fiscal; Taveira, 2.º sargento; Domingos Nogueira; João, entalhador e um empregado do commercio, irmão do redactor da Republica Jayme Filinto.»

Evidentemente, esta lista era deficientissima. Tanto assim que d'ahi a dias uma nota do commissariado geral da policia indicava como despojos dos militares compromettidos no movimento:

«147 espingardas, 147 terçados, 1 espadim de official, 3 espadins de musicos, 1 bainha de espada de cavallaria, 147 patronas, 176 cinturões completos, 197 cananas, 14 cantis, 12 mochilas, 92 capacetes grandes, parte dos quaes sem a corôa real, 13 bonets da guarda fiscal, 9 instrumentos musicos, uma corneta, dois tambores, 39 capotes, um capote de official, 23 jaquetas, a maior parte das quaes pertencentes a sargentos, 173 massos de cartuchame embalado com vinte tiros cada um, 227 massos com dez tiros e uma grande porção de balas soltas.»

Reproduzindo esta nota, não queremos dizer com isso que cada um dos objectos acima enumerados tenha realmente correspondido a um morto pela revolução. A nota, em primeiro logar, expressa por uma maneira bem flagrante a intensidade do panico que se desenvolveu ao principiar o recontro na rua de Santo Antonio. Por outro lado, muitos dos militares que empunhavam esse armamento recolhido pela policia, tendo conseguido escapar á fusilaria da municipal, abrigaram-se fóra do Porto e uma grande porção d'elles fugiu para Lisboa. Em resumo: se não foram apenas doze as victimas do movimento republicano – como se pretendeu affirmar no dia seguinte ao da derrota – tambem não cremos que tivessem passado de cincoenta os cadaveres enterrados nos cemiterios.

No dia 3, á meia noite, correu no Porto que o regimento de infantaria 3, aquartelado em Santo Ovidio de camaradagem com o 18 – fôra para ali horas depois de suffocada a revolta – se insubordinara e pretendia sahir á rua dando vivas á Liberdade e á Republica. A capital do Norte tornou a viver momentos de angustiosa espectativa. Pelo espirito da população portuense de novo perpassou a visão d'outros cadaveres empilhados no Prado do Repouso… A guarda municipal, prevenida dos boatos correntes, encaminhou-se sem demora para o Campo de Santo Ovidio. Ahi, reconhecendo que nada tinha a fazer, evolucionou em varias direcções e por fim desceu á Praça de D. Pedro, ostentando a pose irritante adequada a salvadores da monarchia. De madrugada recolheu ao quartel e a cidade recuperou o socego.

Nos dias immediatos, ainda os cemiterios receberam os corpos de algumas das victimas da Revolução. Tratava-se de feridos graves operados nos hospitaes e que não tinham resistido a amputações dolorosissimas, ás trepanações e outros trabalhos cirurgicos. A par d'essa liquidação funebre, a policia e as auctoridades militares procediam a uma outra: a das creaturas que se lhes affiguravam suspeitas de republicanismo. Para mais, nas buscas realisadas em diversas casas de revoltosos haviam sido apprehendidos documentos provando a adhesão ao movimento não só de quasi todos os officiaes inferiores da guarnição do Porto mas de dezenas de militares residentes n'outros pontos do paiz. E assim, a rede lançada pelos agentes da ordem procurou abranger o maior numero possivel de elementos accusatorios, collocando ao mesmo tempo os presos politicos em situação de esmorecerem de animo pelo effeito do tratamento que lhes dispensavam.

Dil-o um testemunho insuspeito:

«Punge-me a triste situação em que se acham os revoltosos do 31 de Janeiro. Aos presos apenas é dada uma triste açorda; não teem cama nem uma enxerga ou maca, nem uma pouca de palha em que se deitem, nem uma manta em que se embrulhem. Os que dispõem d'alguns recursos mandam ir das suas casas roupas e enxergas, mas os restantes, que são o maior numero, estão dormindo nas tabuas nuas, tiritando e morrendo com frio.»

Pelo que respeita á assistencia judiciaria foram os revoltosos mais felizes. O curso do 5.º anno da Faculdade de Direito, n'um impulso de vehemente generosidade, offereceu-se em massa para defender os réus, explicando, porém, pela bocca do seu camarada dr. Lomelino de Freitas – o porta-voz do bizarro offerecimento – que «a sua attitude não implicava de modo algum profissão de fé politica nem approvação ou desapprovação dos acontecimentos.»

Os republicanos que tinham conseguido abrigar-se em Hespanha, esses, depois de socorridos pelo governo do paiz visinho, haviam recebido ordem de se afastar da fronteira, internando-se – exactamente o contrario do que succedeu mais tarde, estando no poder o sr. Canalejas e tentando o ex-capitão de artilharia Paiva Couceiro restaurar a monarchia brigantina.

A situação, em resumo, tornara-se difficil e penosa para todos os que, não partilhando da subserviencia incondicional ao regimen monarchico, se viam forçados a procurar no isolamento ou no exilio a tranquilidade que o mesmo regimen lhes negava. O governo, no proposito firme de cortar as azas á mais insignificante velleidade de resistencia, dissolvia os clubs republicanos e punha a guarda municipal constantemente de prevenção. E a sua furia contra as aggremiações democraticas attingiu taes proporções que só n'um dia mandou fechar quatorze das que então existiam em Lisboa.

CAPITULO XXI
A serenidade d'uns e o desalento de muitos

Chegado o momento da justiça militar pedir contas dos seus actos aos individuos presos por effeito da revolta, houve o maximo cuidado, nas regiões officiaes, em impedir que os depoimentos dos principaes culpados salientassem o condemnavel procedimento de varias personalidades consideradas sustentaculos do throno. Procurou-se assim dar ao grande publico, á nação inteira e até ao estrangeiro, a impressão falsissima de que a revolta de 31 de Janeiro brotára apenas dos cerebros de meia duzia de tresloucados, creaturas apagadas e de nullo valor social, sem ligação com outros elementos de superior importancia. Ao mesmo tempo, a imprensa monarchica tentou insinuar, falsamente tambem, que a maioria dos individuos presos como revolucionarios experimentára, ao embarcar nos navios-prisões, o arrependimento do seu gesto nobre e patriotico e só anceiava por alijar as responsabilidades que lhe cabiam á face das leis.

Se é certo que no decorrer da instrucção do processo e mesmo durante o julgamento em conselho de guerra alguns d'esses homens mostraram falhas de animo e de coragem, devidas essencialmente á torturante atmosphera moral que os agentes da monarchia lhes tinham creado, muitos houve – e esses constituiram o maior numero – que evidenciaram não só incomparavel dignidade como uma presença de espirito, uma serenidade verdadeiramente heroicas.

João Chagas, por exemplo, conservou uma placidez digna de registo. Dil-o um jornal da epoca:

«O brilhante escriptor não afasta de si todas as responsabilidades nem as assume todas. Acceita as que tem e não as declina, antes entende que deve ufanar-se d'ellas. Essas responsabilidades versam principalmente sobre o que elle escreveu e sobre o que se publicou no jornal que dirigia: a Republica Portugueza».

E como circulasse que no seu depoimento feito perante a auctoridade militar, o illustre pamphletario commentára acremente a attitude dubia de diversos individuos compromettidos na revolta, o mesmo jornal a que acima nos referimos accrescentou dias depois:

«É inexacto que o depoimento de João Chagas contenha censuras. Elle julga simplesmente que é nobre que responda cada qual corajosamente pelos seus actos. É correcto. João Chagas mantem a serenidade e a tranquilidade dos primeiros dias. Dorme pouco em virtude d'uma tosse que contrahiu na frialdade humida da cadeia. Será visto por um medico. Um amigo do fogoso jornalista, desejoso de lhe provar a consideração e a estima em que o tem, fez-lhe, por intermedio do digno director da cadeia, alguns offerecimentos que elle agradeceu e recusou. Consta até que affirmou, mostrando desprendimento pela vida:

 

– O ser condemnado pouco me importa. Estava um pouco cançado e o governo, mandando-me prender, offereceu-me descanço por alguns annos».

D'uma vez, porém, a serenidade de João Chagas estremeceu ao de leve. Foi no dia, em que já encarcerado a bordo, viu passar, a curta distancia do local onde se encontrava, o famoso director da Justiça Portugueza. Então, voltando-se para um companheiro de prisão, disse, apontando Santos Cardoso:

– Estamos aqui a pagar as antipathias que aquelle homem provocou…

E já que falamos de Santos Cardoso: o seu depoimento confiado ao instructor do processo não correspondeu ao que se esperava do seu aspecto energico, quasi feroz. Mostrando-se muito abatido e desanimado, declarou que não tomára parte activa no movimento insurreccional, que nada soubera antecipadamente do complot revolucionario e que apenas sahira á rua na madrugada de 31 de Janeiro depois de ter ouvido tocar a rebate na egreja da Lapa. Mais tarde descera á praça de D. Pedro e assistira na camara á proclamação da Republica. Contou, n'esta altura, um insignificante episodio occorrido dentro do edificio municipal. A seu lado, na sala, encontrava-se no momento da proclamação, um individuo envolto na bandeira do Club Democratico 15 de Novembro. Esse individuo, pretendendo deslocar-se para ir á varanda, ensarilhou o cordel da bandeira na espingarda d'um soldado e a arma cahiu no sobrado. A multidão, receiando que a espingarda se disparasse, afastou-se pressurosa do local…

Decorridos alguns dias apoz o depoimento, a esposa de Santos Cardoso foi visital-o á prisão. O antigo director da Justiça Portugueza soffreu tal choque com essa visita, que chorou desabaladamente, lamentando a sua situação e pedindo a todos que d'ella se apiedassem. «Ignorava, disse, a responsabilidade em que incorria, tomando parte no movimento; do contrario, não o teria feito». E quando teve conhecimento das declarações de Homem Christo, prestadas á policia, declarações que relatavam minuciosamente os seus trabalhos na preparação revolucionaria, então o seu desanimo tornou-se mais profundo. Succumbiu.

O jornalista Eduardo de Sousa, que collaborara na Republica Portugueza sob o pseudonymo de Gualter, esse, pretendendo fazer um depoimento revelador d'uma virilidade intemerata, lançou a policia na peugada de varios republicanos egualmente implicados no complot. A imprensa noticiosa da epoca chegou a asseverar que a defeza desse reu servira simplesmente a comprometter diversas personalidades, algumas das quaes tinham sido presas ao mesmo tempo que elle. Cremos, porem, que muito se exagerou a tal respeito e que a verdade do caso reside no proposito de atrevido exhibicionismo que acima registamos.

O sargento Abilio, n'uma carta que escreveu ao juiz affirmou desassombradamente: «sou culpado, mas ha superiores meus mais culpados do que eu».

Depoimento de Dyonisio Ferreira dos Santos Silva: «Sou republicano desde que me conheço, mas mais accentuadamente desde 11 de janeiro de 1890; no emtanto, nunca fui socio de nenhum club democratico e nunca privei com os homens dirigentes do partido republicano. Não sabia da revolta que se preparava para 31 de janeiro e não podia, portanto, ter alliciado para ella militares ou paisanos. Soube da sublevação horas antes de rebentar, porque era esse o assumpto de todas as conversas nos cafés, restaurantes, etc. Attribuo a minha prisão ao facto de ser pouco conhecido na policia…»

Tambem declarou ter sociedade na empreza do jornal Republica Portugueza; fôra presencear, como curioso, os successos do dia 31, mas não tomára a menor parte n'elles, e sentia-se, por isso mesmo, tranquillo, não receiando o resultado do seu julgamento.

Declarações do actor Verdial:« Não alliciei ninguem para a revolta; sabendo que o movimento estava para rebentar, fui ao Campo da Regeneração, onde collaborei nos episodios que ahi occorreram. Parlamentei com o coronel Lencastre, commandante de infantaria 18, e entrei depois na Camara Municipal, onde me conservei até o edificio ser atacado pelas tropas monarchicas. Só me pesa uma cousa: a lembrança de minha mulher e dos meus filhos. Comtudo, aguardo sereno, a sentença do tribunal.»

Do abbade de S. Nicolau: «Tinha por costume recolher a casa todos os dias, ás 7 da tarde, sendo falso que conspirasse na sombra contra as instituições vigentes; para elle eram boas todas as formas de governo, desde que os homens se inspirassem nos verdadeiros principios da moral e da justiça. Desilludido com respeito aos processos governativos até aqui seguidos, a Republica era para elle uma esperança, mas não a queria por meio da anarchia; os comicios realisados no theatro do Principe Real, em que figurara, deram-lhe certa notoriedade, sendo essa a origem das desventuras por que estava passando. Não era homem de acção, porque d'isso o impedia o seu caracter sacerdotal. Tendo ouvido falar no dia 30 a alguns individuos na revolta que se ia dar, sobresaltara-se com a noticia e recolhera a casa. Na manhã seguinte, sahira para fins religiosos, ouvindo então falar na reunião das tropas na praça de D. Pedro. Ao avistarem-n'o, muitos populares ergueram-lhe vivas. Entrara no edificio da camara, mas ao vêr que ali reinava a anarchia, afastara-se do local, encaminhando-se novamente para o seu domicilio. Tinha confiança em que justiça lhe seria feita…»

Alvarim Pimenta falou d'este modo: «Nunca commungara nos segredos dos dirigentes do partido democratico; como um dos societarios da empreza litteraria em que exercia o logar de administrador da Republica Portugueza, fôra presencear os factos occorridos no Campo da Regeneração e paços do concelho; mas não assistira ás reuniões preparatorias da revolução ou se envolvera nos acontecimentos que se deram.»

Do aspirante a medico naval Gomes de Faria, accusado de ter tentado revoltar a guarnição da corveta Sagres: «Não tivera o minimo conhecimento dos preparativos da revolta, pois não estava pessoalmente relacionado com os individuos indicados como promotores d'ella; nunca assistira nem fora convidado a assistir a reuniões preparatorias para a sedição. Na madrugada de 31 de janeiro fora a sua casa o 1.º sargento Abilio de caçadores 9 que o convidára a um passeio até Massarellos, afim de ambos visitarem a corveta Sagres. Estranhara a proposta, recusára a principio, mas, instado, terminára por acceder. Quando ia a sahir de casa, acompanhado do sargento Abilio, este dissera-lhe que era melhor vestir o uniforme de aspirante a medico naval, para ter mais facil ingresso na Sagres. Achara natural a observação e vestira o uniforme. Chegados ambos a Massarellos, dirigiram-se para bordo da corveta. Só n'essa occasião é que o sargento Abilio lhe dissera que se tratava de sublevar a tripulação para adherir á revolta que ia rebentar. Hesitou quando soube o papel que lhe destinavam, mas sendo republicano convicto, embora não fosse partidario dos meios violentos, não tivera forças para retroceder; por isso fôra a bordo da Sagres tentar, mas sem resultado, sublevar a guarnição. Suppozera sempre não ter incorrido em grande delicto; por esse facto não se homisiara, apesar de o terem aconselhado a fazel-o.»

Por ultimo, o depoimento do commissario geral da policia: «Estava na Praça de D. Pedro e viu alli chegarem os revoltosos. Receiando que elles o prendessem, refugiou-se n'uma casa em obras proximo do restaurante Camanho, onde trocou o fato pela blusa d'um operario. Depois subiu mais um andar e d'ahi presenceou a lucta entre os republicanos e as tropas fieis. Parte dos revoltosos destroçados na rua de Santo Antonio veiu em debandada para a praça de D. Pedro, formando aqui tres pelotões commandados pelo capitão Leitão e recolhendo mais tarde á casa da camara. Tambem viu a fuga precipitada d'um troço de cavallaria da guarda fiscal em direcção aos Clerigos e recorda-se dos nomes de varias pessoas que se envolveram no movimento.»

Escusamos dizer que o commissario geral da policia do Porto não se fez rogado para indicar ás auctoridades militares esses nomes, contribuindo assim com a sua solicitude para augmentar o numero de presos existentes a bordo dos navios fundeados em Leixões.

CAPITULO XXII
O julgamento dos revoltosos

Vamos terminar. Mas, antes de o fazermos, é de necessidade registar algumas notas colhidas no decorrer dos conselhos de guerra que sentenciaram os revoltosos. Ellas darão aos leitores d'esta modesta e desataviada narrativa uma ideia clara da forma como se procedeu no julgamento de todos esses homens e da attitude de alguns d'elles em momento tão critico e tão grave.

Depoimento do 1.º sargento Abilio:

«Narrou pormenorisadamente todos os incidentes que caracterisaram a revolta e perguntado por fim sobre as intenções com que entrára no movimento, respondeu:

« – Sim, entrei no movimento para ajudar a depôr o rei D. Carlos, porque sou republicano e tenho muitas razões para o ser. Não sou republicano de evolução, porque, por ella nem d'aqui a um seculo, julgo, teremos a republica em Portugal. O que reconheço é que fomos enganados, pois vi muitas adhesões escriptas e sabia de outras feitas verbalmente e de reuniões de camaradas meus e de outros de superior graduação.

«Sobre a sua prisão conta que foi o ultimo a retirar da casa da camara, quando já não tinha munições. Refugiou-se n'um predio da rua do Almada. Quando ali appareceram soldados da municipal a perguntar se lá estava algum militar, o dono da casa perguntou-lhe o que queria que dissesse. Elle apresentou-se. Os municipaes cruzaram ainda armas contra elle, apesar de o verem só e desarmado. Deu-se á prisão.

«O auditor insistiu com o reu para que declarasse quaes eram os militares que tinham relações com os auctores do movimento do Porto. O reu respondeu simples, mas dignamente:

« – Não senhor, não digo…

«E acentuou:

« – Não quero acusar ninguem; quanto a mim, digo que foi da melhor vontade que entrei no movimento e não declino a minha responsabilidade. Na parada do quartel fui eu quem primeiro levantou um viva á Republica».

Depoimento de Eduardo de Sousa (aspirante a medico naval):

«Declarou francamente ser republicano e repudiou por completo o seu depoimento escripto que lhe foi arrancado pela policia á força de ardis e por outros meios egualmente condemnaveis. Declarou mais ter dado a nota alegre na ceia que houve no café Suisso na vespera da revolta, assim como outros deram a nota philosophica, etc. Quanto a essa ceia, explica que era seu costume e dos demais convivas cear ali todas as noites. Accrescentou que acompanhára o movimento das tropas na qualidade de redactor da Republica Portugueza E não na de reporter como lhe chamaram».

Extracto da sessão do 2.º conselho de guerra (8 de março de 1891):

«… A parte mais interessante foi o promotor requerer acareação entre o tenente de cavallaria 6, Vaz Monteiro, do destacamento aquartelado no Porto, com o reu Thadeu Freitas, sargento de infantaria 10. Na audiencia de hontem, Thadeu disse que o referido tenente affirmára ao tenente Coelho que o esquadrão estava prompto a sahir para acompanhar os revoltosos. Chamado o tenente Vaz Monteiro, este negou ter dito semelhante cousa. Acareado com o sargento Thadeu continuou negando a pés juntos. Thadeu confirmou, acrescentando que o tenente Vaz Monteiro pedira senha ao tenente Coelho.

«Acareados ambos com este reu, Coelho disse não se recordar de semelhantes palavras. Falara no Campo da Regeneração com o tenente Vaz Monteiro, mas este apenas lhe observara: «Manuel, vae-te embora». Nada mais. O sargento Thadeu disse que era verdade tudo que tinha affirmado e que se o tenente Coelho dizia não ter ouvido as palavras do tenente Vaz Monteiro não era porque as não ouvisse. O que o levava a proceder assim era o seu cavalheirismo e a nobreza do seu bello caracter, que não queria comprometter ninguem. Que bem sabia que o tenente Coelho era um homem de honra e por isso comprehendia a sua negativa.

«O promotor requereu com urgencia auto de noticia das declarações cathegoricas do sargento Thadeu para as enviar ao quartel general, segundo o seu dever, a que não podia faltar. O incidente causou impressão, sendo todos concordes em elogiar o procedimento do tenente Coelho, que a ninguem quer comprometter».

 

Depoimento de João Chagas:

«Que o artigo da Republica Portugueza sob o titulo Terceira meditação era seu e que o artigo que se seguia a esse o não era; sabia bem de quem era, mas não o dizia. De resto, sendo elle director do jornal, folgava em poder declarar que assumia, inteira e completa, toda a responsabilidade dos artigos alli publicados. Inquirido sobre o facto de ter incitado á revolta, declarou ter incitado á revolução que não se dera, porque o movimento de 31 de janeiro não fôra um erro politico, mas um erro de gramatica, um erro de palmatoria. Respondendo á pergunta – se os artigos do seu jornal eram attentatorios das instituições vigentes – disse que os membros do tribunal bem melhor do que elle poderiam e deveriam saber de semelhante cousa.

«Era republicano e, como tal, não poderia, está bem visto, defender as instituições que julgava não convirem á felicidade da sua patria. Uma vez convencido d'isto, não recuaria deante de qualquer obstaculo ou contratempo; a sua convicção, arreigada pela força da experiencia da sociedade portugueza, era pela mudança do systema de governo. No movimento de 31 de janeiro não tomara parte pelo motivo de estar preso na cadeia da Relação, por causa da primeira querella do seu jornal, depois da lei restrictiva de Lopo Vaz contra a imprensa democratica.

«Todas as suas declarações, feitas com um tom de franqueza e sinceridade, proprias da sua nobreza de caracter, foram escutadas attentamente e produziram sensação. Ao findar o seu interrogatorio, travou-se entre elle e o auditor o seguinte dialogo:

« – Teve conhecimento antes, do movimento que havia de effectuar-se no dia 31?

« – Sim, senhor.

« – Pode dizer-me, quem lh'o disse?

« – Não quero».

Depoimento de Homem Christo:

«Contrariara o movimento, como provava pelo artigo dos Debates e pela circular do Directorio em que figura o seu nome, pela sua ida ao Porto para dissuadir Santos Cardoso e pela descompostura que por esse motivo recebeu do mesmo Santos Cardoso.

«A sua qualidade de republicano d'alma e coração não era cousa que o impedisse de vêr as cousas como ellas realmente são e lhe não permittisse discernir o que convém á Patria e ao partido do que não convém nem a uma nem a outro, e antes é prejudicial a ambos. A paixão politica não o obceca a tal ponto».

Depoimento do capitão Leitão:

« – Em abono da verdade, disse o réu, e porque não me soffre o animo vêr que um innocente está envolvido no movimento revolucionario preciso que o tribunal tome conhecimento de que o espingardeiro de infantaria 10 não tomou a minima parte na revolta. A accusação que sobre elle impende é falsa. Reconheci perfeitamente todas as praças da minha companhia e o espingardeiro não estava ali no acto da sublevação.

«A passagem mais curiosa do depoimento é, porém, a seguinte, com referencia ao coronel Lencastre de Menezes:

« – O sr. coronel disse-me então: «Obste a que entre mais gente no quartel e faça sahir os populares que estão dentro». Cumpri essa ordem e depois de a cumprir voltei para junto do sr. coronel, ouvindo distinctamente que elle dizia aos paisanos com quem falava: «Vão descançados, que eu lá estou ás seis horas. Dou-lhes a minha palavra de honra que não hostiliso o movimento.» Deram-se então muitos vivas ao coronel do 18. Isto seriam quatro horas e um quarto, o maximo quatro horas e meia. O coronel accrescentou ainda: «Preciso ordenar certas providencias para guardar os reclusos do presidio e o cofre. Os senhores já lá teem duas companhias e eu tenho pouca gente disponivel…»

«Eu entrei no movimento militar, continuou o capitão Leitão, por muitas circumstancias e não foi só a ideia de ser ou não republicano que em mim imperou; foi só pelo bem do meu paiz que trabalhei. Não sou monarchico, mas já o fui. Comecei a carreira militar apoiando o partido regenerador e em 1874, nas suas fileiras, procurei ser util ao meu paiz. Tambem militei no partido progressista, no qual julguei antever uma regeneração da minha patria. Dentro em pouco, percebi que tanto um como outro d'esses partidos nada faziam em bem da nação. Quasi todos os annos promettiam vida nova; mas não passavam d'isso; eram tudo apparencias enganadoras.

«Afinal tudo isto me chegou a fazer crer e a convencer de que todos nós – o paiz – estavamos fóra da lei e que eu, estando o paiz fóra da lei, o estava egualmente. Eu não posso permittir nem admittir que a lei seja por degraus. Eu julgo a lei superior a tudo e a todos e, portanto, não admitto irresponsabilidades a ninguem. Eu, como capitão, aquelle como coronel e este como general, todos teem deveres e obrigações e são responsaveis pelo seu cumprimento. Ha, porém, uma unica excepção – o que prova que a nossa lei não é egual para todos, (exaltando-se) não é! – Ha um unico responsavel é o rei!

«Eu sempre tive um odio profundo ao inglez – desde que me conheço (exaltando-se): os jornaes disseram que eu estava desanimado, mas não ha tal: é mentira! Tinha um tio que se bateu contra os inglezes, morrendo de 101 annos de edade. Como todos os velhos militares, gostava de narrar os seus feitos ou os dos seus camaradas. Com as suas historias, fez-me elle conceber esse odio, narrando-me algumas das infamias e torpezas da tal raça. O que me custava mais é que, depois do ultimatum, não terminassem ainda com essa alliança.

«O que eu queria e quero é um governo que traga a felicidade do paiz, que tão humilhado está. Embora preso e vilipendiado como estou, espero ainda a redempção. Considerar-me-hei feliz, se, com o que fiz, concorrer de alguma forma para o bem da patria. Não receio nem temo o castigo: o que fiz foi o principio de alguma cousa. Ficarei satisfeito, serei feliz, se a semente, fructificar. No entretanto, nada receio, além de que conto não cumprir a pena a que me condemnarem.»

Para se avaliar da maneira atrabiliaria como se lançou á conta de dezenas de individuos as responsabilidades da sublevação, basta reproduzir alguns trechos dos discursos de defeza proferidos nos conselhos de guerra:

Do Dr. Pires de Lima:

«N'uma das guerras da religião foi cercada pelos catholicos uma cidade protestante. Renderam-se os sitiados; e, conforme os usos barbaros d'esses calamitosos tempos foram todos condemnados á morte pelos invasores. Como na cidade tomada havia tambem muitos catholicos, perguntaram ao legado do papa como os haviam de distinguir dos huguenotes. «Matem-nos todos, respondeu o catholico varão; Deus lá os separará.» O mesmo se fez agora. Fôra visto qualquer individuo republicano na camara ou no campo da Regeneração? Prendam-n'o e mandem-n'o para bordo. Mas elle está innocente: É o mesmo. O tribunal lá os separará.»

Do capitão Fernando Maia:

«Acho extraordinario o que se fez aos soldados que ficaram no quartel quer de guarda, quer nas casernas. Foi um desvairamento singular a maneira como se procedeu. Que tumultuaria maneira de apreciar criminalidades e avolumar o numero dos presos! Viu-se aqui, no tribunal, bem clara e positivamente como tudo isso se fez. Prendeu-se a esmo. Quantos estavam no quartel e não cahiram nas boas graças, foram presos e de mais a mais ao engano, dizendo-se-lhes que era para averiguações, ainda com receio de que a sua justiça valesse mais do que a disciplina!

«Onde está a nota dos que se apresentaram voluntariamente? Onde a d'aquelles que nenhuma parte tomaram no movimento? Onde a relação das armas limpas e intactas? Onde a d'aquelles que tinham licença para dormir fóra? Se até appareceu aqui quem negasse a existencia d'essas licenças, quando existem n'este tribunal os documentos officiaes que as confirmam! Comprehende-se a irritação natural dos chefes contra os subordinados rebeldes, mas o sentimento da justiça, e a natural piedade para com os vencidos deviam preponderar para que se tratasse de indagar devidamente as condições especiaes em que cada um se encontrava».