Loe raamatut: «A viagem de Óscar»

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© Editora Gato-Bravo, 2021

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editor Marcel Lopes

coordenação editorial Paula Cajaty

revisão Margarida Fontes

projecto gráfico Bookxpress

imagem da capa AdobeStock

Título

A viagem de Óscar

Autor

Rafael Pires

e-isbn 978-989-8938-93-0

1a edição: Junho, 2021

gato·bravo

rua de Xabregas 12, lote A, 276-289

1900-440 Lisboa, Portugal

tel. [+351] 308 803 682

editoragatobravo@gmail.com

editoragatobravo.pt

Sumário

CAPÍTULO 1

CAPÍTULO 2

CAPÍTULO 3

CAPÍTULO 4

CAPÍTULO 5

CAPÍTULO 6

CAPÍTULO 7

CAPÍTULO 8

CAPÍTULO 9

CAPÍTULO 10

CAPÍTULO 11

CAPÍTULO 12

CAPÍTULO 13

CAPÍTULO 14

CAPÍTULO 15

CAPÍTULO 16

CAPÍTULO 1

Óscar estava deitado na cama, os olhos fixos no teto. Um sonho acordara-o, mas ainda não perdera tempo a pensar nele. A dúvida com que adormecera na noite anterior persistia: Será possível ser-se verdadeiramente livre?

No seu cérebro não se referia àquela liberdade mais representativa em que se pensa quando se discutem liberdades sociais ou medita sobre o livre-arbítrio do homem. Óscar ia um pouco mais longe do que isso. Pensava num estado de liberdade em que o Ser se solta do tudo o que existe, um tudo tanto literal como figurado.

Antes que se prolongasse neste pensamento, que, na sua modesta opinião, era até bastante filosófico, os gritos dos vizinhos do lado já interrompiam o seu raciocínio. Eram os Antunes, dissera-lhe a Dona Helena uma vez. Óscar puxou a almofada para si e pressionou-a contra a cara quase até lhe faltar o ar. Depois, atirou- a e bocejou, conformado em ouvir os berros grosseiros dele e os estridentes dela. Desta vez discutiam sobre loiça, ou então sobre roupa, não tinha a certeza. O vizinho era um tipo de trinta e tal anos, mas tinha cara de quarenta. A ela, Óscar só a vira uma ou duas vezes, e tinha cabelos amarelos.

Um segundo bocejo e voltou a aninhar-se nos lençóis, arrependendo-se logo de ter atirado a almofada sabe-se lá para onde. Fechou os olhos, mas só por um instante.

— Mijar.

Ergueu-se sobre o chão frio de cerâmica, reparando que lhe faltava uma meia, e seguiu para a casa de banho. Não se deu ao trabalho de limpar duas pingas de mijo que caíram no assento da sanita, e puxou o autoclismo antes de lavar as mãos com três pedaços de sabonete praticamente desfeitos, desejando ter um daqueles líquidos que não partiam quando caíam ao chão. Perguntou-se se venderia isso na loja, mas achou que não.

Fechou a torneira com um movimento curto, mas lento. O espelho quadrado sobre o lavatório devolvia-lhe a imagem do rosto, não feio mas banal e incaracterístico a que se habituara ao fim de vinte e quatro anos. Sempre se considerara um gajo simples. Uma trunfa castanho-escura em caracol desviava as atenções de dois olhos escuros, castanhos também, e sem brilho. O nariz e a boca, sabia lá ele, tinha-los comuns, embora não desgostasse da curvatura angular do queixo.

Regressou ao quarto com a ligeira sensação de que não chegara a sair. Estacou junto à secretária do computador e deteve a atenção no tapete que a mãe sempre lhe dizia para arejar com frequência, coisa que ele não fazia. Era um quarto aborrecido, que Óscar nunca soubera como tornar mais interessante. Não via onde se poderia ter metido a meia que lhe faltava.

Pisou a almofada que tinha atirado há pouco e levantou-a com os dedos do pé descalço, pontapeando- a para cama. Seguiu o seu movimento com o próprio corpo, cansado, nem sabia bem porquê; talvez do sonho que estava a ter pouco antes de acordar. Os sonhos, por vezes, também eram cansativos. Sonhava com o quê, afinal? Tentou lembrar-se, mas a única coisa que lhe assomava à memória eram portas. Muitas portas. Mal voltara a fechar os olhos quando retomaram as interjeições desarticuladas da casa ao lado, que Óscar nem se apercebeu que teriam terminado. Tinham uma miúda de dez ou onze anos, ou coisa parecida, e viviam na moradia geminada há quatro ou cinco. Desentendiam-se por tudo e por nada e discutiam todos os dias, discussões feias ao som de gemidos e pancadas abafadas e objetos a partir. Um daqueles casos de violência doméstica que agora se dizia ser um crime público. Talvez a miúda os motivasse a continuarem juntos. Óscar não fazia ideia. Nada sabia sobre ter filhos ou sobre casamentos e muito menos ainda sabia sobre as complicações que se guardavam nas mentes das pessoas.

Certa vez, ainda os pais de Óscar moravam com ele, tentou-se chamar a polícia, mas a informação que lhes chegara por telefone era que os agentes nada podiam fazer sem testemunhas que comprovassem supostas agressões. Talvez a definição de crime público devesse implicar a existência de um vizinho valente capaz de arrombar portas para testemunhar ocorrências de violência doméstica em primeira mão, coisa que nunca aconteceu naquele caso, pelo que toda a atuação das partes envolvidas se reduzira ao famoso ditado que dizia que entre marido e mulher não se punha a colher.

Com um gesto rápido e mecânico puxou do seu velho mp3, máquina boa, ainda que meio ultrapassada para padrões atuais, em cima da mesinha de cabeceira. Pôs os headphones na cabeça, escolheu uma música chamada Swoon, dos The Chemical Brothers. O relógio digital da mesinha de cabeceira disse-lhe que ainda era cedo. Era sábado, Óscar não ia trabalhar e o seu único compromisso era à tarde, portanto acordara consigo mesmo que ficaria deitado durante toda a manhã. Levantar-se-ia apenas para o ocasional lanche, ou para bater uma, quem sabe. Não era o plano ideal, mas tinha a certeza de que havia outros piores. Foi então que algo de errado aconteceu. Óscar desconectou os headphones e voltou a conectá-los, mas não solucionou o problema. Estavam estragados ou meio estragados, pelo menos, uma vez que as batidas agudas e prolongadas da canção só se faziam ouvir do lado direito.

Na casa ao lado continuavam os berros. Óscar retirou os headphones da cabeça e suspirou. Desligou o mp3 e foi até à janela, espreitar o dia de sol. Suspirou, voltou a sentar-se na cama, segurou na cabeça. Amanhã seria o dia do seu aniversário, faria vinte e cinco anos e precisava dos headphones a funcionar para o que se ia passar.

Foi limpar aquelas pingas de mijo que tinha deixado no assento da sanita e de seguida voltou ao quarto para procurar a meia que lhe faltava entre os lençóis. Calçou umas calças de ganga azul, deixou-se ficar com a t-shirt branca que já tinha vestida e agarrou no seu casaco amarelo, estilo corta-vento. Junto à porta, pegou na chave de casa e na carteira e tentou recordar-se, mesmo antes de sair, do sonho que tivera horas antes. Não se conseguiu lembrar de nada senão do raio das portas.

A luz nas escadas piscava.

Ainda não alcançara o rés-do-chão quando se apercebeu da presença da velha Dona Helena à porta de casa, no lado direito, inócua e sorrateiramente vasculhando a mala. Com certeza já dera por ele a descer, e agora não havia maneira de não se cruzarem. Quando Óscar, descendo sem pressa, finalmente alcançou o último patamar, mostrou-se agradavelmente surpreendida, como se uma lembrança fortuita lhe ocorresse à cabeça.

— Já viste isto, Óscar? — Perguntou-lhe, segurando com uma das mãos a malita quadrada que levava a tiracolo, com sacos de compras entre as pernas. — O homem ‘teve cá nem faz uma semana a tratar da luz e já está assim outra vez.

— Pois — respondeu Óscar. — Realmente é estranho.

— Olha que não é assim tão estranho, não — disse a senhora, em jeito de lamento. — Sabes que antigamente era o senhor Herculano, Deus o tenha, que arranjava estas coisas. Era eletricista, portanto percebia do assunto, bem-haja. O homem que aqui vem é bom rapaz, mas não tem jeito... De dois em dois meses aí está ele, sempre, sempre apetrechado, sempre preocupado — agora gesticulava com as mãos miúdas, que, entretanto, já seguravam a chave de casa. — Portanto já se vê que o trabalho nunca é bem feito! É como eu sempre digo. Isto já nada é como antes.

— É verdade — disse Óscar, apenas por dizer. — Até logo, Dona Helena.

A vizinha ergueu uma mão, como que o enxotando, e respondeu, sem, no entanto, dar qualquer ideia da intenção de se mover:

— Vai, vai, Óscar, que eu vou aqui arrumar estas compras e ainda tenho de ir à feira!

Óscar desceu os últimos degraus a caminho da porta da rua quando os gritos recomeçaram no andar de cima. Ouviu-se o trinco da porta, a porta a arrastar e depois a bater com força. A miúda dos Antunes, de dez anos ou coisa parecida, apareceu em corrida pelas escadas abaixo, dois degraus de cada vez, e saiu. Nem a Dona Helena, que a chamou, nem o encontrão que dera em Óscar a abrandaram.

— Meu Jesus — Lamentava-se a Dona Helena, num tom, parecera a Óscar, genuíno. — Pobre Teresinha… O que é que eu lhe disse ainda agora? — Baixou a voz, como partilhasse um segredo: — No tempo do senhor Herculano, homens como aquele não viviam no prédio! Não senhora. Ai, que eu tenho uma pena… — Curvou-se para levantar os sacos das compras, mas a porta de casa continuava fechada. — Vai lá Óscar, vai lá à tua vida.

Óscar só por pouco não sorriu. Saiu da moradia e fez-se ao caminho. Era um lugar pequeno e desinteressante, aquele, feito de ruas calcetadas, jardins minúsculos e casas que eram, na sua maioria, moradias geminadas como a dele, que nunca ultrapassavam os dois ou três andares. Mais desinteressante parecia numa manhã de sábado como aquela, onde os poucos transeuntes que circulavam a zona “baixa” da vila eram atraídos pela feira da Vila da Barata, a freguesia vizinha. A zona baixa era assim chamada para se distinguir da zona das colinas, a zona rica das grandes vivendas e mansões. Óscar poucas vezes metera lá os pés, sendo até fácil esquecer-se de que as colinas ainda pertenciam à sua vila. Ficava-se pela zona baixa, pequena e desinteressante.

Um aspeto positivo da coisa era que Óscar poderia facilmente percorrer toda a vila a pé (à exceção da zona das colinas); não tinha carro, só uma velha bicicleta guardada na arrecadação há alguns anos. Outro aspeto positivo, e já eram dois, era que, apesar de não haver nada naquela vila e à volta dela, havia, pelo menos, uma loja de eletrónica que certamente venderia headphones novos. Era na sua direcção que caminhava.

Chegando ao centro, os rostos com que Óscar se cruzava assemelhavam-se aos habituais: O Fernando e o Germano, dois irmãos velhos, um baixo e um alto, mas ambos de porte, sentados no banco a debitar sobre como o governo lhes roubava a reforma; a Odete que se entretinha a alimentar os pombos, a corcunda das costas cada vez mais curva; o velho Arnaldo Vaz, que sofria de Alzheimer e dizia a todos para irem trabalhar.

Cruzou-se também, e pela segunda vez naquele dia, com a Teresa, a filha dos Antunes. Da moradia de Óscar, tinha fugido para dentro de um pequeno parque e enfiara-se num baloiço, dobrada sobre si mesma, com o rosto enfiado entre os joelhos, vendo-se apenas a sua trança ruiva e desajeitada a correr-lhe sobre as costas magras.

Óscar passou bem perto do parque, por isso notou como ela apertava os braços em volta dos joelhos, tremendo como se estivesse a chorar. Pensou que aquilo devia ser fodido, um pensamento curto. Depois pôs as mãos nos bolsos do casaco amarelo, perguntou a si mesmo por que razão as pessoas existiam e seguiu caminho.

O horário da loja de eletrónica aos sábados era das nove à uma da tarde. Lá dentro, foi rápido a encontrar o corredor dos headphones. Perdeu apenas um pouco de tempo a ler as informações descritas em algumas das embalagens e, passado exatamente três minutos, dirigia-se para a caixa. A sua tarefa estava terminada e ainda nem sequer eram dez horas da manhã.

Pensou num sítio tranquilo para os experimentar e optou pela velha ponte, um antigo caminho de cabras, sobre o rio, de leito estreito, que deitava a perder de vista na periferia ocidental da vila.

Parou na ponte, bem no centro, os olhos postos na água que corria abaixo. Ligou o mp3, daquela vez com os headphones novos, e sorriu quando percebeu que funcionavam na perfeição—sorriso curto, rápido a desaparecer.

O seu súbito entusiasmo esmagado por uma vontade imensa de chorar, Óscar conteve-se. Decidiu regressar a casa e aguardar o dia de amanhã. Tinha vindo a antecipar o dia do seu vigésimo quinto aniversário há algum tempo e a ansiedade crescia dentro dele. No domingo de amanhã, Óscar planeava…

— Está tudo bem?

Óscar quase deixou cair o mp3 à água com a voz grave que o interpelava. Voltou-se para trás, surpreendido pela aparição súbita de dois olhos verdes, que o observavam. A rapariga tinha cabelos negros, curtos e o rosto era moreno. Vestia um macacão azul, reparou Óscar quando se recompôs. A sua intenção foi responder-lhe o “sim” que se esperava daquela questão tão banal, mas, não soube bem porquê, em vez disso, limitou-se a terminar o pensamento que estava a ter, só que, daquela vez, em voz alta:

— Amanhã vou matar-me.

CAPÍTULO 2

Óscar não lhe deu tempo para responder. Estava envergonhado por ter revelado o seu segredo tão despropositadamente, por isso virou as costas e pôs-se a andar. Quis ir para casa e enfiar-se debaixo dos lençóis, idealmente até da cama, se isso fosse fisicamente possível. Mas o estômago já roncava e conseguiu parar para pensar duas vezes; se se fechasse em casa agora ficaria preso e a congeminar naquele momento durante horas. O estômago voltou a fazer barulho. Ainda não tinha tomado o pequeno almoço.

Sabia bem onde queria ir comer; ao seu lugar de eleição, que era, muito provavelmente, também um dos piores. Compensando a falta de bolos dourados e estaladiços, croissants acetinados ou tostas de queijo a derreter por fora, a loja de conveniência na Rua da Pega tinha fiáveis pacotes de bolachas com validade para cima dos cinco anos, e Óscar tinha aquela tendência que muitos têm de gostar de saber ao que ia. Na loja de conveniência da Rua da Pega ele sabia bem ao que ia.

Na rádio passava a Rolling in the Deep da Adele.

Óscar foi direto ao corredor das bolachas, tirou um pacote da prateleira e avançou para a caixa. O tipo magro atrás do balcão deitou-lhe um olhar suspeito, mas familiar. Era bastante alto, pálido como leite com lactose a mais, e vestia o colete preto da casa sobre uma camisa.

— Se eu soubesse que vinhas tão cedo tinha ficado na cama mais tempo — disse-lhe o Mário. — Esqueceste-te que estás de folga hoje?

Óscar tirou a carteira do bolso para pagar.

— Não me esqueci, mas já tive de sair — respondeu, apontando para os headphones novos que tinha à volta do pescoço. — Os meus estragaram-se.

Mário bocejou.

— Está bem, está bem. Ficas por aí?

— Pois. À tarde temos aquilo, não é?

Mário cruzou os braços.

— Uma perda de tempo, se me perguntares. Mas enfim, sempre é algo para fazer. Não prevejo um dia muito produtivo por aqui. — O seu suspiro foi de tédio. — Conheces aquele filme, o Clerks? Fazem parecer isto bem mais divertido, não é? Os nossos clientes nem são engraçados… Os poucos que temos.

— Sempre temos o Ivo. Não é cliente, mas é engraçado.

— Sim, até é…

— E um chega bem, digo eu — concluiu Óscar, agarrando nas bolachas e dirigindo-se para a porta.

Mário encolheu os ombros.

Óscar foi sentar-se no lancil do passeio. À sua esquerda, a rua deserta abria para a zona dos armazéns antigos e maioritariamente abandonados; para a direita ficava o caminho para o centro da vila. À frente da loja de conveniência do senhor Manuel Amílcar, onde Óscar trabalhava há um par de anos, trabalhavam Gisela e Amara, numa loja que conseguia ter ainda menos clientes do que a sua.

Se lhe perguntassem, Óscar nem sequer sabia dizer que tipo de loja era aquela onde as raparigas trabalhavam. Não tinha nenhum toldo com um nome informativo e mesmo inspecionar o que havia exposto na montra não lhe dava respostas. Via-se muito material típico de uma papelaria, cadernos e canetas e afins, mas o sítio não era realmente uma papelaria, porque ao lado dos cadernos também se viam coisas como velas, incensos, estatuetas religiosas das mais variadas crenças e até algumas peças de roupa.

A grade ainda não tinha sido levantada, o que significava que nem Gisela nem Amara tinham chegado. Óscar acabou de comer e voltou para dentro para deitar o pacote vazio no caixote do lixo. Aproveitou também para comprar um sumo de laranja e bebeu-o ao balcão, enquanto o Mário dava uma olhadela ao jornal local.

— Está parado?

— Não se nota? — Mário abriu os braços, indicando vagamente o interior da pequena loja. — É o habitual. É sábado, o povo vai todo para a feira. Fruta, sabes? Estou farto de dizer ao Manel. Estas lojas de conveniência sem bombas de gasolina anexadas estão todas a morrer. Ou se é uma grande superfície ou se vende fruta. É assim que se faz dinheiro!

Um homem entrou na loja para comprar um maço de cigarros. Quando voltou a sair, Mário respirou fundo.

— Benditos sejam os fumadores.

Óscar levantou o sumo em jeito de brinde. Então, a porta da loja voltou a abrir e Óscar de imediato reconheceu o casacão cor-de-laranja de Ivo.

— Ora bem, quem é que me vai chupar a pila hoje?

— A pega da Rua da Pega já aqui não mora — disse-lhe Mário. — Vai procurar a outro lado.

— Então, meus, como é? — Perguntou Ivo, que puxava pela trela o seu enorme cão.

— Olha aí — avisou-o Mário. — Estou-te farto de dizer que o Manuel Amílcar não quer cães aqui, muito menos o teu. Já nos ameaçou despedir, a mim e ao Óscar!

Ivo revirou os olhos.

— O Manuel Amílcar se me chupasse a pila é que fazia bem. Anda lá, Fúria, que estes aqui não te querem. — Levou o cão para fora da loja e voltou a entrar. — Pergunto de novo — disse ele, ao encostar-se ao balcão. — Como é?

— É como vês — disse Mário com um bocejo, do outro lado do balcão. Ivo inclinou a cabeça, sorriu.

— E ficas surpreendido? Se fossem umas gajas boas aqui a trabalhar ainda valia a pena pôr aqui os pés.

— Tu estás aqui todos os dias — disse Óscar.

— Também é verdade — respondeu Ivo com um encolher dos ombros. Era um pouco mais alto do que Óscar, mas mais baixo do que Mário e muito mais largo do que ambos. Tinha cabelos muito loiros, compridos, e a barba amarela pouco espessa. — E o que é que estás tu a fazer aqui tão cedo? — Na cabeça, usava um gorro negro. — Não tinhas folga hoje?

— Tinha e tenho. — Óscar apontou para os headphones à volta do pescoço. — Fui às compras. Os meus antigos estragaram-se.

Ivo aproximou-se.

— Foste àquela loja de eletrónica ao pé dos correios?

— Mas há mais do que uma? — Perguntou Mário, que, entretanto, se acocorara atrás do balcão por qualquer coisa. A sua voz soava distante e abafada, como se estivesse num túnel.

Ivo continuou:

— Ainda no outro dia descobri que essa loja é do pai do Tomás.

— Tomás — repetiu Óscar, com ar de quem não estava a ver onde Ivo queria chegar.

— Andou na escola connosco. O Tomás Lopes. Lembras-te daquele vídeo que andava a passar? Daquele miúdo do nono ano que começou a bater na professora de ciências? Pegou-lhe na cabeça e atirou- a contra o quadro, mas depois ela mandou-o ao chão sabe-se lá como. Acho que sabia kung-fu ou jiu-jitsu ou uma cena assim.

Óscar espetou o lábio inferior para cima.

— O Tomás era esse miúdo?

— Népia, esse era aquele ruivo, o Daniel. O Tomás era o gajo que estava a filmar. Dava para ouvi-lo a rir durante o tempo todo. E, depois, no fim do vídeo, ouve-se o gajo a gritar

— Dê-lhe um chuto na pila, stôra — disse Óscar, quase automaticamente, recordando-se.

— Dê-lhe um chuto na pila, stôra — repetiu Ivo, entre gargalhadas. — Foda-se, o Tomás. Olha que o raio do vídeo ainda nos entreteve durante algum tempo. E esse Daniel, já agora? Sabes o que é feito dele?

Óscar disse que não com um abanar da cabeça.

— Porra, o puto desapareceu do mapa. Foi expulso da escola, claro, e depois foi para a Vila da Barata, mas acho que também não o quiseram lá.

— Na vila? — Perguntou o Mário, de volta à superfície.

— Na escola. — Ivo meteu uma mão ao bolso, apoiando-se melhor no balcão. — Depois não sei. Já ouvi dizer que mudou de país, que se meteu nas drogas e teve uma overdose. Até já ouvi dizer que se juntou a um culto.

— Que culto? — Perguntou o Mário.

— Sei lá eu. A primeira vez que ouvi essa história disseram-me que era uma cena tipo religiosa, que havia um gajo que dormia com bué gajas diferentes e que era venerado tipo Charles Manson e o caralho. Acho que se chamavam os Iluminados.

— Que nome pouco original — comentou Óscar, discreto.

Ivo estalou os dedos e concordou:

— Foi o que eu pensei também. Mas, como disse, essa foi a primeira vez que ouvi a história. Há muitas versões do que aconteceu ao Daniel. O Albano era da turma dele, pois é! Disse-me que ele encontrou um grupo de viajantes no tempo e pirou-se com eles. Foi o que ele contou.

Óscar esvaziou a garrafa de sumo.

— Se o Albano o diz…

Ivo fez um ruído que pareceu uma mistura da palavra “pois” e uma breve gargalhada.

— Vocês estão a ver aquela velha da roulotte, que apareceu aí há umas semanas? O Albano acha que ela também veio do futuro. — Fungou. — Bem sei que ele passa o dia a fumar e a ver séries da Netflix, às tantas perde-se entre o real e a ficção, mas nunca se sabe, não é?

Ficaram em silêncio por uns instantes, um momento cortado pelo suspirar de Mário, que disse:

— Acho que um culto podia ser divertido…

Ivo bateu as palmas das mãos sobre o balcão duas vezes e depois apontou para a porta.

— Vou ver do Fúria.

— Não te esqueças que hoje à tarde temos aquilo! — Lembrou-o Mário, a folhear o jornal novamente. Óscar também o deixou entretido com os seus pensamentos e retomou o seu lugar no lancil do passeio, em frente à loja. Sentou-se e bateu numa perna para chamar a atenção de Fúria, que se lançou sobre ele. Óscar encheu-o de festas na cabeça.

Ivo sentou-se perto deles.

— Aqui o nosso Fúria anda com problemas, sabes? Está com prisão de ventre desde anteontem à noite.

Óscar olhou para o animal. O Fúria, cujo nome completo, segundo Ivo, era Fúria de Sessenta e Nove Sóis, era um cão muito grande, bege que, também segundo Ivo, era meio pastor alemão e meio rafeiro. Óscar gostava dele. Era um bom animal e um cão bem-comportado, o que era de alguma forma surpreendente tendo em conta a educação que Ivo lhe dava.

— Já o levaste ao veterinário? — Perguntou. Ivo torceu o nariz.

— Estava a tentar evitar fazê-lo. O dono não vai à bola comigo, sabes? Eles até têm uma gaja boa a atender o pessoal, uma loirinha, um pouco mais velha do que nós. Pedi-lhe o número uma vez. Ela disse que tinha namorado e eu perguntei-lhe se queria outro. — Riu-se. — Ela não achou piada e o pai dela também não. Para azar é o dono daquilo. Fogo, mas um gajo assustador, tipo Dr. Hannibal Lecter, estás a ver? Ainda se vinga no Fúria.

— Ainda o come?

— Sei lá — disse Ivo. — É pena porque a loirinha é mesmo boa. Bonita mesmo, entendes? Tem assim um daqueles sinais debaixo do olho. Clássico cliché e um clássico tesão aqui — apontou para a virilha. — Mas enfim. Seja como for, o Fúria não gosta de médicos. É um pouco como eu. —Fixou os olhos nos headphones novos de Óscar. — Também tive de comprar uns há uns tempos, os meus também se estragaram. Olha que foi fodido e de várias maneiras. Estava no Pornhub, estás a ver? Cena excelente. Gaja excelente. Estava-me quase a vir. De repente, não sei o que acontece, o fone direito deixa de funcionar. Cena do clímax. A voz da gaja já não se ouve. Estou a vir-me e está o gajo do vídeo a vir-se. Dois idiotas. E eu só oiço o gajo a gemer. Um russo qualquer. Fiquei fodido. Mais do que a gaja do vídeo, imagino. — Óscar abafou uma gargalhada. Ivo prosseguiu:

— Tenho que arranjar uma gaja. Vou fodendo quando posso, sabes como é, mas namoradas a sério já passou algum tempo. Mais de dois anos, para aí. A última foi a Laura. Laura Filipe, tu conheceste-a, andava na nossa turma. Passámos bons tempos. A família dela é rica para caralho. Toda pipi e tal. Viviam numa vivenda grande e o quarto dela era mesmo no topo por isso ficávamos sempre à vontade. Mas melhor era quando os pais dela não estavam lá. Aí fodíamos em todas as divisões da casa. Até na piscina, no verão. Bons tempos, bons tempos. Mas os pais não me gramavam. A mãe especialmente, e olha que eu sempre fui simpático. Até lhe trazia flores de vez em quando. Está bem que as apanhava no quintal à porta de casa, mas acho que ela não sabia isso. — Levou um dedo à boca, para tentar tirar qualquer coisa dos dentes. — Aposto que até saltou quando soube que a Laura e eu tínhamos acabado, raio da velha. Sabes que ela chegou a inscrever a Laura num daqueles programas de encontros? E nós ainda andávamos!

Óscar soergueu o sobrolho.

— Isso é fodido.

— Então, não é? — Ivo bufou pelo nariz. — Filha da puta. Se não fosse ela e o marido, eu e a Laura ainda estávamos juntos. Eles é que lhe fizeram a cabeça, sabes? Era só pressão. Só porque eu não sou um daqueles tipos todos queques que eles gostam.

— Mas vocês ainda se dão?

— Quem? Eu e a mãe da Laura?

Óscar estalou a língua, complacente.

— Tu e a Laura.

— Ah, sim — disse Ivo. — Não sabias? Nós não acabámos por nada de dramático. Ainda somos amigos. Podes imaginar o sofrimento da mãe dela quando ainda me vê a aparecer lá em casa. A velha pensava que se tinha livrado de mim. — Outro sorriso. — Pensasse melhor.

Óscar massajava a cabeça do Fúria.

— Gosto de uma música que se chama Laura.

— A sério? De quem é?

— Bat For Lashes.

— Não conheço — admitiu Ivo.

— É fixe — disse Óscar.

— A ver se digo à Laura para a ir procurar. Ah! — Algo no horizonte próximo lhe captara a atenção. — São as irmãs.

No passeio oposto ao deles apareceram Gisela e Amara.

— Bom dia, meninos! — Exclamou Gisela, a mais alta e a mais sorridente.

— Meninos? — Gritou Ivo para o outro lado da rua. — Aqui só há homens!

— Devem estar todos escondidos atrás de ti — respondeu Amara, que levantava a grade da loja para a abrir. Vestia um casaco de ganga azul sobre uma camisola de gola alta preta.

Ivo sacudiu uma mão na sua direção, sarcástico.

— Mas isto é que são horas para abrir o estaminé?

Gisela atravessou a estrada para cumprimentar o Fúria. Usava calças de fato de treino e um top branco, sem mangas. Não interessava que ainda estivessem no fresco início de primavera. Gisela nunca tinha frio.

— É sábado — disse, bem-disposta. — Abrimos mais tarde porque há menos clientes.

— Menos clientes do que os nenhuns habituais que temos no resto da semana — acrescentou Amara cinicamente, surgindo atrás da amiga. As tranças negras caíam-lhe até quase ao fim das costas e as pestanas longas escondiam olhos castanhos. — O que é que fazes aqui tão cedo, seja como for, Ivo? Gostas assim tanto de nos ver, é?

— A Gisela até gosto, agora tu, nem por isso.

Gisela riu-se e Amara sacudiu as tranças com uma mão.

— Já que estás tão empenhado em acordar cedo podias ajudar o Óscar e o Mário aí na loja. Assim não era só chatear o juízo de todos…

— Eu contribuo com a minha companhia e comentário social!

Amara não conteve o sorriso. Abanou a cabeça e foi para dentro da loja. Gisela, por outro lado, continuou a fazer festas ao Fúria. Tinha cabelos negros, tal como Amara, mas alisados até aos ombros. As duas não eram irmãs, apesar da insistência em jeito de brincadeira de Ivo e do que pensava grande parte da vizinhança, em jeito de acharem que as duas raparigas pretas deviam ser família. Gisela nasceu ali na vila, mas Amara só chegou aos cinco anos, quando os seus pais, considerados “exóticos” por muitos, decidiram mudar-se para ali.

— Ao Ivo já nem pergunto, mas estou a estranhar estares cá tão cedo, Óscar — disse Gisela, enquanto Fúria lhe mordiscava a ponta dos dedos. — Hoje não estavas de folga?

— Tive de sair e ainda não me apeteceu voltar para casa.

O sorriso de Gisela cresceu visivelmente.

— Fizeste bem. — Voltou-se de novo para o cão. — E tu, menino, estás bom ou quê?

— Estava melhor se se dignasse a cagar — respondeu Ivo, secamente. Gisela segurou a cabeça de Fúria entre as mãos, preocupada.

— Mas o que se passa?

— Está com prisão de ventre. Trouxe-o para ver se ele faz alguma coisa, senão vou mesmo de ter de o levar ao veterinário, coisa que não queria.

— Coitadinho — disse Gisela. — Tu vais fazer cocó, não vais, Fúria? Sei que vais. És um menino lindo. — Amara regressou do interior da loja-garagem para lhe dizer que tinham de trocar as velas da montra, mas nenhuma das duas mostrou qualquer intenção de retomar ao serviço. Não tardou para que também o Mário se juntasse a eles, o seu jornal do dia enrolado debaixo do braço.

— Alguma vez ouviste falar num culto de viajantes do tempo? — Dirigia-se a Gisela.

— O quê? — Amara procurou a resposta no rosto de Óscar, que ficou algo orgulhoso por ser visto como o sensato entre os rapazes.

— O Mário acha piada à ideia de um culto e o Ivo está convencido que a velha da roulotte veio do futuro. O Albano convenceu-o, digamos.

— O Albano que está sempre mocado?

— O próprio.

— Está bem.

— Mas de que velha é que estão a falar? — Perguntou a Gisela. Amara tocou-lhe no braço com a ponta do dedo.

— Conheces mais alguém que viva numa roulotte? — Gisela encolheu os ombros e Amara continuou: — Mas ela não é nenhuma viajante do tempo. E eu nem posso crer que acabei de dizer isto. Acho que é tipo vidente, lê cartas e sinas e essas coisas todas. Também não posso crer que estou a dizer isto, mas é o que é.

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