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A Revolução Portugueza: O 31 de Janeiro (Porto 1891)

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CAPITULO XVI
O choque sangrento – A guarda municipal desbarata os revoltosos

As forças do commando do capitão Leitão sahiram da praça de D. Pedro e principiaram a subir a rua de Santo Antonio. Formavam uma columna «em marcha de quatro», levando á frente a banda de infantaria 10; seguia-se-lhe a guarda fiscal e iam depois caçadores 9 e aquelle regimento. A guarda municipal formava ao alto da rua, no adro escalonado de Santo Ildefonso, guardando a entrada da Batalha pelas ruas de Santa Catharina, Santo Antonio, de Santo Ildefonso, de Cimo de Villa e viela da Madeira. A entrada pelas ruas de Entreparedes e Alexandre Herculano, vedavam-na cem praças fieis da guarda fiscal. No lado nascente do antigo theatro de S. João formava cavallaria 6, cobrindo o edificio do quartel general e governo civil.

Uma multidão immensa acompanhava as forças da revolta na marcha rua de Santo Antonio acima e essa arteria do Porto tinha um aspecto quasi de festa. A maior animação e alegria illuminavam-na. Do povo sahiam brados enthusiasticos victoriando os sublevados. As senhoras que estavam ás janellas agitavam freneticamente os lenços, soltavam vivas calorosos, batiam as palmas n'um contentamento indescriptivel. A satisfação dominava tudo e todos. A marcha das forças tinha o caracter insophismavel d'um passeio triumphal, em que elles pareciam recolher os applausos pela victoria alcançada rapidamente e sem embate sensivel.

Na altura da viela chamada dos Banhos, do lado direito da rua de Santo Antonio, o povo que acompanhava os sublevados hesitou e recuou. O capitão Leitão olhou para cima, e viu a guarda municipal em attitude defensiva com as armas apontadas para a columna. Não ligou grande importancia ao facto e, como a banda de infantaria 10 continuasse a tocar, não ouviu que de Santo Ildefonso os cornetas tinham feito o signal de altomeia volta. Ia a proseguir na marcha quando presenceou que dois soldados da guarda fiscal, sahindo da fórma, se dispunham a disparar as armas contra a municipal. Correu para elles e gritou-lhes:

– Não atirem!.. A guarda não nos faz mal!..

Os homens entraram na fórma e elle então, collocando-se á frente da columna, levantou os braços, como pretendendo affirmar á municipal que a attitude dos sublevados era pacifica. De nada valeu esse expediente. A guarda, fazendo pontarias baixas, deu uma descarga que lançou o maior panico nas forças da revolta e nos populares que pejavam a rua de Santo Antonio. A marcha deteve-se. Uma commoção violenta agitou aquella massa compacta. N'um segundo, ou em menos d'um segundo, produziu-se um grande e precipitado movimento de recuo. Os populares, como por instincto, penetraram nas fileiras da columna procurando um abrigo. Impellida pela força collossal d'essa enorme multidão, a columna dissolveu-se, desordenada e a breve trecho a rua de Santo Antonio ficou juncada de corpos inanimados e dos despojos das victimas. O capitão Leitão, ferido na cabeça, abrigou-se n'uma casa proxima, acompanhado de dois corneteiros e d'uma praça da guarda fiscal e mandou fazer repetidos toques de cessar fogo. Trabalho inutil. A guarda municipal, abrigada por detraz de pedras continuou a alvejar a rua de Santo Antonio, respondendo áquelles toques com tiroteio renhido.

Entretanto, no meio de todo esse panico, os soldados revoltados ou se agrupavam junto de alguns portaes ou se deitavam no chão, offerecendo o menor alvo possivel ao fogo da guarda. E, emquanto tiveram munições, responderam com valentia ao ataque da força fiel ao regimen monarchico. Esses heroicos combatentes eram principalmente da guarda fiscal e de caçadores 9, porque o regimento de infantaria 10, estando no fundo da rua de Santo Antonio ao começar o tiroteio, fôra forçado a recuar até á casa da camara. E assim se sustentaram n'um ou n'outro ponto da rua, quasi sempre expostos aos projecteis da municipal, atirando sobre os adversarios com uma serenidade extraordinaria, desafiando impavidamente a morte.

Em certa altura, ouviram-se na praça de D. Pedro os primeiros tiros da artilharia. A bateria da Serra do Pilar intervinha na lucta para lhe pôr o ponto final. Os revoltados até então escalonados na rua de Santo Antonio desceram até ao edificio municipal e ahi se reuniram ás forças do 10, que se tinham concentrado n'esse ponto desde o começo da refrega. O capitão Leitão, havendo conseguido, depois de abandonar a casa onde se abrigara, chegar por entre quintaes e escalando muros até á Praça Nova, ainda procurou com as forças reunidas na casa da camara operar um retorno offensivo sobre a guarda municipal. Mas não houve meio, ou melhor, já era tarde para tentar a sortida. Pequenas fracções da guarda, protegendo a bateria de artilharia postada nos angulos dos Loyos e de S. Bento, começaram a atacar os sublevados encurralados nos paços do concelho e um tiro de peça, arrombando a porta do edificio, mostrou áquelles valentes que a situação se definia, irremediavelmente como a derrota da Republica.

O capitão Leitão abandonou a casa da camara e d'ahi a pouco os outros combatentes imitaram-n'o, terminando a lucta cerca das 9 da manhã. Durara duas horas.

Por este relato é facil de vêr que a victoria alcançada pela guarda municipal foi mais devida á excessiva boa-fé– chamemos-lhe assim – das tropas revolucionarias do que á coragem dos soldados fieis á monarchia. Se as forças revolucionarias houvessem marchado sobre a praça da Batalha em disposição hostil, o resultado do choque sangrento teria sido, sem duvida, bem diverso. O proprio capitão Leitão reconheceu isso mesmo no conselho de guerra a que foi submettido:

– Se eu adivinhasse que tratava com tal gente – disse elle, referindo-se ás forças do commando do major Graça – eu procederia d'outra forma e hoje não me alcunhariam de imbecil. Eu avançava com a maior serenidade e nem mesmo me passava pela mente que ia para um ataque. Suppunha-os plenamente seguros e, como já disse, tinha razões para isso. Se eu entendesse, se eu suspeitasse do que me esperava, não teria receio algum de os atacar.

«Não era a guarda municipal, que de poucas forças dispunha, pois não estava toda reunida (e nem mesmo que o estivesse) que derrotaria as forças do meu commando. Cercal-a-hia, e isso sem grandes planos estrategicos e forçal-a-hia a render-se, sem mesmo disparar um tiro. E não se daria a grande desgraça que se deu. Eu envolvia a guarda e ella não poderia resistir. Não lhes chamem, pois, valentes, porque o não são. Estava espantado de um tal procedimento. «Eu não ia para isto» – disse na casa onde entrei. E esta é a verdade; a prova é que alguem que ouviu a minha phrase já aqui a referiu. Não digo isto para declinar responsabilidades, porque não quero declinal-as…»

Incontestavelmente, a guarda municipal não poderia manter-se nas suas posições; e, nem pelo numero nem pela dextreza, conseguiria offerecer uma resistencia demorada. Alem d'isso, não estava suficientemente instruida no manejo da espingarda Kropatschek, que só muito pouco tempo antes da revolta lhe fôra distribuida; o serviço especial de policia, em que era empregada, não lhe permittia evolucionar convenientemente em combate. Pelo contrario; os seus adversarios, tendo passado pela carreira de tiro em exercicios reiterados, estavam perfeitamente aptos para se medir com ella e para a subjugar sem esforço sensivel ou grande dispendio de munições. E a prova é que a guarda se conservou sempre na defensiva, abrigada pelas varandas de pedra que guarnecem as escadas e patamares que dão accesso á egreja de Santo Ildefonso e só mudou de attitude quando a bateria de artilharia, rompendo o fogo contra o edificio municipal, rematou a contenda.

Emquanto, na rua de Santo Antonio e na praça Nova se desenrolavam os acontecimentos que acabamos de narrar, as guardas de revoltados que haviam ficado nos quarteis impediam que ali entrassem os respectivos officiaes não adherentes ao movimento e que o mesmo movimento surprehendera ainda no leito ao romper da manhã de 31 de janeiro. No quartel de caçadores 9, por exemplo, ficara uma força sob o commando do sargento Galho, que mandara armar todas as praças que ali estavam, collocando-as ás suas ordens. Instantes depois do regimento ter sahido para a revolta, essa força avistando na rua de S. Bento um troço da guarda municipal, fel-a dispersar com uma descarga. E desde manhã até ao começo da tarde, todos os officiaes que tentaram penetrar no edificio foram respeitosamente prevenidos pelo sargento Galho de que desfecharia sobre elles a sua espingarda.

Bombardeamento da Camara Municipal pelas tropas fieis ao Governo

Só ás tres horas é que esse valente militar se rendeu, abandonando o quartel ao dominio dos vencedores. O capitão Almeida Soares que havia tomado conta da guarda á cadeia da Relação, appareceu á porta principal d'aquelle edificio e intimou o sargento a entregar-se-lhe.

– Não, respondeu o revoltado.

– Mas isso é uma loucura, insistiu o capitão. A insurreição já está suffocada.

– V. ex.ª dá-me a sua palavra de honra?

– Dou.

Então o sargento Galho disparou a espingarda para o ar e franqueou as portas do quartel ao capitão Almeida Soares.

Em infantaria 10 as cousas passaram-se d'outro modo. Ahi a guarda ao quartel, composta d'um cabo e varios soldados conseguiu, ás primeiras ameaças, que os officiaes não tentassem sequer empregar a sua auctoridade hierarchica para a demover do proposito em que se encontrava. Todos elles, percebendo a inutilidade de qualquer esforço n'esse sentido, dirigiram-se á casa do commandante do regimento e só mais tarde, quando a revolta se considerou completamente suffocada é que conseguiram submetter a guarda do quartel e as praças que retiravam da lucta que se travara.

Mas, facto digno de registo: tanto n'um como n'outro quartel não se produziram violencias – aliás comprehensiveis n'um momento como esse de fundamentada agitação e irresistivel anormalidade. Violou-se é certo, a disciplina. Nem a revolução era possivel sem esse delicto. Mas ninguem faltou ao respeito individual pelos officiaes que não quizeram adherir ao movimento.

 

CAPITULO XVII
A noite negra do traidor Castro O destino de trez officiaes

Relatados assim os factos que caracterisaram essencialmente a revolta, desde o primeiro viva á Republica soltado pelo sargento Abilio até á reconquista dos paços do concelho pela guarda municipal victoriosa, não é demais uma referencia embora ligeira ao homem que, atraiçoando os seus camaradas, contribuiu de algum modo para que a noticia do movimento se divulgasse prematuramente e o contrariasse em mais d'um ponto. Esse homem, já o dissemos n'outro logar d'esta desataviada narrativa, foi o sargento Castro.

«Tendo assistido á reunião da rua do Laranjal – contou elle em conselho de guerra, depondo como testemunha accusatoria dos implicados na revolta – vi, com espanto, que se tratava d'uma representação dos sargentos ao governo, elaborada em termos taes, que era mais uma ameaça do que um pedido. Á reunião presidiu o alferes Simões Trindade. Pretendi tomar a palavra, para combater a forma como fora escripto esse documento, mas a maioria dos assistentes abafou as minhas palavras e eu retirei-me do local. No dia seguinte ao da reunião, procurei o capitão Sarsfield e narrei-lhe o succedido, para evitar que mais tarde me calumniassem…»

Mas a delação do sargento Castro não ficou por aqui. Provocando com essa narrativa ao capitão Sarsfield as perseguições que as auctoridades militares moveram dias antes da revolta aos officiaes inferiores da guarnição do Porto, o traidor, na tarde do dia 30, voltou a avisar aquelle capitão de que o movimento rebentaria na madrugada do dia seguinte. Fez a denuncia e sahiu do quartel do 18, disposto a não tornar a entrar lá dentro, porque receiava justamente que os seus camaradas de regimento, sabedores do seu acto ignobil, lhe arrancassem a pelle. Ás 11 da noite, porem, como tivesse deixado ficar no edificio a guia de marcha para Lisboa – o sargento Castro fora mandado apresentar com urgencia no ministerio da guerra – arriscou-se a penetrar novamente alli e falou ao capitão Fumega, que era o official de inspecção. O capitão, mal o viu, aconselhou-o a que se retirasse, accrescentando:

– Olhe que a sua vida corre perigo… Alguns sargentos querem matal-o por não haver adherido á conjura…

– Não tenho medo, respondeu o traidor, encaminhando-se para a secretaria.

Nessa dependencia do quartel estavam reunidos o coronel Lencastre de Menezes e o capitão Sarsfield. O coronel dirigiu ao sargento Castro conselho identico ao que já lhe dera o official de inspecção:

– O senhor desappareça do edificio, porque a sua presença aqui pode provocar um conflicto grave…

– Vim buscar a guia de marcha, replicou o traidor.

– Isso é o mesmo… Diga onde quer que eu lh'a mande amanhã de manhã…

O sargento Castro obedeceu. E abandonando o quartel foi tomar café. Depois como se fazia tarde, lembrou-se de ir dormir a uma hospedaria da praça de Santa Thereza. Quando parou á porta, principiava a accentuar-se nas ruas o movimento das tropas insurrecionadas. Tremeu de medo. O seu acto infame seria, indubitavelmente castigado e castigado com rigor, pelas forças que aclamavam a Republica. Receiando que o vissem e lhe pedissem estreitas contas da delação foi para a esquadra dos Carmelitas e alli supplicou que o não entregassem aos revoltados pelos motivos acima expostos e que reproduziu entre lamentos cobardes ao commandante da força policial.

Durante hora e meia, conservou-se recolhido n'esse abrigo, estremecendo a cada ruido indicativo da victoria dos insurrectos. Passado esse tempo veiu ordem do quartel do Carmo para toda a policia da esquadra dos Carmelitas – como das outras esquadras – auxiliar as evoluções das tropas fieis á monarchia. A esquadra ficou deserta. Cheio de terror, sentindo-se isolado no transe mais angustioso da sua vida, o sargento Castro acabou por tambem abandonar a esquadra e foi para o quartel do Carmo, onde suppunha estar em maior segurança. Ahi, apresentou-se ao official de inspecção e este vendo que elle ainda não tinha seguido para Lisboa, apesar da ordem urgente que recebera, prendeu-o incommunicavel e, no dia immediato, fel-o transportar para bordo da corveta Sagres. Na corveta detiveram-no por vinte e quatro horas e só o puzeram em liberdade quando o commandante do 18, intercedendo em seu favor, informou as outras auctoridades militares do papel repugnante que o prisioneiro desempenhara na insurreição…

Fechemos aqui a historia do traidor Castro e sigamos o destino dos trez officiaes combatentes que se salientaram nas diversas phases do movimento revolucionario. O capitão Leitão, acabada a lucta na casa da Camara, refugiou-se nas proximidades do quartel de infantaria 10 e ás 8 da noite de 31 foi ao domicilio do tenente Coelho que ahi se acolhera apoz a derrota. O tenente Coelho, surpreso, de o ver, exclamou:

– Como, pois tu aqui?

– É verdade, replicou o valente official. Que fazer agora?

– Meu caro, ou fugir ou apresentarmo-nos no quartel general. Para o caso de nos expatriarmos é preciso dinheiro que eu não tenho…

– Nem eu. Comtudo, talvez um amigo m'o empreste.

– Pois bem, concluiu o tenente Coelho, se conseguires o dinheiro necessario aos dois vem á minha casa ás duas da madrugada; se não alcançares senão o sufficiente para ti, vae só e sê feliz…

O capitão Leitão sahiu e não tardou a apparecer ao seu companheiro de lucta. Na madrugada de 1 de fevereiro, montou a cavallo e dirigiu-se a Oliveira de Azemeis. «Aqui, dil-o uma testemunha presencial, apesar de o reconhecerem, as auctoridades não o perseguiram e elle seguiu para Albergaria-a-Velha, no intuito de comer alguma cousa. Quando chegou a essa localidade, estava o padre, que tem a alcunha de O Sopas, conversando com varios individuos ácerca dos acontecimentos do Porto. Este padre tinha sido, durante doze dias, hospede de cama e meza do capitão Leitão. Ao vêr o cavalleiro, exclamou:

– «É elle!..

«Alguem recommendou ao Sopas que não denunciasse o fugitivo. Mas o padre approximou-se acto continuo do cavalleiro e disse-lhe:

– «O senhor é o capitão Leitão!

– «Não, não sou, respondeu o interpellado.

«Mas, logo a seguir, commovido, fraco – havia muitas horas que não comia – o capitão Leitão succumbiu e cahiu com uma syncope. O padre procurou o administrador e este tomando conta do foragido, encerrou-o na cadeia. Na prisão, o capitão Leitão teve nova syncope. Quando d'alli sahiu, no meio da escolta que o devia acompanhar ao Porto, dirigiu-se ao povo em phrases sentidas e a commoção que provocou foi tão intensa, que muita gente derramou sinceras lagrimas.»

No trajecto de Albergaria-a-Velha para aquella cidade, o capitão Leitão observou ao commandante da escolta:

– Sabe uma cousa… Não triumphámos na revolta de 31 porque fomos trahidos.

– Mas quem os atraiçoou no fim de contas… perguntou o commandante.

– Sou bastante generoso para não denunciar ninguem!

Na cadeia da Relação, o capitão Leitão mostrou-se por vezes excitadissimo e nunca cessou de solicitar do respectivo director que lhe consentisse vêr o filho – um rapazito de quatorze annos que ia alli levar-lhe a comida. No dia 6 de fevereiro á tarde, satisfizeram-lhe o desejo. E elle então, ao avistar a creança, ajoelhou, exclamando:

– Perdoa-me, assassinei-te!..

O tenente Coelho, esse, apresentou-se no dia 1 de fevereiro, no quartel general, aqui entregou a sua espada ao sub-chefe de estado-maior, que lhe deu voz de prisão e foi em seguida conduzido para o castello da Foz, onde ficou custodiado á vista.

O alferes Malheiro, ao que depois se affirmou, tendo sido derrubado na rua de Santo Antonio pelos populares que fugiam das descargas da guarda municipal, acolheu-se á casa d'um amigo, d'onde mais tarde passou para uma quinta do Douro e d'aqui para a Povoa do Varzim. Na Povoa embarcou n'uma canoa de pesca para a Galliza e de Vigo seguiu mais tarde para a America do Sul.

A maledicencia não poupou nenhum d'esses tres homens. Vendo-os derrotados, entreteve-se a assacar-lhes varias infamias, como se fosse necessario cobril-os de opprobrio para mais facil apotheose dos vencedores. Os jornaes da epocha, porém, registam diversos documentos que ao mesmo passo que evidenciam a qualidade dos manejos tecidos para denegrir a situação dos tres officiaes, demonstram egualmente que todos elles investiram de frente contra as insidias e calumnias espalhadas nos orgãos da monarchia. Vejamos, em primeiro logar, esta carta do capitão Leitão publicada, já depois de elle ter sido julgado e condemnado em conselho de guerra:

«Sr. redactor do «Seculo»: – Informa o Dia que minha esposa supplicára do general Scarnichia commandante da 3.ª divisão militar, o auxilio da rainha de Portugal em seu favor e que a soberana ia, com effeito, conceder-lh'o bem como a meus dois filhos. Achando-me eu separado ha annos da senhora de quem se trata, cumpre-me declarar em vista de tal informação, que nem sou solidario com os seus actos nem d'elles assumo a menor responsabilidade. Cumpre-me outrosim accrescentar quanto a meus filhos que a situação d'estes é perfeitamente independente da de minha esposa e se acham felizmente ao abrigo da regia philantropia. Lamentando que um tal facto me obrigasse a vir á imprensa desvendar um recanto da minha vida intima, etc. – Antonio do Amaral Leitão

Trechos d'uma carta do tenente Coelho:

«Sr. redactor do «Diario Popular»: – Tive por acaso conhecimento de que um jornal de Lisboa, no furor de fazer reportage, a proposito dos lamentaveis successos do dia 31 de janeiro se refere a um incidente da minha vida de estudante, deturpando-o e commentando-o de um modo insultante para mim. Indigna-me a cobardia; porque é facil e pouco perigoso insultar um preso que tem a absoluta impossibilidade de desforçar-se. Não fui eu o unico a quem aconteceu aquelle incidente, mas fui o unico que por elle respondi, sendo absolvido por unanimidade no conselho de guerra respectivo. Outros mais felizes obtiveram as suas cartas apesar de identicos incidentes.

«Pois embora tivesse sido denunciado por um camarada, não deixei de lhe perdoar o muito que soffri pelo muito que os dignos officiaes que compunham o corpo docente da escola do exercito me beneficiaram a mim. E desde que vesti a minha farda de official, desde janeiro de 1883, posso erguer bem alta a cabeça, que na minha vida não ha uma acção que me deslustre! Tenho por testemunhas toda a população de Villa Real, onde sempre tenho vivido e os officiaes que commigo serviram em infanteria 13. Desafio quem quer que seja a desmentir as minhas palavras. Transferido violentamente e violentamente exonerado de ajudante de infanteria 13, como o prova o sr. conde de Villa Real, pelo simples facto de eu ser progressista, partido em que trabalhei afanosamente, bem podera ter ficado no mesmo logar se quizesse transigir com o partido regenerador, como pode proval-o um dos homens mais honrados e illustres d'esse partido, o sr. dr. Antonio de Azevedo Castello Branco. Mas não. O meu dever era não abandonar o partido em que me alistára e assim o fiz, apesar dos innumeros sacrificios que isso me custou.

«Tendo um grande amor ao trabalho e ao estudo, todo Villa Real sabe e todos os que me conhecem testemunham como eu desde as 6 horas da manhã até ás 6 ou 7 da tarde, áparte as horas em que cumpria os meus deveres officiaes, leccionava varias disciplinas para angariar meios de subsistencia para a minha numerosa familia sem me arredar um ponto da linha recta da honra e da dignidade. – Manuel Maria Coelho

Uma carta do alferes Malheiro:

«Sr. redactor do «Jornal de Noticias»: – Tendo lido em diversos periodicos que eu tentara alliciar a força da guarda do meu commando, a fim de me acompanhar na revolta e que essa força não adheriu devido ao procedimento energico do 2.º sargento Benigno, que disse não abandonar o seu posto emquanto tivesse munições, tenho a declarar muito terminantemente que são falsas taes versões.

«Na occasião em que se apresentou o regimento de caçadores 9 em frente da cadeia, sahi do meu quarto e como visse grupos de soldados passeando, intimei-os a recolher á casa da guarda, assistindo eu mesmo a essa retirada. Disse-lhes, finalmente, que ninguem sahiria d'alli a não ser ao brado d'armas. Tudo isto que declaro é a expressão da verdade, podendo ser garantido pelo sargento que estava n'esse momento a meu lado.

«Nunca me passou pela imaginação a adhesão da força da guarda, pois n'aquelle momento de exaltação não deixei de pensar em que se tornava precisa a maior vigilancia sobre a cadeia. Seria leviano, mas não tanto como o julgam aquelles para quem escrevo esta declaração. — Augusto Rodolpho da Costa Malheiro.»

 

Repetimos: a maledicencia não poupou nenhum dos tres officiaes que se evidenciaram durante a revolta. Dias a fio bradou-se, á mistura com a divulgação dos mais censuraveis boatos, que era necessario applicar aos culpados todo o rigor das disposições penaes. Pouca gente, da affecta ao regimen e á dynastia brigantina, ponderou que a genese do movimento brotara exactamente dos erros e dos escandalos d'um e d'outra e que para os accusadores serem realmente justos precisavam, antes de mais nada, pensar nas suas proprias responsabilidades, ou nas dos partidos politicos a que pertenciam.