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Guerras do Alecrim e da Manjerona

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Guerras do Alecrim e da Manjerona
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Interlocutores:

Dom Gilvaz

Dom Fuas

Dom Tiburcio

Dom Lancelote, velho

Dona Clóris, Sobrinha de Dom Lancerote.

Dona Niza, Sobrinha de Dom Lancerote.

Sevadilha, Graciosa, Criada.

Fagundes, Velha, Criada.

Semicúpio, Gracioso, Criado de Dom Gilvaz.

Primeira Parte

Cena I

Prado, com casario no fim. Entram Dona Clóris, Dona Nize, e Sevadilha, com os rostos cobertos; e Dom Fuas, Dom Gilvaz, e Semicúpio, seguindo-as.

Dom Gilvaz: Diana destes bosques, cessem os acelerados desvios desse rigor, pois quando rêmora me suspendeis, sois ímã, que me traís. (Para D. Clóris).

Dom Fuas: Flora destes prados, suspendei a fatigada porfia de vosso desdém, que essa discorde fuga com que me desenganais, é harmoniosa atração de meus carinhos; pois nos passos desses retiros forma compasso o meu amor. (Para D.Nize).

Semicúpio: E tu, que vem atrás, serás o seringa destas brenhas; e para o seres com mais propriedade, deixa-te ficar mais atrás, pois apesar doa esguichos de teu rigor, hei de ser conglutinado rabo-leva das tuas costas. (Para Sevadilha).

Dona Clóris: Cavalheiro, se é que o sois, peço-vos, me não sigais, que mal sabeis o perigo a que me expõe a vossa porfia. (Para D. G.)

Dom Gilvaz: Galhardo impossível, em cujas nubladas esferas ardem ocultos dos sóis, e se abrasa patente um coração, permiti, que esta vez seja fineza a desobediência; porque seria agravo de vossos reflexos negar-lhe o inteiro culto na visualidade desse esplendor; porque assim, formosa Ninfa, ou hei ver-nos, ou seguir-vos, porque conheça, já que não o sol desse oriente, ao menos o oriente desse sol.

Dona Clóris: (à parte): Que será de mim, se este homem me seguir?

Dona Nize: Já parece teima essa porfia; vede, senhor, que se me seguis, que impossibilitais o meio para ver-me outra vez.

Dom Fuas: Para que são, belíssimo encanto, esses avaros melindres do repúdio? Se já comecei a querer-vos, como posso deixar de seguir-vos? Pois até não saber, ou quem sois, ou aonde habitais, serei eterno girassol de vossas luzes.

Sevadilha: Ora basta já de porfia, senão vou revirando. (Para Semicúpio).

Semicúpio: Tem não, Sargeta encantadora, que com embiocadas denguices, feita papão das almas, encobres olho e meio, para matares gene de meio olho; são escusados esses esconderelos, pois pela unha desse melindre conheço o leão desta cara.

Dona Clóris: Isso já parece teima.

Dom Gilvaz: Isto é querer-vos.

Dona Nize: Isso é porfia.

Dom Fuas: É adorar-vos.

Sevadilha: Isto é empurração.

Semicúpio: Agora, isto bichancrear, pouco mais ou menos.

Dom Gilvaz: Senhoras, para que nos cansamos? Ainda que pareça grosseria não obedecer, entendei que a nossa curiosidade e amor não permitirá que vos ausenteis sem ao menos com a certeza de vos tornarmos a ver, dando-nos também o seguro de onde morais, para que possa o nosso amor multiplicar os votos na peregrinação desses animados templos da formosura.

Dom Fuas: Eis aí, senhora, o que queremos.

Sevadilha: Em termos, sem tirar nem pôr.

Dona Clóris: Pois, senhor, se só por isso esperais, bastará que esse criado nos siga; porque de outra sorte destruís o mesmo que edificais.

Dom Gilvaz: E admitireis a minha fineza?

Dona Clóris: Sendo verdadeira, por que não?

Dom Fuas: Admitireis os repetidos sacrifícios de meu amor?

Dona Nize: Sim, se dita me abona?

Dom Gilvaz e Dom Fuas: Que essa dita me abona?

Dona Nize: Este ramo de Manjerona.

Dom Fuas: Na minha alma o disporei, para que sempre em virentes pompas se ostente troféu da Primavera.

Dom Gilvaz: Mereça eu igual favor para segurança da vossa palavra.

Dona Clóris: Este ramo de Alecrim, que tem as raízes no meu coração, seja o fiador que me abone.

Dom Gilvaz: Por único na minha estimação será este Alecrim o Fênix das plantas, que abrasando-se nos incêndios de meu peito, se eternizará no seu mesmo ardor.

Semicúpio: Isso é bom, segurar o barco; mas a tácita hipoteca não me cheira muito, digam o que quiserem os jardineiros.

Dona Clóris: Cada uma de nós estima tanto qualquer dessa plantas, que mais fácil será perder a vida, do que elas percam o crédito de verdadeiras.

Semicúpio: Ai! Basta, basta, já aqui não está quem falou: vossa mercês perdoem, que eu não sabia que eram do rancho do Alecrim e Manjerona: resta-me também que tu, cozinheirazinha, vivas arranchada com alguma ervinha, que me dês por prenda, pois também me quero segurar.

Sevadilha: Eis, aí tem esse malmequer, que este é o meu rancho; estime-o bem, não o deixe murchar.

Semicúpio: Ditoso seria eu, se o teu malmequer se murchasse.

Dona Clóris: Pois, senhor, como estais satisfeito, desejarei estimásseis esse ramo não tanto como prenda minha, mas por ser de Alecrim.

Dona Nize: O mesmo vos recomendo da Manjerona.

Dona Clóris: Advertindo que aquele que mais extremos fizer a nosso respeito, coroará de triunfos a Manjerona, ou Alecrim, para que se veja qual destas duas plantas tem mais poderosos influxos para vencer impossíveis.

Dona Nize: Desejara que triunfasse a Manjerona. (Vai-se).

Dona Clóris: E eu o Alecrim. (Vai-se).

Semicúpio: Cuidado no bem-me-quer.

Dom Gilvaz: Ó Semicúpio, vai seguindo-as para sabermos aonde moram; anda, não as percas de vista.

Semicúpio: Elas já lá vão a perder de vista; mas eu pelo faro as encontrarei, que sou lindo perdigueiro para estas caçadas. (Vai-se).

Dom Fuas: Quem serão, Dom Gilvaz, essas duas mulheres?

Dom Gilvaz: Essa pergunta não tem resposta, pois bem vistes o cuidado com que vendaram o rosto para ferir os corações como Cupido; mas pelo bom tratamento, e asseio, indicam ser gente abastada.

Dom Fuas: Oxalá que assim fora; porque em tal caso, admitindo os meus carinhos, poderei com a fortuna de esposo ser meeiro no cabedal.

Dom Gilvaz: Ai, amigo Dom Fuás, que direi eu, que ando pingando, pois já não morro de fome, por não ter sobre que cair morto?

Dom Fuas: Elas foram aturdidas com palanfrórios.

Dom Gilvaz: Já que do mais somos famintos, ao menos sejamos fartos de palavras. (Entra Semicúpio)

Semicúpio: Já fica assinalada na carta de marear toda a Costa de Leste a Oeste, com seus cachopos, e baixios.

Dom Gilvaz: Aonde moram?

Semicúpio: são as nossas vizinhas, sobrinhas de Dom Lancerote, aquele mineiro velho, que veio das minas o ano passado.

Dom Fuas: Basta que são essas! Por isso elas cobriram o rosto.

Semicúpio: isso tem elas, que não são descaradas; antes são tão sisudas, que nunca encararam para ninguém.

Dom Gilvaz: uma delas sei eu, que se chama Dona Clóris.

Semicúpio: e a outra Dona Nize, isso sabia eu há muito tempo.

Dom Fuas: e como saberei eu, qual delas é a da Manjerona?

Semicúpio: isso é fácil, em sabendo-se qual é a do Alecrim, logo se sabe qual é a da Manjerona.

Dom Fuas: grande sutileza! Vamos Dom Gil.

Semicúpio: já que se vão, advirtam de caminho, que segundo as notícias, que tenho, bem podem desistir da empresa; porque o velho é tão cioso das sobrinhas como do dinheiro; a casa é um recolhimento; as portas de bronze; as janelas de encerado; as frestas são óculos de ver ao longe, que nem ao perto se vêem; as trapeiras são zimbórios tão altos, que nem as nuvens lhe passam por alto; as paredes do jardim são mestras, e as chaves das portas discípulas, porque ainda não sabem abrir, ma só um bem há, e é, que tendo tudo tão forte, só o telhado é de vidro. Com que, senhores meus, outro oficio, contentem-se com cheirar a sua Manjerona e o seu Alecrim; que amor que entra pelo nariz, não é bem que chegue ao coração.

Dom Gilvaz: Semicúpio, não temo impossíveis, tendo da minha parte a tua indústria, que espero de ti apures toda a força de teu engenho para os combates dessa muralha.

Semicúpio: Ah! Senhor Dom Gilvaz, o meu Aríete já se acha mui cansado com tanto vaivém, pois nem todo o artifício de minhas máquinas pode abrir brecha nessa diamantina bolsa, que tão cerrada se dificulta aos meus merecimentos.

Dom Gilvaz: Semicúpio amigo, tem ânimo, que se montamos a burra de Dom Lancerote, saltaremos de contentes.

Semicúpio: tal é a minha desgraça e a sua miséria, que ainda com esta burra me dá dois coices.

Dom Gilvaz: Dom Fuas, ficai-vos embora, que me vou armar de esperanças, para que nos combates de amor triunfe o Alecrim.

Dom Fuas: D. Gil, vamos a forro, e a partido pois que Semicúpio é tão destro na matéria.

Dom Gilvaz: por ora não pode ainda ser; deixai-me primeiro tentar o vau, que vós também navegareis no mar de Cupido.

Dom Fuas: isso não merece a nossa amizade.

Dom Gilvaz: se vós sois do rancho da Manjerona, já me podereis conhecer por inimigo declarado, seguindo eu a parcialidade do Alecrim; e como nas guerras destas plantas havemos os dois ser contrários, mal poderei socorrer-vos; e assim, ficai-vos embora, Dom Fuas, e viva o Alecrim. (vai-se)

Semicúpio: e viva o malmequer. (vai-se)

Dom Fuas: viverá a Manjerona apesar do mais intensivo ardor de opostos Planetas.

 

(Entram Fagundes com manto e capelo)

Fagundes: e bom sumiço! Aonde estarão estas meninas, que há mais de quatro horas que foram à Missa, e ainda não há fumo delas? Meu senhor, vossa mercê acaso veria por aqui duas mulheres com uma criada?

Dom Fuas: Que sinais tinham?

Fagundes: Tinha uma delas uns sinais pretos no rosto, e a outra uns sinais de bexigas.

Dom Fuas: E que mais?

Fagundes: Uma delas tem os olhos verdes, cor de pimentão, que não está maduro, e a outra olhos pardos, com raiz de oliveira; uma tem cova na barba, e a outra barba na cova, uma tem espinhela caída, e a outra um leicenço num braço.

Dom Fuas: Com esses sinais, nunca vi mulher nesta vida.

Fagundes: Meu senhor, uma delas trazia um ramo de Alecrim no peito, e a outra de Manjerona.

Dom Fuas: Vi muito bem, que são as sobrinhas de Dom Lancerote.

Fagundes: Essas mesmas são: ora diga-me, aonde as viu?

Dom Fuas: Promete vossa mercê fazer-me quanto lhe eu pedir?

Fagundes: Ai, que coisa me pedirá vossa mercê, que lhe não faça, dizendo-me aonde estão as minhas meninas?

Dom Fuas: Pois descanse, que elas aqui estiveram, e agora foram para casa.

Fagundes: Ai, boas novas tenha.

Dom Fuas: Ora, pois, em alvíssaras desta boa nova quero me diga como se chama…

Fagundes: Eu? Ambrósia Fagundes, para servir a vossa mercê.

Dom Fuas: Digo, como se chama a que trazia a Manjerona no peito?

Fagundes: Chama-se Dona Nize.

Dom Fuas: Pois, Senhora Ambrósia Fagundes, saiba que eu adoro tão excessivamente a Dona Nize, que me prêmio do meu extremo me franqueou este ramo de Manjerona.

Fagundes: É verdade, que pelo cheiro o conheço, que é o mesmo.

Dom Fuas: E como me dizem os impossíveis, que há de a poder comunicar, quisera dever-lhe a galantaria de ser minha protetora nesta amorosa pretensão; e fie de mim, que o premio há de ser igual ao meu desejo.

Fagundes: Meu senhor, difícil empresa toma vossa mercê; porque além da excessiva cautela do tio, que nisto não se fala, uma delas está para casar com um primo, que hoje se espera de fora da terra, e a outra qualquer dia vai a ser freira; com que, meu senhor, desengane-se, que ali não há que arranhar.

Dom Fuas: E qual delas é a que casa?

Fagundes: Ainda se não sabe; porque o noivo vem à escolha daquela que lhe mais agradar.

Dom Fuas: Como o vencer impossíveis é próprio de um verdadeiro amante, nós havemos intentar esta empresa, saia o que sair; que a diligência é mãe de boa ventura: favoreça-me vossa mercê, Senhora Fagundes, com o seu voto, que eu terei bom despacho no tribunal de Cupido; tenho dinheiro e resolução, e tendo a vossa mercê da minha parte, certo tenho o triunfo da Manjerona.

Fagundes: Pois por mim não se desmanche a festa, que eu não sou desmancha-prazeres; esta noite o espero debaixo da janela do cozinha; sabe onde é?

Dom Fuas: Bem sei.

Fagundes: Pois espere-me aí, que eu lhe direi o que há na matéria.

Dom Fuas: Deixe-me beijar-lhe os pés, ó insigne Fagundes, feliz corretora de Cupido.

Fagundes: Ai! Levante-se, senhor, não me beije os pés, que os tenho agora mui suados e um tanto fétidos; descanse, senhor, que Dona Nize há de ser sua apesar das cautelas do tio, e das carícias do noivo.

Dom Fuas: Se tal consigo, não tenho mais que desejar.

Canta Dom Fuás a seguinte

ÁRIA
 
Se chego a vencer
De Nize o rigor,
De gosto morrer
Você me verá.
Porém se um favor
Alenta o viver,
Quem morre de amor
Mais vida terá. (vai-se)
 

Fagundes: Estes homens, tanto que são amantes, logo são músicos; e eu neste entendo terei boa melgueira; e mais eu que sou abelha mestra, que hei de chupar o mel da Manjerona, e do Alecrim.

Cena II

Câmara. Entram Dona Nize, Dona Clóris e Sevadilha.

Sevadilha: Ai, senhora, que ainda não creio que estamos em casa, pois vimos mais tarde, não nos acha o senhor velho!

Dona Clóris: Em boa nos metemos!

Dona Nize: Nunca tal nos sucedeu; que te parece, Dona Clóris, a porfia daqueles homens em nos querer conhecer?

Sevadilha: Sim, senhora, como se nós fossemos suas conhecidas.

Dona Clóris: E a facilidade com que se namoram logo estes homens, é o que mais me admira!

Sevadilha: Pois o maldito do Criado, que tanto se meteu comigo, como piolho por costura!

Dona Clóris: Que te veio dizendo?

Sevadilha: Mil despropósitos misturados com várias finezas esfarrapadas.

(Entra Fagundes com o manto apanhado no braço).

Fagundes: Ainda esses Alecrins, e Manjeronas, hão de dar nos narizes a muita gente.

Dona Nize: Que diz, Fagundes?

Fagundes: Digo que bem escusados eram estes sustos: ora, digam-me, senhoras, se seu tio viesse, e as não achasse em casa, que seria de mim?

Dona Clóris: Não falemos nisso, que ainda estou a tremer.

Fagundes: Apostemos, que isso foram conselhos desta senhora, que aqui está?

Sevadilha: Apelo eu, que testemunho! Olhe o diabo da mulher, parece, que me te tomado à sua conta!

Fagundes: Coitada, como se desconjura!

Sevadilha: Ainda por amor dela me hei de ir desta casa.

(Entra Dom Lancerote)

Dom Lancerote: Fagundes, depressa vá deitar mais um ovo nos espinafres, que aí vem meu sobrinho Dom Tibúrcio, já que sou tão desgraçado que por mais meia hora não chega depois de jantar.

Fagundes: Eu vou, meu senhor, mas cuido que o noivo a estas horas comerá novilho.

Dom Lancerote: Agora, minhas sobrinhas, é chegado o vosso esposo; não tenho que encomendar-vos o modo com que o haveis de tratar.

Dona Clóris: (à parte) Já vem tarde.

Dona Nize: (à parte) Veremos a cara a este noivo.

Sevadilha: (à parte) Pois dizem que é um galante lapuz.

(Entram Dom Tibúrcio com botas, vestido ridicularmente).

Dom Lancerote: Amado sobrinho, dá-me os braços. É possível que veja a um filho de meu irmão!

Dom Tibúrcio: Sim, senhor; mas primeiro mande vossa mercê ter cuidado naquelas choiriças que vem no alforje, não as dizime o arrieiro, que tem em cada não cinco aguirrapantes.

Dom Lancerote: Isso me parece bem, seres poupado; eu vou a isso. (vai-se).

Dona Clóris: Que te parece, Nize, a discrição do noivo?

Dona Nize: Muito bom princípio leva.

Sevadilha: (à parte) Parece que o seu gênio mais se casa com o alforje.

Dom Tibúrcio: (à parte) As primas não são más; porém a moça me toa mais.

(Entra Dom Lancerote)

Dom Lancerote: Sossegai, sobrinho, que já tudo está arrecadado.

Dom Tibúrcio: Agora sim; amado tio meu, por cujos humanos aquedutos circula em nacarados licores o sangue de meu progenitor, permiti, que os meus sequiosos lábios calculem esses pés, dedo por delo.

Dom Lancerote: Levantai-vos; sois discretos, meu sobrinho; pois vosso pai era um pedaço d’asno, Deus me perdoe.

Dom Tibúrcio: Não está mais na minha mão; em abrindo a boca me chovem os conceitos aos borbotões.

Dom Lancerote: Falai a vossas primas, e minhas sobrinhas, Dona Nize e Dona Clóris.

Dom Tibúrcio: Eu vou a isso.

Soneto
 
Primas, que na guitarra da constância
Tão iguais retinis no contraponto,
Que não há contraprima nesse ponto,
Nem nos porpontos noto dissonância.
Oh, falsas não sejais nesta jactância;
Pois quando atento os números vos conto,
Nessa beleza harmônica remonto
Ao plecto da Felina consonância:
Já que primas me sois, sede terceiras
De meu amor, por mais que vos agaste
Ouvir de um cavalete as frioleiras;
Se encordoais de ouvir-me, ó primas, baste
De dar à escaravelha em tais asneiras,
Que enfim isto de amor é um lindo traste.
 

Dom Lancerote: Também sois Poeta, meu sobrinho?

Dom Tibúrcio: Também temos nosso entusiasmo, senhor tio, isto cá é veia capilar e natural.

Dom Lancerote: Oh! Quanto me pesa que sejais Poeta, pois por força haveis de ser pobre.

Dom Tibúrcio: Agora, senhor, eu sou um rico Poeta. Pois, primas, que dizeis da minha eloqüência? Não me respondeis?

Dona Clóris: Os Anjos lhe respondam.

Dona Nize: Aí não há mais que dizer.

Dom Tibúrcio: Ah, senhor tio, essa rapariga é cá da obrigação da casa?

Dom Lancerote: É moça da almofada.

Dom Tibúrcio: Não é mal estreada; e que olhos que tem! Benza-te Deus!

Sevadilha: Quer Deus que trago um corninho por amor do quebranto.

Dom Lancerote: Eu cuido, Sobrinho, que mais vos agrada a criada, do que a noiva.

Dom Tibúrcio: Tudo o que é desta casa me agrada muito.

Dom Lancerote: Agora vamos ao intento: Sabereis, minhas Sobrinhas, que vosso primo Dom Tibúrcio, filho de meu irmão D, Tifônio e de dona Pantaleoa Redoldan, a qual também era irmã de vosso pai, e meu irmão D. Blianis, vem a eleger uma de vós outras para esposa, pela mercê que me faz; que a ser possível casar com ambas, o fizera sem cerimônia, que pra mais é o seu primor.

Dom Tibúrcio: Por certo que sim, e não só com ambas, mas até com a criada; pois, como digo, desejo meter no coração tudo o que dor desta casa.

Dom Lancerote: Eu o creio, meu sobrinho; nisso saís a vosso Pai.

Dona Clóris: (à parte) Não vi maior asno!

Dona Nize: (à parte) Nem eu maior simples!

(Diz dentro Semicúpio)

Semicúpio: Quem merca o Alecrim?

Dona Clóris: Ó Sevadilha, chama a esse homem do Alecrim; anda depressa.

Sevadilha: (à parte) Entrou no fadário!

Dom Lancerote: Sobrinho, não estranhais este excesso de minha sobrinha; porque haveis de saber, que há nesta terra dois ranchos. Um do Alecrim, outro da Manjerona, e fazem tais excessos por estas duas plantas, que se matarão umas às outras.

Dom Tibúrcio: E vossa mercê consente, que minha primas sigam essas parcialidades?

Dom Lancerote: Não vede que é moda, e como não custa dinheiro, bem se pode permitir?

Dom Tibúrcio: Bem sei que isso são verduras da mocidade, mas contudo não aprovo.

Dom Lancerote: E a razão?

Dom Tibúrcio: Não sei.

Dona Clóris: Vossa mercê como vem com os abusos do monte, por isso estranha os estilos da Corte.

Dona Nize: Calai-vos, mana, que ele há de ser o maior apaixonado que há de ter o alecrim e a Manjerona.

Dom Tibúrcio: Se eu enlouquecer, não duvido.

(Entram Semicúpio com um molho de Alecrim ao ombro).

Semicúpio: Quem quer o Alecrim?

Dona Clóris: Anda pra cá: tem mão, não o ponhas no chão.

Semicúpio: Pois aonde o hei de pôr?

Dona Clóris: Aqui no meu colo: ai, no chão o meu Alecrim? Isso não.

Semicúpio: A real e meio, por ser para vossa mercê?

Dona Clóris: Põe aí cinqüenta molhos.

Semicúpio: Pelo que vejo, esta é Dona Clóris. (à parte) Eis aí tem todos os molhos; reparta lá com a senhora, que suponho também quererá o seu raminho.

Dona Nize: Ai, tira-te para lá, homem, com esse mau cheiro.

Semicúpio: (à parte) Já sei, que esta é a da Manjerona de Dom Fuas.

Dom Tibúrcio: Bem haja, minha prima, que não é destas invenções.

Dom Lancerote: Porque é da Manjerona, por isso aborrece o Alecrim.

Dom Tibúrcio: Resta-me que vossa mercê também tenha algum rancho.

Dom Lancerote: Olhai vós, não deixo cá de mim para mim de ter minha parcialidade.

Semicúpio: Ora demos princípio à tramóia. (à parte). Ai, senhores, quem me acode?

Dom Lancerote: Que tens, homem?

Semicúpio: ai, ai, confissão.

(Cai Semicúpio estrebuchando, fingindo um acidente)

Dona Clóris: Coitado do homem! Que tens? Que te deu?

Dona Nize: Tão venenoso é o teu Alecrim, que mata a quem o traz?

Dom Lancerote: Olá, tragam água.

 

(Entram Fagundes e Sevadilha com uma quarta).

Sevadilha: Ai, senhores, que isto é acidente de gota coral!

Semicúpio: (à parte) O coral dos teus lábios que acidentes não fará?

Dom Lancerote: A unha de grão besta é boa para isto.

Dom Tibúrcio: Puxem-lhe pelos dedos, que também é bom remédio.

(Dom Lancerote, Dom Tibúrcio, Sevadilha e Fagundes pegam em Semicúpio, e este com o estrebuchamento fará cair a todos).

Dom Lancerote: Mostra cá o dedo.

Semicúpio: (à parte) Agradeço o anel.

Dom Tibúrcio: E a força que tem o selvagem!

Sevadilha: Eu não posso com ele.

Semicúpio: Lá vai o dedo polegar c’os diabos? Eu estou capaz de tornar a mim, antes que me deixem despedaçado.

Dom Lancerote: Borrifa-o, Fagundes.

Fagundes: Ora deixem-no comigo. (Borrifa-o).

Semicúpio: Pó diabo! E o que fedem os borrifos da velha! A maldita parece que tem apostema no bofe.

Dona Nize: Não se cansem, que ele não torna a si tão cedo.

Semicúpio: Essa é a verdade.

Fagundes: Mas, pelo sim pelo não, eu lhe vazo esta quarta; que quando Deus quer, água fria é mezinha.

Semicúpio: (à parte) Valha-te o diabo, que me deitaste água na fervura! Eu não tenho mais remédio, que aquietar-me, senão virá como remédio algum pau santo sobre mim.

Fagundes: Senhores, ele está mais sossegado depois da água, venham jantar que a mesa está posta.

Dom Lancerote: Vai buscar o meu capote, e cobre-o que está tremendo o miserável.

Semicúpio: (à parte) É maravilha, que um miserável cubra ouro.

Dom Tibúrcio: Aquilo são convulsões; mas bom é cobri-lo por amor do ar.

(Entra Fagundes com um capote)

Fagundes: Eis ai o capote; se ele o babar, babado ficará.

Semicúpio: (à parte) Anda, tola, que não me babo.

Dom Lancerote: Tu, Sevadilha, tem sentido neste homem, enquanto jantamos; vinde, Sobrinho. (vai-se).

Dom Tibúrcio: Vamos, que tenho uma fome horrenda. (vai-se)

Dona Nize: É galante figura o tal meu primo. (vai-se).

Dona Clóris: Fagundes, agasalha esse alecrim. (vai-se).

Fagundes: Tanto me importa; se fora Manjerona, ainda, ainda. (vai-se).

Sevadilha: Só isto me faltava, ficar eu guardando a este defunto!

Semicúpio: Vejamos quem é esta Sevadilha, que ficou por minha enfermeira. Ai que suponho que é a menina do malmequer, que lá traz um no cabelo. Vamo-no erguendo, por ver se nos quer bem. (vai-se erguendo).

Sevadilha: Deite-se, deite-se. Ai, que o homem tem frenesis! Acudam cá.

Semicúpio: Cala-te, Sevadilha, não perturbes esta primeira ocasião de meu amor.

Sevadilha: Deixe-se estar coberto.

Semicúpio: Bem sei, que o calafrio de meu amor é tão grande, que se pode cobrir diante d’El-Rei; mas confesso-te que já não posso aturar o gravame deste capote.

Sevadilha: Ai, que o homem está louco, e furioso!

Semicúpio: A fúria com que te ausentas me faz enlouquecer; não fujas, Sevadilha, que eu sou aquele sujeito do malmequer, e tão sujeito aos teus impérios, que sou um criado de vossa mercê.

Sevadilha: Eu te arrenego, maldito homem! Tu és o desta manhã?

Semicúpio: Cuidavas que não havia saber modo para ver-te?

Sevadilha: Queres que vá chamar a Dona Clóris, ou Dona Nize?

Semicúpio: Logo irás chamar a Dona Clóris, mas primeiro atende à chama de meu amor que se o fogo tem línguas, e as paredes tem ouvidos, bem pode a dura parede de teu rigor escutar a labareda em que me abraso: muita coisinha te poderia eu dizer; porém a ocasião não é para isso.

Sevadilha: Nem eu estou para essoutro.

Semicúpio: Eu o dissera, que o teu malmequer não é para menos.

Sevadilha: Nem a tua pessoa é para mais.

Semicúpio: Pois isso é deveras? Olha, que desconfio.

Sevadilha: Bem aviada estou eu! Bom amante tenho! Bonito eras tu para aturar vinte anos de desprezos, como há muitos que aturam, levando com as janelas nos narizes, dormindo pelas escadas, aturando calmas, sofrendo geadas, apurando-se em Romances, dando descantes, feitos estátuas de amor no templo de Vênus, e contudo estão muito contentes da sua vida; e assim para que me buscas?

Semicúpio: Para que me desenganes, se me queres, ou não.

Sevadilha: Pergunta-o ao malmequer, que ele t’o dirá.

Semicúpio: Se eu o tivera, aqui, fizera esta experiência.

Sevadilha: E onde está o que eu te dei?