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Loe raamatut: «Oliveira Martins: Estudo de Psychologia»

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I
OS CARACTERES

A peça mestra da intelligencia do Sr. Oliveira Martins é a imaginação psychologica, isto é, o dom de ver e descrever interiores de alma. – É esta a faculdade que já apparece claramente nos seus primeiros trabalhos, atravez das leviandades e temeridades da sua estreia, e que crescendo, avulta eminente nos seus ultimos livros. – É ella quem faz a sua força de historiador e o seu encanto de escriptor. – É ella quem muitas vezes o ampara nas correrias da sua improvisação e suppre as lacunas visiveis da sua cultura. É ella finalmente quem, habilitando-o a decifrar os compostos sociaes pelos compostos individuaes o mune da capacidade pratica, e o arma com a aptidão politica.

Em que consiste essa faculdade? Consiste na representação minuciosa e exacta dos estados da sensibilidade e da intelligencia alheia, e na intuição precisa e completa dos phenomenos da propria intelligencia e sensibilidade. Todos possuem a primeira d'estas aptidões em grau sufficiente para se adequarem ao meio social em que vivem; e a segunda, para se perceberem como um todo distincto e individual. Mas em certos espiritos essa faculdade existe em grau desmedido, e os homens que a possuem são capazes de notar as mais delicadas e fugitivas impressões da sua alma e da alma alheia, de observar os sentimentos e os pensamentos mais incoerciveis, de conservar a sua curiosidade attenta e activa mesmo sob a acção ardente da dor e do prazer physico, ou sob o surdo encanto da comprehensão e da invenção. Quando ella attinge o seu maximo, as intelligencias culminantes em que apparece, Balzac e Shakespeare por exemplo, podem transformar-se nas suas creações e viver nos seus personnagens com uma intensidade adequada á realidade; e como essa imaginação é n'elles tão extensa como exacta, a sua obra será egual á natureza em quantidade e qualidade: o analysta francez escreverá a Comedia humana e fará passar na tela do romance em tropel vivo, cortezãs, forçados, magistrados, sacerdotes, industriaes, poetas, todos os estados da vontade desde a indecisão até ao crime, todas as modalidades da intelligencia desde a inepcia até ao genio: o poeta inglez comporá o seu theatro e dará a theoria completa das paixões e das imagens tal como a construem laboriosamente a psychologia e a clinica. Esta especie de imaginação é a mais preciosa entre todas; o espirito que a possue transforma-se por sympathia nos objectos que descreve; é ella quem faz do romance uma autopsia e da historia um confessionario. É o dom dos avataras, e o seu nome é legião.

O Sr. Oliveira Martins possue em grau raro esta faculdade rara entre nós. Os exemplos abundam na sua obra, e tão numerosos que constituem prova. Tomal-os-ei d'aquelles livros em que não é visivel uma influencia extranha, e onde a sua originalidade é incontestavel. Á portada da sua Historia de Portugal está o parallelo das duas nações peninsulares, pagina veridica e profunda que abre com esplendor essa galeria magnifica de retratos.

«Ha no genio portuguez o que quer que é de vago e fugitivo, que contrasta com a terminante affirmativa do castelhano; ha no heroismo lusitano uma nobreza que differe da furia dos nossos vizinhos; ha nas nossas lettras e no nosso pensamento uma nota profunda ou sentimental, ironica ou meiga, que em vão se buscaria na historia da cultura hispanhola, violenta sem profundidade, apaixonada mas sem entranhas, capaz d'invectivas, mas alheia a toda a ironia, amante sem meiguice, magnanima sem caridade, mais que humana muitas vezes, outras abaixo da craveira do homem a entestar com as feras. Tragica e ardente sempre, a historia hispanhola differe da portugueza, mais propriamente epica; e as differenças da historia traduzem as dissemelhanças do caracter. Confronte-se Calderon com Camões, Garrett com Espronceda; ver-se-á a verdade da affirmação e a sagacidade do historiador.»

Tão lucido na psychologia do individuo como na dos povos, leia-se o retrato do primeiro rei: dissipadas com o clarão da critica as nevoas do patriotismo, superada com o alcance da vista a grandeza da distancia, o vulto do fundador da monarchia apparece vivo, alumiado de frente, na plena resurreição da historia.

«Quem era Affonso Henriques? Já amestrado no officio de reinar, á maneira porque então se entendia um tal officio, o moço principe reunia as condições necessarias para consolidar uma independencia até ahi precaria. Era audaz, temerario até, pessoalmente bravo, qualidade nem tão commum no tempo, como a muitos acaso pareça. Fraco general, ao que se vê, porque as batalhas feridas com as tropas leonezas perdeu-as sempre, era feliz guerrilheiro. Capitaneando um troço de soldados, cahia d'improviso sobre um logar, e a furia irresistivel do ataque deu-lhe a maior parte das suas victorias. Nem a grandeza das empresas o assustava, nem as distancias o impediam de acudir, a um tempo, do extremo norte quasi ao extremo sul do paiz. A estes dotes militares reunia outros não menos valiosos, dada a precaria situação em que se apossara do reino. Era secco, astuto, friamente ambicioso, sem chimeras nem illusões. Era um espirito mediocremente pratico, e isso fazia boa parte da sua força: mal dos politicos ao mesmo tempo apostolos! Como a tenra haste que verga á mais leve briza do cannavial, assim Affonso Henriques, sem rebuços obedecia, logo que a sorte lhe era adversa. Passada a tormenta erguia-se; e á facilidade astuta com que se humilhara, respondia logo a teima perfida com que se rebellava. Isto fazia-o indomavel. Ubiquo militarmente, era nos negocios um Proteu. Os seus inimigos, leonezes, sarracenos, não achavam por onde prendel-o. Submisso e humilde quando se achava vencido, subscrevia a todas as condições, acceitava todas as durezas, para logo mentir a todas as promessas, rasgar todos os tratados, com uma franqueza ingenua, uma simplicidade natural que chegaram a espantar a propria Edade-média. Nem brios cavalleirosos, nem sentimentos de familia, nem odios pessoaes, nem vinganças estupendas: nenhuma chimera, nenhuma grande ambição, nenhum poetico sentimento enchiam a sua cabeça estreita e inteiramente occupada pela idéia fixa de consolidar a sua independencia. O predominio absoluto d'uma idéia pratica, servida por uma intelligencia lucida, por um caracter sem grandeza e por uma valentia provada, tornavam-no invencivel, ainda mesmo quando era batido. A sua teima fazia-o semelhante a uma lamina de aço: um instante vergada por um esforço momentaneo, logo estendida e livre; impossivel de manter curvada desde que foi solta. O seu pensamento tinha a tenacidade da mola, e não a rijeza do bronze nem o peso do chumbo. Vivia dentro do seu Portugal como um javardo no seu refojo: assaltado, investia, despedaçando tudo com as suas fortes presas. Perseguido, fugia. Não tinha a nobreza do leão, nem a ferina astucia do tigre: possuia só a brava e bronca tenacidade do javali. Um fraco apenas lhe notam, embora os actos da sua vida não denunciem que esse defeito o prejudicasse muito: gostava de ser adulado.»

Mais interressante ainda é o retrato do primeiro Pedro. O psychologo multiplicou aqui os pormenores e os casos da vida privada, porque o vulto que quiz descrever tem um alcance mais social do que politico. Para o comprehender abandona os habitos intellectuaes modernos, a reflexão pautada e a emoção equilibrada; e em presença do velho rei faz resurgir em si a visão concreta e os sentimentos de terror e amor que elle devia provocar n'um camponez ou n'um burguez do seculo XIV. Para ver e fazer ver esse vulto tão pittoresco, não compõe uma dissertação, pinta um quadro. O historiador faz-se subdito do rei que historía, e fechando os olhos vê surgir na tela interior a apparição colorida e nitida, dotada de vida e capaz de viver. Leiam-se essas paginas singulares, attente-se n'este retrato do rei gago e feio, temido e amado do seu povo; uma palavra acode á mente: é uma allucinação; uma allucinação auditiva e visual completada pela resurreição das emoções correspondentes.

«D. Pedro tinha a paixão da justiça: era n'elle uma mania como em seu avô o fora a guerra. Não prescindia de julgar todos os delictos. Os criminosos vinham á côrte, desde os remotos confins do reino. Quando algum chegava, manietado, e o rei comia, levantava-se pressuroso da mesa, e trocava a vianda pela tortura. Prazia-se em ajudar e dirigir os algozes; indicava os expedientes e processos para obter a confissão dos reos. Nunca abandonnava o açoute enrolado á cinta em viagem, tomava d'elle, e por suas mãos castigava o facinora que no caminho lhe traziam. Os adulteros mereciam-lhe um odio especial; jámais lhes perdoava. D. Pedro tinha um escudeiro, Affonso Madeira, luitador e travador de grandes ligeirices, a quem, embora o amasse mais que se deve aqui de dizer, o rei mandou castrar, porque peccou com Catarina Tosse: – o rapaz engrossou, e morreu depois da sua natural door. Certa mulher era infiel ao marido, que nem por isso se offendia: offendeu-se o rei, e mandou-a queimar; ao esposo desolado respondeu que lhe devia alviçaras pelo ter vingado. Havia um homem casado, com filhos, mas que antes da boda forçara a mulher. Roussou? Morra. Enforcou-o entre os choros e supplicas da esposa e dos filhos. O seu odio aos peccados da carne perseguia com furor as alcouvetas, e as feiticeiras não lhe mereciam menos cuidados.

«Quando o tomavam os ataques da furia justiceira, a gaguez fazia ainda mais terrivel a expressão da sua physionomia. A fala não lhe deixava traduzir bem as coleras, e rubro, grosso, agitando o latego, n'um delirio, mettia espanto. Os gagos, porém, tem isto de particular: tanto o defeito accrescenta ao horror da furia, como põe nas horas mansas o que quer que é de bonhomia quasi ironica. Era assim D. Pedro. Caçador tenaz, descançava do officio de juiz nas corridas do monte, seguido pelos moços com os nebris e falcões, e pelas matilhas de cães. Então, o seu rosto aplacava-se, e era benigno, bemfajezo, liberal, folgazão. Foi grande criador de fidalgos. Glotão, passava horas esquecidas á meza, onde a vianda era em grande abastança.

«Assim como a sua justiça era destituida de majestade, assim eram as suas folganças. Dir-se-ia um rustico feito rei; e acaso por isso o povo o amava tanto. Não tinha distincções, nem delicadezas no sentimento, nem no trato, sendo em tudo brutal. Se confundia em si o juiz e o algoz, as suas festas eram kermesses extravagantes e plebéias. Os instinctos aristocraticos e as fórmas da cortezia nobre, torneios, lanças e outros, não tinham n'elle um amigo. Era um democrata, um tyranno á antiga, em cujo espirito toda a brutalidade popular encarnara: por isso mesmo era adorado! Os seus castigos terriveis, passando de bocca em bocca, faziam-lhe um pedestal de força; e as suas continuas folganças populares cimentavam essa força com o amor intimo que nos merece o que tem comnosco a irmandade de gostos. O povo via-se rei na pessoa de D. Pedro.

«Quando voltava em batéis de Almada para Lisboa, a plebe lisboeta sahia a recebel-o com danças e trebelhos. Desembarcava, e ia á frente da turba, dançando ao som das longas (trombetas), como um rei David. Estas folias apaixonavam-no quasi tanto como o seu cargo de juiz. Por ellas chegava a fazer loucuras. Certas noutes, no paço, a insomnia perseguia-o: levantava-se, chamava os trombeteiros, mandava accender tochas; e eil-o pelas ruas, dançando e atroando com os berros das longas. As gentes, que dormiam, sahiam com espanto ás janellas, a ver o que era. Era o rei. Ainda bem! ainda bem! que prazer vel-o assim tão ledo! Vestiam-se todos á pressa, desciam ainda tontos de somno; e as ruas, uns momentos antes silenciosas e negras, brilhavam com as luzes e tinham o clamor da multidão em vivas, o movimento das danças universaes.»

Não só as ruas, mas tambem estas paginas. Como para o seu mestre Michelet, a historia é para elle uma resurreição, e como no seu mestre Michelet o poder de evocação é acompanhado n'elle pelo dom da comprehensão. N'este mesmo retrato que analysei, se os pormenores e anecdotas que fazem ver os objectos abundam, não escasseiam os juizos geraes que os fazem perceber. Assim depois de ter pintado o velho rei em corpo e alma, localisa-o na sua epocha e no seu meio, e indica as causas da sua força, que são os motivos da sua influencia. Poder-se-iam definir as suas narrações e descripções, como uma serie de allucinações com integridade da razão.

«D. Pedro é a viva imagem da Edade-média, politica e domestica. Todos os vicios e todas as virtudes, a fereza e a ingenuidade, os odios terriveis e as amizades espontaneas, sommadas n'um caracter primitivo, onde acaso alguma lepra dos vicios civilisados antigos punha nodoas novas, formavam a pessoa d'esse rei que é verdadeiramente um symbolo: por isso o povo, vendo-se n'elle re-tratado, o adorou.»

N'este retrato, como em todos os trabalhos do Sr. Oliveira Martins, a cor e a vida abundam; o que não abunda é a proporção e a ordem. E ainda assim não transcrevi senão o que convinha. Se o fizesse na integra, ver-se-ia que o nosso auctor, na furia da inspiração improvisadora, repisa e baralha. Se ordenasse e concentrasse, o effeito seria fulminante e a critica batida recuaria até á admiração.

Mesmo assim é nos retratos que elle triumpha; vastos como quadros, ou concisos como medalhas vêem-se pendurados a todos os cantos da sua obra. Pinta-os ás dezenas, cunha-os aos centos. Na Historia da Civilização Iberica é Camões, é Colombo, é Loyola; na Historia de Portugal são Affonso Henriques, Pedro o Cru, o Condestavel, o Infante D. Henrique, Albuquerque, D. Francisco de Almeida, D. João de Castro, o Principe perfeito, D. Sebastião, o Restaurador, o Rei magnanimo, o pobre D. João VI; no Portugal Contemporaneo, Saldanha, Palmella, D. Miguel e o Telles Jordão, Mousinho, Rodrigo, Cabral, os Passos e tantos. Com dois traços ou com duzentos, o personnagem apparece sempre vivo, n'um escorço fugitivo ou n'uma longa analyse, com uma verosimilhança que garante a veracidade. E não só esta imaginação é psychologica, mas realista: ella se compraz não só na pintura das opiniões e paixões, mas tambem na representação dos pormenores corporaes e das circunstancias triviaes. Como psychologo, elle sabe que as grandes forças presentes em cada individuo, e que lhe determinam a biographia, se revelam não só no mechanismo das idéias e no jogo das tendencias, mas ainda nas pregas do vestuario e nas rugas do sorriso; como escriptor conhece que só o traço sensivel provoca a visão, e que a arte de pintar com a palavra, é a arte de evocar com a palavra. Assim elle verá a gaguez de D. Pedro, a surdez de Mousinho, a cabeça felina de D. João II; o peito constellado de Saldanha, a face quadrada de Rodrigo, o eterno charuto de Palmella; os habitos, as doenças, as idiosyncrasias mais furtivas apparecem daguerreotypadas por uma imaginação e estampadas n'uma prosa que tem a complexidade e a velocidade das operações vitaes.

Psychologica e realista, esta imaginação é completa? Um romancista como o Sr. Eça de Queiroz prima na pintura das sensações corporaes e das paixões animaes: o cio, a gula, o egoismo brutal e a intriga trivial, a cobiça e a vaidade, a bondade ingenua e a maldade machinal, quasi que exgottam o seu reportorio; a população dos seus romances é composta de personnagens medios; se uma vez n'um livro que é uma confidencia elle pintou uma alma fóra do commum, foi procedendo á maneira dos lyricos, transcrevendo as suas proprias emoções; Carmen Puebla é o proprio romancista com o vibrar pungente dos seus nervos, e os fremitos da sua furiosa e dolorosa sensibilidade; mas o auctor do Primo Bazilio nunca escreveu um romance como Louis Lambert; para um vôo tal são precisas as azas musculosas do genio cosmopolita e androgyno de Balzac.

O Sr. Oliveira Martins conhece perfeitamente as raizes inconscientes e physicas da vida superior do espirito, e mostra-as sempre que precisa, bem que sem as minudencias do romance, porque pinta a fresco sobre a parede da historia; mas vê com lucidez egual a florescencia culminante da razão e da moralidade. Elle retrata tão bem o fundador do jesuitismo, como o filho da lavadeira. O genio é-lhe tão familiar como o instincto; e não vejo melhor maneira de cerrar esta analyse da face mais importante do seu espirito, senão transcrever as paginas magnificas que elle escreveu sobre Herculano, e reproduzir, depois da figura do rei que com o punhal nos fundou a nacionalidade, o vulto do escriptor que com o seu genio, incompleto mas poderoso, nos iniciou a historia.

«… A palavra que o retrata é o Caracter, porque n'elle a vida moral e a intellectual eram uma e unica, – o contrario do sceptico, não raro santo, o proprio do estoico, não raro obtuso.

«Dizemos pois Caracter no sentido e valor que a palavra teve na Antiguidade, e não na vaga accepção moderna. Não é a intemerata vida, não é o desprezo dos bens mundanos, o odio, a ostentação vã, a desabrida recusa de titulos, de honras, de logares que em si constituem o Caracter; embora a repugnancia pelas cousas mesquinhas seja consequencia indispensavel d'esse modo d'existir que essencialmente consiste na afinação perfeita das regras da moral e dos principios da intelligencia, da vida do cidadão e da existencia do philosopho. O typo do caracter á antiga é o estoico, e este é o nome que propriamente define a physionomia de Herculano; este é o typo que passo a passo veiu crescendo até dominar nos ultimos annos, – quando as licções successivas do mundo, nunca estoico e muito menos do que nunca em nossos dias, e muito menos do que em parte alguma em Portugal; quando os desenganos do mundo o degradaram para o exilio, – não como um martyr, mas como um homem, que protestando sempre, se não converte, nem se corrompe.

«Por isso o estoico é por natureza austero e duro; e na pessoa de Herculano esse genero aggravava-se com effeito por varios motivos: já pelo seu temperamento lusitano, já pela deploravel baixeza do nivel moral da sociedade portugueza, já pelo saber consideravel systematisado pelo philosopho, e sem duvida alguma desproporcionado para a illustração media do paiz em que vivia. Olhando as miserias alheias e a alheia ignorancia, por modesto que fosse – e não o era – via-se muito acima como homem e como sabedor. Isto, e não a cohorte dos aduladores ineptos a quem não dava importancia, embora a sua bondade os não fustigasse, o fazia inconscientemente orgulhoso: porque nenhum orgulho nem pedantismo tinha para com todos os que via crédores de attenção e respeito.

«Do accordo da intelligencia e da moral vem ao estoico um pensamento bem diverso e até opposto ao dos santos, que do antagonismo sentido partem para as soluções mysticas. Esse pensamento e o individualismo, cujo traço fundamental consiste na idéia de que o homem é em si um todo indiviso e completo, e a unica verdadeira realidade da sociedade; a idéia de que a razão humana é a fonte do conhecimento certo e absoluto, a consciencia a origem da moral imperativa, – a liberdade, portanto, a formula da existencia social. D'este modo de ver as cousas nasce aquillo a que podemos chamar o orgulho transcendente, – que os antigos estoicos disseram Caracter, quando pela primeira vez essa fórma do pensamento appareceu systematisada em doutrina.

«No revolver da agitada vida, em que se achara, iam pouco a pouco reunindo-se, como que crystallizando, os elementos da futura, distincta e typica individualidade. A nobreza e a ideal rectidão do seu espirito tinham na sua profundidade o motivo d'uma systematica cegueira para pesar e medir as cousas reaes com a fria imparcialidade d'um critico, ou com a caridade do santo. Com o seu metro absoluto e integro, Herculano, na agitação do mundo, corria atraz da chimera de achar aquelles homens que o seu estoicismo desenhava, aquelles raros, dos quaes elle era em Portugal um e unico. O critico, se é politico, manobra com os homens como um general com um exercito, auscultando as vontades e caprichos, dirigindo as forças direito a um fim, sem attenção pelos instrumentos d'elle. Perante os homens, o santo tem na piedade uma intima força: a coragem que não abranda; tem o enthusiasmo que o move, e a caridade que explica e lhe faz comprehender, em Deus, as fraquezas e as miserias da terra. Combate, pois, sem recuar, levando nos labios a palavra de uncção, e o sorriso d'uma ironia boa, ao mesmo tempo cauterio e balsamo. O estoico, porém, ferido, pára. O mundo era elle e nada mais além da sua razão, da sua consciencia, da sua liberdade. E quando as feridas, as perseguições, os ataques, os ultrajes são profundos e agudos como os que expulsaram da politica, – e tambem das letras, – Alexandre Herculano, o estoico repetindo a historica phrase do Africano, suicida-se. É então que vivamente nasce, pois só então o Caracter apparece em toda a sua pureza.