Dever-se-ha enterrar em chão sagrado aquelle que voluntariamente procurou a sua salvação no suicidio?
Eu cá digo que sim; avia-te em cavar a cova, o magistrado viu e decidiu que aqui fosse sepultada.
Isso não póde ser, a menos que não se afogasse involuntariamente.
Já está reconhecido e decidido.
As probabilidades todas são que pereceu se offendendo. Ninguem é capaz persuadir do contrario. Vê tu como eu o provo. Se me afogar voluntariamente existe um acto; ora, um acto subvide-se em tres ramos: a acção, o cumprimento e a execução; ergo, afogou-se voluntariamente.
Assim será, mas escuta-me ao menos.
Ouve-me ainda; a agua está aqui, o homem está acolá; muito bem, o homem vae encontrar a agua e se afoga; forçosamente morre por seu motu proprio; nota isto bem. Mas se, pelo contrario, é a agua que vem encontrar o homem, e elle se afoga, então já não é elle que procura a morte; ergo, aquelle que não é culpado na sua morte, não poz termo voluntariamente á vida.
Mas será lei?
É a lei que preside ao inquerito do magistrado.
Queres que te diga o que penso? Se a defunta não fosse senhora de qualidade, de certo não a enterravam em chão sagrado.
É bem verdade o que dizes; é triste que as pessoas de qualidade tenham, a mais dos outros christãos seus iguaes, o direito de se afogarem e de se enforcarem. Vamos sempre cavando! Não ha nobreza mais antiga que a dos jardineiros, lavradores e coveiros; seguem a profissão de Adão!
Pois Adão era nobre?
O primeiro que usou armas!
Deixa-te d'isso, não consta que as tivesse!
Sempre és um pagão! como comprehendes tu então a escriptura sagrada? A escriptura diz que Adão trabalhava o solo; como poderia elle trabalhar sem pá ou enxada? Essas eram as suas armas. Vou fazer-te outra pergunta, se não me responderes com acerto, não és mais que um…
Asno! continúa.
Quem é que construiu mais solidamente que o pedreiro, carpinteiro e constructor de navios?
O constructor do cadafalso, porque sobrevive a innumeros hospedes.
Boa resposta, palavra de honra. Cadafalso é bem achado; mas para quem se fez o cadafalso? para os que fazem o mal; ora, tu fizeste mal em dizer que o cadafalso é mais solido que a igreja, logo merecias o cadafalso. Vamos, procura e responde.
Agora eu! Quem é que construiu mais solidamente do que o pedreiro, carpinteiro e constructor de navios?
Dize tu primeiro, eu cá já sei.
Tambem eu.
Vejamos.
Nada, não atino.
Basta de tratos ao teu cerebro; escusas de pensar mais, ficas sempre na mesma. Quando alguma vez te fizerem essa pergunta, responde: «É o coveiro; as moradas que construe duram até ao dia de juizo». Agora vae a casa de Vaughan e traze-me um copo de licor.(O segundo coveiro sáe, cantando.)
Quando eu era mancebo e quando amava
Tudo era para mim rapido goso,
Sómente noite e dia andava ancioso
Por o tempo matar que me matava.
Pois este homem não terá consciencia do que está fazendo, cantando assim, quando cava uma sepultura?
O habito tudo póde.
E verdade, a mão pouco afeita ao trabalho tem o tacto mais delicado!
Mas a idade chegou, passo furtivo
Nas gastadoras garras me ha tomado,
E assim, mau grado meu, me ha condemnado
A viver entre a morte, morto-vivo. (Desenterra uma caveira.)
Houve tempo em que esta cabeça tinha uma lingua e cantava; agora este rustico fal-a rolar pelo solo, como se fosse a mandibula de Caim, o primeiro homicida. O craneo que este imbecil trata com tão pouco respeito, era talvez de algum profundo politico, que se julgava até capaz de impor a sua opinião ao proprio Deus, não é verdade?
Tudo póde ser, senhor.
Ou talvez de algum cortezão cujo prestimo unico fosse repetir: «Deus seja comvosco, como está, meu senhor?» É talvez o craneo do sr. fulano, que gabava o cavallo do sr. cicrano, com a idéa que este lh'o désse, não é verdade, Horacio?
Sim, meu senhor!
Deve assim ser! Agora pertence aos vermes; não tem nem pelle, nem sangue, nem carne, e este coveiro fende-o com a sua enxada. Eis uma estranha revolução, assim a comprehendessemos bem. Joga-se a bola com esses ossos, como se nada tivessem custado a formar. Sinto estalar os meus só pensando-o.
Uma enxada e uma pá logo em seguida,
Um lençol que amortalha o corpo todo,
Um buraco depois feito no lodo,
Eis ao que se reduz a humana vida. (Desenterra outra caveira.)
Eis um outro craneo; quem sabe se não seria de um jurisconsulto. Agora acabaram as trapaças, as distincções subtis, as causas, as auctoridades legaes e as finuras. Em vida, de certo não consentia sem um processo que este imbecil lhe percutisse o craneo com a enxada. Porque não lhe intenta agora uma acção por vias de facto e sevicias? Quem sabe, talvez fosse um nedio comprador de bens immoveis, com os seus direitos, rendas, privilegios, hypothecas e contratos. Eil-o agora elle mesmo hypothecado, tem o privilegio commum a todos os mortaes, de ver a sua cabeça coberta de pó e terra. Pois que! todas as acquisições tão bem garantidas, não terão outro complemento senão assegurar-lhe um espaço apenas igual á superficie de dois contratos de venda? Todos os seus titulos mal caberiam n'este cofre, e comtudo é hoje a sua unica propriedade. Ah!
Unica, senhor!
Horacio, o pergaminho faz-se de pelles de carneiro, não é verdade?
Tambem de bezerro.
São pois os carneiros e bezerros que fazem fé em taes titulos. Vou interrogar este rustico. A quem pertence essa cova?
A mim!
Um buraco depois feito no lodo,
Eis ao que se reduz a humana vida.
Effectivamente, creio ser tua, pois que estás dentro d'ella.
O senhor está fóra, logo não é sua; mas apesar d'ella não me ser destinada, é comtudo minha.
Mentes, é para um morto, e não para um vivo.
Eis um desmentido prompto e que não admitte replica.
Para que homem cavas essa cova?
Senhor, não é para um homem!
Para que mulher então?
Nem tão pouco para uma mulher!
Quem será pois depositado n'esta cova?
Uma pessoa que foi mulher, hoje é defunta; Deus se compadeça da sua alma.
Que agudeza no seu positivismo! é preciso fallar-lhe com toda a clareza, para não ser por elle enredado. Por Deus, Horacio, que noto ha tres annos que o mundo se torna retrogrado, e o rustico se approxima tanto do cortezão, que quasi se confundem. Ha quanto tempo és coveiro?
Dei-me a este officio desde o dia em que o defunto rei Hamlet venceu a Fortimbraz.
Quanto tempo haverá?
Não o sabe? Pois não ha imbecil que lh'o não diga. Foi no mesmo dia em que nasceu o joven Hamlet, aquelle que enlouqueceu, e foi mandado para Inglaterra.
É isso; e porque o mandaram para Inglaterra?
Ora, porque? porque estava louco; talvez lá recupere a rasão, e se não a recuperar, tambem não se perde muito.
E porque?
Não será visto aqui, e lá todos são tão loucos como elle.
Como enlouqueceu elle?
De um modo bem estranho, segundo dizem.
Mas de que modo?
É claro, perdendo a rasão.
E qual foi o motivo?
Um motivo dinamarquez, um motivo d'este paiz em que sou coveiro desde a infancia, ha trinta annos.
Dize-me, quanto tempo póde um homem estar enterrado, antes de apodrecer?
Se não está já podre antes de morrer (porque temos n'esta epocha muito corpo gangrenado, que mal supporta a inhumação), póde conservar-se de oito a nove annos; um surrador conserva-se nove annos.
Porque mais tempo que os outros?
O exercicio da sua profissão cortiu-lhe de tal modo a pelle, que fica impermeavel por muito tempo, e de certo sabe que a agua é o mais activo destruidor dos cadaveres. Vê esta caveira? Ficou vinte e tres annos debaixo da terra.
De quem era?
De um typo original; ora, quem lhe parece que seria?
Como posso eu sabel-o?
Leve-o o diabo. Lembro-me ainda do dia em que me vasou sobre a cabeça um frasco de vinho do Rheno. Esta caveira, senhor, era de Yorick, o bobo do rei.
Este craneo?
Sim, este mesmo.
Dá-m'o, deixa-me vel-o. Pobre Yorick! Conheci-o, Horacio, era uma mina inexgotavel de ditos engraçados; tinha uma imaginação viva e fecunda! quantas vezes me levou aos hombros! agora ao pensal-o annuvia-se-me o coração. Aqui estavam os seus labios, em que tantos osculos depuz. Onde estão agora os teus sarcasmos, as tuas replicas, as tuas canções, esses rasgos de alegria, que promoviam a hilaridade de todos os convivas? Que! pois ninguem já póde rir com as tuas facecias? Descarnadas estão as faces. Vae, entra como agora estás, na alcova de alguma beldade da moda; dize-lhe então que arrebique e enfeites nada lhe valem, porque um dia será igual a ti. Fal-a rir, dizendo-lh'o. Dize-me tu, Horacio…
O que, meu senhor?
Julgas tu que Alexandre, depois de enterrado, se parecesse com Yorick?
De certo!
E que tivesse tão mau cheiro? Fóra! (Deita fóra o craneo.)
Sem duvida alguma, senhor.
A que destinos grosseiros é possivel baixarmos, Horacio? Quem sabe se, proseguindo nas suas successivas transformações, as cinzas de Alexandre não estão hoje empregadas em tapar um barril?
Seria entrar n'um exame demasiado minucioso.
Não concordo. Podemos seguir seriamente esse exame, e com probabilidades de obter um resultado. Por exemplo, Alexandre está morto, Alexandre está sepultado, Alexandre tornou-se pó; o pó é terra, da terra tira-se argilla, e quem impede que esta argilla, ultima metamorphose de Alexandre, seja empregada como batoque n'um barril de cerveja? O imperial Cesar, morto, tornou-se pó, e serve talvez para vedar uma fenda e interceptar a passagem do ar; e essa argilla, que espalhava o terror sobre o universo, vae calafetar um muro para impedir que o vento passe. Mas, silencio: afastemo-nos, chega o rei: (Entram processionalmente padres, levando á mão o caixão de Ophelia; segue-se Laerte e o cortejo funebre, mais atrás o rei, a rainha e a côrte) e tambem a rainha! toda a côrte! A quem prestarão os ultimos deveres? De quem será este funeral incompleto? Tudo denuncia um suicidio. Deve porém ser pessoa de categoria! Occultemo-nos e observemos, Horacio. (Afastam-se um pouco Hamlet e Horacio.)
Que ceremonias falta cumprir?
Olha, é Laerte, um nobre mancebo.
Ha mais alguma cousa que fazer?
Fizemos já para o seu funeral tudo quanto nos era licito fazer; a sua morte tinha um caracter suspeito, e se ordens superiores não tivessem imposto silencio aos canones da Igreja, teria sido sepultada em chão profano, onde teria ficado até que a acordasse o clarim do juizo final. Em vez de orar por ella, teriamos lançado sobre o seu corpo tições, entulho e pedras; e comtudo coroaram-n'a como virgem, e flores cobriram a sua campa, e o tanger do bronze sagrado acompanhou-a á sua ultima morada.
Então nada mais se póde fazer?
Mais nada; profanariamos o rito sagrado se entoassemos um requiem, ou se implorassemos para ella o repouso destinado ás almas que voaram ao céu santamente.
Seja pois o seu corpo depositado na campa, e possam d'elle e da sua carne, pura e sem manha, desabrochar violetas! Sou eu que t'o digo, padre sem alma, minha irmã gosará no céu a bemaventurança eterna, emquanto que tu extorcer-te-has no inferno nas convulsões do supplicio dos condemnados.
Que? É pois a bella Ophelia?
Flores para esta joven flor. Adeus! Esperava ver-te esposa do meu Hamlet; contava, encantadora donzella, enfeitar o teu leito nupcial; nunca pensei espargir flores sobre a tua sepultura.
Oh! que uma triplice e dez vezes triplice maldição cáia sobre a cabeça do scelerado que commetteu tão negra acção, e provocou a perda da sua rasão. Esperem que, antes que a terra a cubra, a estreite mais uma vez nos meus braços (salta para dentro da cova). Agora enterrem conjunctamente vivos e mortos, elevem sobre nós uma montanha que exceda em altura o antigo Pélion, ou o azulado Olympo, cujo cimo vem beijar as nuvens.
Quem é que na sua dor se exprime com tanta emphase; cuja voz detem os astros no seu giro, attonitos de o ouvirem? Sou Hamlet, o dinamarquez! (Arremessa-se á cova.)
O inferno se apodere da tua alma!
É um abominavel desejo: larga-me a garganta, retira as mãos, abaixo, aconselho-t'o eu; não sou nem mau, nem arrebatado, mas é perigoso excitar-me, e obrarás assisadamente pensando assim. Abaixo as mãos!
Separem-os.
Hamlet! Hamlet!
Senhores!
Contenham-se.
Por um tal motivo sinto-me capaz de combater com elle até ao ultimo alento.
Meu filho, qual é o motivo?
Amava Ophelia, e as affeições juntas de quarenta mil irmãos não poderiam igualar a minha; (a Laerte) e que serias tu capaz de fazer por ella?
Deixa-o, Laerte, está louco.
Pelo amor de Deus, não faça caso das suas palavras.
Vamos, dize-me, que tencionas tu fazer? Prantear, combater, jejuar, rasgar tuas proprias carnes, beber o Issel todo, devorar um crocodilo? Tudo farei. Vieste aqui para te lamentar, para me desafiar, precipitando-te dentro da sua cova; enterra-te vivo com ella, outro tanto farei; e já que fallaste em montanhas, accumulem ellas sobre nós tanta terra, que o cume da nossa pyramide tumular toque a zona ardente, e ao pé d'ella o monte Ossa não pareça mais que uma verruga. Pódes encolerisar-te, que não me assustam os teus furores.
É um accesso de loucura que durará algum tempo; depois, similhante á meiga pomba acalentando os filhinhos, ficará silencioso e immovel.
Dize-me, porque me tratas assim? Sempre fui teu amigo. Mas não importa. Aindaque Hercules se oppozesse, se o gato miasse, o cão havia de ladrar (afasta-se).
Siga-o, peço-lhe, meu caro Horacio. (Horacio segue Hamlet) (a Laerte) Tem paciencia, lembra-te da nossa conversação de hontem, (Á rainha) Querida Gertrudes, faça com que velem sobre Hamlet; (á parte) é preciso dar como monumento a este tumulo uma victima humana. Cedo estarei descansado; até então, paciencia! (Sáem todos.)
Basta sobre esse assumpto; passemos ao outro, recordas-te bem de todas as circumstancias?
Se me lembro, meu senhor!
Uma especie de lucta apoderára-se do meu coração, vedava-me o somno, sentia-me peior que um facinora acorrentado! Adoptando comtudo uma resolução temeraria, achei na temeridade a minha força; lembremo-nos sempre, Horacio, que a imprudencia é muitas vezes o nosso prestante auxiliar, quando os nossos mais profundos calculos são impotentes, e isto deve-nos ensinar que ha uma Providencia que aperfeiçoa e completa os projectos que imperfeitamente esboçâmos.
Não ha cousa mais certa!
Saí pois do meu camarote a bordo, e coberto com as roupas de viagem procurei e encontrei pelo tacto, ás escuras, a sua mala; abri-a e revolvi-a toda, em seguida recolhi-me ao meu aposento; então o perigo baniu todo o escrupulo, abri o despacho rompendo o sêllo real! Escuta o que li, Horacio. Oh! perfidia real! Apoiando-se em differentes motivos, a salvação da Dinamarca e da Inglaterra, e o perigo que para elle havia em eu continuar a viver, o rei ordenava expressamente, que depois da leitura d'essa carta, sem demora alguma, nem mesmo a necessaria para afiar o cutello, eu fosse decapitado.
Será possivel?
Aqui tens a carta, lê-a á tua vontade. Mas queres tu saber o que eu então fiz?
Diga, senhor; que foi?
Para saír salvo dos laços d'esta infame traição, appellei para a minha intelligencia, e depressa formei o meu plano. Sentei-me, e redigi um despacho com a melhor letra que pude fazer. Antigamente, assim como os nossos homens d'estado considerava uma vergonha ter boa letra; e se soubesses quanto eu desejei perdel-a! mas n'esta occasião foi-me maravilhosamente util. Queres saber o que escrevi?
Com todo o gosto, senhor.
Dirigindo-se ao monarcha inglez como seu fiel tributario, dizia-lhe o rei de Dinamarca, se queria que se conservasse virente a palma da amisade, a paz se coroasse de espigas e se estreitassem os laços de uma união duradoura, lhe ordenava que, finda a leitura da sua carta, sem outro exame, sem lhes dar tempo de se confessarem, fizesse suppliciar os portadores do despacho.
Mas com que sêllo fechou esse escripto?
A Providencia não me desamparou ainda n'essa occasião; tinha na minha bolsa o sêllo de meu pae, reproducção exacta do sêllo do estado. Dobrei pois o meu despacho na fórma do estylo, subscriptei-o e sellei-o, depois colloquei-o no logar em que estava o outro: o engano não foi descoberto. No dia seguinte, em vez de combate sabes o que houve.
Assim, Rosencrantz e Guildenstern, vão receber o seu justo castigo?
Procuraram-n'o por suas proprias mãos; não me peza na consciencia. Só de si se podem queixar. É sempre uma desgraça para vis subalternos acharem-se envolvidos nas contendas de dois poderosos adversarios.
E é rei? meu Deus!
O meu dever está agora claramente indicado. Áquelle que assassinou meu pae, deshonrou minha mãe, que se interpoz entre a escolha da nação e as minhas esperanças, que attentou contra a minha vida traiçoeira e perfidamente, é justiça que o meu braço o puna. E não seria um crime digno da condemnação eterna, deixar continuar esta ulcera no seu trabalho corrosivo?
Mas dentro em pouco saberá de Inglaterra o desenlace de todo este negocio?
Em breve o saberá, é verdade, mas o tempo que até então decorrer, pertence-me, e o fio da vida do homem corta-se em menos tempo do que o preciso para contar até dois. O que me peza, meu caro Horacio, é ter desattendido Laerte, porque eu tambem sinto o que elle deve sentir. Sempre prezei a sua estima; mas a emphatica exaltação da sua dor exacerbou-me.
Silencio, principe; approxima-se alguem.
Alegro-me, principe, que tenha regressado á Dinamarca.
Obrigado, senhor. (A Horacio) Conheces tu esse insecto?
Não, meu senhor.
És pois um homem moral, é um vicio conhecel-o. É verdade que possue muitas e ferteis propriedades, mas é um estupido animal, que tem mando sobre os outros, seguro de achar a sua mangedoura na mesa real; é um ente desprezivel, mas, como disse, é senhor de vastos dominios.
Meu bom senhor, se não incommodo vossa alteza, alguma cousa tinha que lhe communicar da parte de sua magestade.
Escutal-o-hei com prazer. Mas cubra-se já, que o chapéu foi feito para estar na cabeça.
Obrigado, senhor, mas faz muita calma.
Faz muito frio, não acha? O vento está norte.
Effectivamente, faz bastante frio.
Não sei se é effeito de uma predisposição particular, mas acho um calor abrasador.
Não ha duvida, faz tanto calor, que nem posso quasi respirar. Mas, meu senhor, sua magestade encarregou-me de lhe dizer que fez uma aposta consideravel, de que vossa alteza é o motivo.
Faz favor.
Perdão, senhor, mas não me incommoda. Vossa alteza de certo é sabedor que chegou a esta côrte Laerte, um joven mui dextro, dotado das mais raras qualidades, agradavel no trato, um perfeito moço. Para fallar d'elle como merece, póde-se dizer que é o espelho e o almanach do bom tom, porque n'elle estão reunidas todas as qualidades que deve possuir um perfeito cavalheiro.
Senhor, não encareceu o retrato que d'elle fez; não é sufficiente toda a arithmetica da memoria para redigir o inventario especificado de todas as suas perfeições, e ainda assim o juizo ficaria áquem da verdade. Fallando conscienciosamente, tenho-o na conta de um cavalheiro distincto e de raro merecimento; digo-o sinceramente; para achar outro igual, forçoso é que se olhe no seu espelho: os outros não seriam senão a sua sombra.
O principe falla d'elle com a convicção da estima.
De que se trata, pois? Escusâmos embaçar as suas qualidades com o nosso juizo.
Senhor!
Não seria possivel fallar uma lingua mais intelligivel? É-o por certo, senhor.
Com que fim pronunciou o nome d'aquelle cavalheiro?
De Laerte?
Acabou-se-lhe o cabedal; ignora completamente o que ha de responder.
É verdade.
Sei que não ignora…
Queria que assim pensasse a meu respeito; e se assim fosse, fraco elogio para mim seria. Continue agora.
Vossa alteza não ignora a superioridade de Laerte?
É o que não affirmo, com o receio de me comparar a elle. Para conhecer um homem a fundo era necessario vestir a sua pelle.
Quero fallar da sua superioridade em manejar as armas; gosa da reputação de não ter rival.
Quaes são as suas armas de predilecção?
Florete e adaga.
São só duas! prosiga.
O rei apostou seis bellos cavallos da melhor raça, contra seis espadas e seis adagas francezas de Laerte, sem contar os cinturões, talabartes e tudo o mais. Tres dos accessorios sobretudo são dignos da aposta e de um trabalho maravilhoso, no estylo mesmo das armas.
Que chama accessorios?
Bem sabia eu que antes de terminar era infallivel algum reparo do principe.
Os accessorios, senhor, são os enfeites dos cintos e talabartes em que se suspendem as espadas.
A expressão seria mais exacta se em vez de espada usassemos um canhão; sirvamo-nos pois do termo cinto na generalidade. Prosiga. Seis bellos cavallos contra seis espadas e seus pertences, incluindo tres cintos, obra prima da arte franceza; é pois a França contra a Dinamarca. Mas qual é o motivo d'esta aposta?
O rei apostou que em doze golpes, Laerte não tocaria o principe senão tres vezes. Laerte apostou que seriam nove em doze. A questão será promptamente decidida se vossa alteza se dignar responder.
E se eu responder negativamente?
Quer dizer, se o principe convier em combater.
Senhor, vou agora passeiar n'esta sala; costumo todos os dias a esta hora, entregar-me a esses exercicios: depois estou ás ordens do rei. Tragam floretes com a annuencia de Laerte; e se o rei persistir no seu empenho far-lhe-hei ganhar a aposta se podér; no caso contrario restam-me os golpes recebidos e a vergonha.
Deverei dar ao rei a sua resposta?
Disse-lhe o meu pensamento: o seu talento saberá completar a resposta.
Um servo dedicado de vossa alteza. (Sáe.)
Muito agradecido, obrigado (a Horacio); fez bem de o dizer elle mesmo, ninguem se encarregava por certo de tal missão.
Finalmente, estamos sós!
Estou certo que ao collo da ama, antes de o sugar, elogiava a alvura do seu seio; similhante a tantas pessoas da sua tempera, que são o encanto dos ignorantes, abraçam as modas do dia, e revestem-se de um falso verniz de polidez, e, graças a essa mascara, são escutados pelos sensatos; mas experimentem-os, são como bolas de sabão, que se desvanecem ao menor sopro.
Senhor! o rei mandou o joven Osrico cumprimentar vossa alteza da sua parte, o qual lhe disse que o principe esperava n'esta sala. El-rei envia-me para saber se é intenção de vossa alteza combater já, ou adiar o combate.
Tomei já a minha resolução, e concorda com os desejos de sua magestade. Se Laerte está prompto, tambem eu o estou; immediatamente, ou quando quizer, comtanto que me sinta sempre tão bem disposto como agora o estou.
Em breve chegarão o rei e a rainha, e toda a côrte.
Bemvindos sejam!
É pedido da rainha que receba cordialmente Laerte, antes de dar principio á contenda.
É justo o seu conselho. (O senhor sáe.)
Receio que o principe perca a aposta.
Não creias tal; depois que elle partiu, tenho-me continuamente exercitado no jogo das armas: com a vantagem concedida a victoria é certa. Se tu soubesse que dor sinto no coração! Não importa.
Comtudo, senhor!
É uma loucura, uma leve apprehensão, que apenas poderia influenciar uma fraca mulher.
Se sente alguma repugnancia no seu espirito, obedeça-lhe. Vou prevenil-os que não venham, que o principe se sente indisposto.
De modo nenhum! Luctarei com os meus presentimentos; a Providencia tem já escripto o meu destino. Se tenho de morrer, nada o evitará, forçoso é obedecer aos seus decretos; que seja hoje ou ámanhã, estou prompto; tenho dito. Poisque o homem não é senhor do seu destino, que importa que seja mais tarde ou mais cedo? Será o que Deus quizer.
Perdoe-me, se o offendi, mas perdoe-me como cavalheiro. Os que nos cercam, sabem-o, e creio que tambem deve saber, que um terrivel desvairamento se apossou de mim. Se alguma cousa fiz que podesse irritar o seu caracter e a sua honra e melindre, proclamo-o bem alto: «Loucura!» Seria ainda Hamlet que offendeu Laerte? Nunca, nunca poderia ser Hamlet. Então não era elle, e não sendo elle, como offenderia Hamlet a Laerte? É claro, não era elle; renego todos esses actos. Quem foi então? a loucura. Sendo assim, Hamlet abraça o offendido; o verdadeiro inimigo do desditoso Hamlet é a sua loucura. Senhor, depois d'esta confissão, em que perante todos renego toda a má intenção, poderá ainda a sua generosidade condemnar-me? É como se inconscientemente despedisse por cima de uma casa um dardo, e fosse ferir um irmão.
Meu coração está satisfeito; era elle que mais me excitava á vingança; mas no campo da honra recuso-me a toda a conciliação, até que arbitros mais idosos e de provada lealdade, me imponham, fundados em precedentes, uma sentença de paz, que ponha o meu nome ao abrigo de toda a suspeita. Até então acceito a amisade que me offerece, e nada farei em seu detrimento.
Acceito francamente essa promessa, e a lucta fraternal que vamos encetar. Venham os floretes, comecemos.
Dêem-me um florete!
Vou ser o seu alvo, Laerte; ao pé da minha inexperiencia vae sobresaír a sua pericia, como um astro brilhante em noite escura.
Zomba de mim?
Juro que não!
Dá-lhes floretes, Osrico, Primo Hamlet, conheces a aposta?
Perfeitamente, senhor; aposta demasiado vantajosa para o mais fraco.
Nada receio; já os conheço ambos, e poisque Hamlet é quem mais avantajado está, a sorte está pelo nosso lado.
Este não, que é muito pesado; outro!
Este convem-me; os floretes são todos iguaes, não é verdade?
Sim, meu bom senhor. (Collocam-se.)
Ponham os frascos sobre a mesa. Se Hamlet o tocar a primeira e segunda vez, ou se elle aparar o terceiro golpe, que as baterias rompam uma salva geral; beberei á saude de Hamlet, e lançarei na taça uma perola mais preciosa que as que usavam nos seus diademas os quatro reis meus predecessores. Venham as taças. Que os timbales annunciem aos clarins, os clarins aos canhões, os canhões aos céus, os céus á terra que o rei brinda por Hamlet. Vamos, senhores, podem começar, e vós juizes, attenção!
Em guarda!
Em guarda, principe! (Começam.)
Uma!
Não tocou.
Os juizes que decidam!
Tocou, não ha duvida.
Recomecemos.
Esperem, encham as taças. Hamlet, dou-te esta perola, brindo por ti. Offereçam-lhe a taça. (Clarins e salvas.)
Prefiro acabar a contenda, esperem; depois beberei. Vamos, Laerte. Uma! que diz agora?
Fui tocado, confesso-o.
Hamlet ganha.
Estás fatigado, falta-te o fôlego. Limpa a fronte com o meu lenço. A rainha bebe á tua victoria, Hamlet.
Minha senhora!
Não bebas, Gertrudes.
Bebo, senhor, desculpe-me, desejo-o.
Era a taça envenenada, já não ha remedio.
Ainda não bebo, mais tarde, senhora.
Deixa-me limpar tua fronte, filho!
Senhor, agora verá.
Já não creio.
E, comtudo, diz-me a consciencia que não.
Vamos, Laerte, a terceira prova; não me poupe, peço-lh'o; desenvolva toda a sua pericia, não me trate como creança.
Que diz? em guarda, pois.
Ainda nada.
Agora toquei. (No encarniçado da lucta trocam os floretes, e Hamlet é ferido e fere Laerte.)
Separem-nos, estão desesperados.
Não, recomecemos. (A rainha cáe)
Acudam á rainha; acudam!
Feridos ambos!! que é isto, senhor?
Como está Laerte?
Colhido no meu proprio laço, morro pela minha traição.
Que tem a rainha?
Desmaiou á vista do sangue.
Não, não! a bebida, a bebida! meu Hamlet, a bebida! a bebida! envenenada… (Morre.)
Oh! infamia! fechem as portas, traição! quero conhecel-a.
Eu t'o digo, é esta: Hamlet, morres assassinado, nada te póde salvar; meia hora, quando muito, te resta de vida, na tua mão ainda conservas a arma da traição afiada e envenenada; tambem sou victima da minha perfidia. Escuta, já sinto a morte, tua mãe envenenada… morro, Hamlet! o rei… só o rei culpado… (Desfallecendo.)
A ponta envenenada! veneno, cumpre o teu dever. (Fere o rei.)
Traição! traição!
Defendam-me, é apenas leve ferimento.
Bebe os restos d'esta taça, incestuoso assassino, damnado dinamarquez. Procura a perola, achal-a-has seguindo minha mãe. (Vasa á força o resto da taça pela bôca do rei, que cáe e morre.)
É justo o castigo; morre pelo veneno que preparáras. Hamlet, perdoemo-nos mutuamente, e livres de qualquer reciproco remorso subam nossas almas abraçadas ao céu. (Morre.)