Tasuta

Razão Para Matar

Tekst
Märgi loetuks
Šrift:Väiksem АаSuurem Aa

CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

Uma rápida ligação para Laura Hunt fez com que Avery conseguisse o telefone e endereço de Gentry Villasco, bem como os nomes, endereços e informações de contatos de todos na equipe dele, para caso Villasco não fosse quem ela estava procurando.

Das quatro pessoas que trabalhavam com Gentry, duas eram mulheres e dois homens. As mulheres moravam em Chelsea e Boston, respectivamente, ambas fora da área que Avery imaginava para a casa do assassino. O primeiro homem morava no sul de Boston, também fora da área imaginada. O último morava em Watertown: Edwin Pesh. Watertown era um dos lugares na mira. Ela circulou o nome dele e deu a partida no carro. Enquanto ela dirigia, Thompson colocou todos os nomes na central de dados para checar suas fichas. Uma das mulheres tinha dez multas a pagar. O homem do sul de Boston já havia sido preso por dirigir bêbado e desordem anos antes. Não havia nada sobre os outros dois.

Gentry Villasco morava em uma rua larga de Somerville. Sua casa era muito pequena, estreita, de dois andares e pintada de branco, com rodapé e teto marrom. Várias árvores faziam sombra na passagem do carro. Um Honda Civic branco estava estacionado ao lado da garagem fechada.

Avery e Thompson estavam em meio a uma discussão intensa.

- Eu só estou pedindo, tente fazer parecer que você se importa - Avery disse.

- Eu me importo - ele respondeu.

- Olhe em volta. Se eu estou falando com um suspeito, observe o local, sorria, finja que está anotando algo. Qualquer coisa. Só não fique olhando para o céu.

- Eu sou tira há muito mais tempo que você.

- Sério? Difícil de acreditar. Quando foi a última vez em que você foi promovido?

Thompson mordeu os lábios de raiva e tentou se reposicionar no pequeno espaço do banco do carona da BMW.

Quando eles saíram do carro e caminharam até a porta, Avery estava um pouco mais a frente, com o gigante Thompson atrás dela, como um guarda-costas pronto pra devolver qualquer ataque.

A campainha tocou.

Um homem amável e humilde apareceu para cumprimentá-los. Ele lembrava Avery de um monge, ou algum ser santificado. Moreno e careca na parte de cima da cabeça, com cabelos brancos cortados dos lados, ele tinha olhos pequenos e estrábicos. Tudo nele era pequeno. Seu queixo, suas mãos e ombros. Ele vestia calças marrons e um suéter preto sobre uma camiseta, mesmo fazendo pelo menos trinta graus lá fora.

Ele tem o tamanho certo, Avery pensou. Um pouco pequeno, mas se ele estava usando disfarce, também poderia estar usando um sapato com salto.

- Olá - Villasco disse com a voz mais doce e gentil possível. – Vocês gostariam de entrar?

Surpresa, Avery respondeu:

- Você sabe por que nós estamos aqui?

- Sim - ele assentiu com uma expressão triste. – Acho que sei.

Ele se virou e entrou de volta na casa.

- Senhor Villasco, onde você está indo? – Avery chamou. – Senhor Villasco, você pode por favor—Senhor, eu preciso ver...

Ela e Thompson se olharam.

- Chame reforço - ela disse e puxou sua arma.

Thompson também puxou a dele.

- Eu vou com você.

- Não mesmo - ela apontou para o gramado. – Você chama reforço e espera pelos outros. Vou me sair melhor sozinha.

A casa estava extremamente gelada, possivelmente por conta de um sistema central, já que Avery não notou nenhum ar condicionado. Ela fechou a porta atrás de si e caminhou para dentro.

No fundo da sala azul escura havia uma escadaria para o segundo andar. Um gato cinza de olhos verdes a olhava de um dos degraus. Ela virou à direita e entrou em uma pequena sala de estar. Havia muitas plantas na soleira da janela e penduradas no teto.

O coração de Black batia rápido.

Ela segurava a arma abaixada.

- Senhor Villasco? Cadê você?

- No meu escritório - ele respondeu.

Devagar, ela entrou por uma pequena porta no fundo da sala. A cada passo, ela olhava para assegurar que não estava sendo seguida. Avery só havia sido baleada uma vez na vida. Foram duas balas: uma na perna e uma no ombro.

Gentry Villasco estava sentado atrás de uma grande mesa, à direita. Um abajur verde estava em um dos lados da mesa, e havia muitos papeis no outro. As mãos dele estavam escondidas na cintura. Havia um pequeno sofá à esquerda de Avery, embaixo de uma janela.

- Senhor Villasco, por favor me mostre suas mãos.

- Você trabalha tanto - ele murmurou, - a vida toda.

- Senhor Villasco, eu preciso ver suas mãos.

- É tudo pela família, sabia? Eu fiz pela minha família.

- Por favor, suas mãos.

- Parece certo. Eu já vivi. Por que eu tenho que estar aqui? Minha mulher morreu de câncer há dois anos. Você sabia? Doença terrível!

Avery se aproximou da mesa.

- Suas mãos!

- Aquelas garotas - ele disse. – Eu sabia. Eu sabia. Uma tragédia horrível. Com certeza. Mas quem somos nós para julgar? Todo mundo merece existir.

Ele rapidamente puxou uma arma da cintura e a apontou em seu próprio queixo. A arma devia ter pelo menos cinquenta anos: prata com o braço branco, como algo que poderia ser comprado em um bazar ou loja de antiguidades.

Avery levantou a mão.

- Não faça isso!

Villasco atirou.

CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

- Não!

O tiro ecoou pela sala. A cabeça, destruída pela bala, e o sangue jorraram na parede atrás dele.

- Cacete! – Avery murmurou.

Thompson correu com sua arma apontada para todos os lados.

- Que porra é essa? Caralho!

Avery se virou para ele.

- Você chamou reforço?

- Estão a caminho.

Avery ficou ali, olhando para o homem morto a apenas alguns passos dela. Um homem que estava vivo até momentos antes. Seu coração se despedaçou em milhões de pedaços.

* * *

Luvas e sacolas foram tiradas do carro dela. Thompson deveria checar o perímetro. Avery ficou com o primeiro andar.

Na sala de estar, os tapetes eram cinzas e as paredes pintadas em branco. Além da sala e do escritório de Villasco, havia uma cozinha no lado oposto da escada. Os armários ali eram de madeira escura. O balcão era azul escuro e o piso de azulejos brancos.

Uma pequena porta levava ao terraço, um gramado com cerca de madeira. Todos os diferentes tipos de flores estavam florescendo ao lado da cerca, e havia um espaço em cinza escuro, para visitantes.

De volta à casa, Avery encontrou uma porta para o porão. Uma escadaria de madeira levava a um lugar totalmente normal: chão de cimento, prateleiras de madeira pelas paredes e locais para armazenamento. Ela abriu um saco de plástico e encontrou roupas para o inverno.

No primeiro andar, ela deu de cara com Thompson.

- Nada lá fora - ele disse. – A garagem está cheia de latas e ferramentas para jardinagem.

Eles foram juntos para o segundo andar.

Avery foi na frente, segurando a arma abaixada. O gato que ela havia visto antes subiu pelos degraus e desapareceu. Ela colocou dois dedos nos olhos e apontou para a esquerda. Thompson assentiu, virou à esquerda na escada e foi em direção à entrada. Avery entrou onde o gato havia ido. O pequeno banheiro de visitantes era pintado em um verde cinzento. Havia três caixas que serviam de cama para gatos no chão de madeira. Dois gatos estavam na cama, o cinza, gordo, que ela havia visto antes, e um filhote. O único closet guardava roupas femininas cheias de traças.

Ela passou em volta da escada, na direção onde Thompson havia ido. O quarto principal à sua direita tinha uma grande cama. Havia vários espelhos nas paredes. O tapete era branco. Ela abriu uma das portas espelhadas e encontrou roupas e sapatos.

- Ei, Black - ela escutou. – Por aqui!

O último cômodo parecia um closet com uma pequena escada que dava no sótão. O espaço era muito pequeno para Thompson. Ao invés de entrar, ele sentiu nos degraus e puxou algo de cima para que Avery investigasse.

- Tem outros dois assim aqui - ele disse.

Avery segurou uma estátua peluda.

Era um gato, um gato preto que havia sido empalhado e colocado em uma base de madeira. Não havia nada escrito na base.

- Tem um malhado aí também? – Ela perguntou.

- Como você sabe?

Thompson puxou outra estátua daquelas. Era menor, um gato alaranjado com linha pretas e olhos escuros. Ela devolveu.

- Colete alguns pelos desse - ela disse.

- Só desse?

- Sim. Os peritos encontraram pelos de gato malhado nos primeiros dois corpos.

Sirenes de polícia podiam ser ouvidas a distância. Enquanto o barulho se aproximava, Avery desceu às escadas e foi até a porta da frente.

Ela deveria estar em êxtase, ou aliviada.

Ao invés disso, Avery se sentia vazia, perturbada. As peças do quebra cabeça seguiam em sua mente, desconectadas: todas as rotas do carro do assassino iam para o norte e oeste, fora de Boston. Ele morava a noroeste de Boston, ela pensou. Isso bate. Mas isso não explicava a minivan azul indo ainda mais a oeste, fora de Cambridge. Uma outra casa, imaginou. Ele deve ter outra casa. É lá que ele deixa a minivan. Todo o resto fazia sentido. Ele plantava flores. Havia gatos morando na casa.

Se os pelos do gato malhado fossem os que Randy encontrou nos corpos, e se alguma daquelas plantas fosse psicodélicas, Avery sabia que o caso estaria encerrado.

Thompson apareceu atrás dela.

 

Ela olhou pelos ombros.

- Veja o que você consegue encontrar no escritório – ela disse. – Tente não mexer no corpo. Nós precisamos de uma segunda casa. E precisamos encontrar a minivan azul. Procure por contas de aluguel, endereços, formulários de seguro, qualquer coisa desse tipo.

- Agora mesmo.

As últimas palavras de Villasco seguiam em sua mente.

Fiz isso pela família.

Quem somos nós para julgar?

Todo mundo merece existir.

* * *

Avery viu policiais de Somerville e Boston entrarem na rua com as sirenes ligadas, estacionarem onde queriam e saírem dos veículos com as armas em punho.

Connelly estava entre eles.

Nem um pouco da raiva diária que ele demonstrava sobre Avery podia ser vista em seu olhar, tampouco desconfiança ou incerteza. Havia surpresa em seu rosto, uma sensação de descrença de que o que ele estava testemunhando poderia mesmo ser verdade: uma mulher, uma figura em desgraça pública, havia conseguido de novo, resolver mais um caso e fazer com que o resto dos policiais parecessem inúteis.

- O que nós temos? – Ele disse.

A polícia de Somerville começou a rodear e entrar na casa.

A cena inteira parecia um sonho. Avery mal conseguia ver Connelly ou os outros. Sua mente estava a quilômetros dali. O quebra-cabeças não estava completo, mas ela não tinha no que basear essa ideia, a não ser seu instinto e as últimas palavras de Villasco. Eu fiz pela família. Quem somos nós para julgar? Todo mundo merece existir.

Gentry poderia ter raptado todas aquelas mulheres? Ele parecia doce, quase infeliz, como se estivesse envolvido em algo que não podia controlar.

- Avery, você está bem? Fale comigo, - Connelly insistiu.

- Ele está lá dentro - ela disse. – Gentry Villasco. Morto. Suicídio. Disse algo sobre ‘fazer pela família’. Thompson está buscando papeis que possam nos levar até a minivan ou outra casa.

- Ele é nosso assassino? Avery?

Todo mundo merece existir.

- Tenho que fazer uma ligação - ela disse.

Avery caminhou até a rua e discou o número de Tim McGonagle. O telefone dele caiu na caixa postal. Ela deixou uma mensagem.

- Senhor McGonagle, aqui é Avery Black. Preciso saber se Gentry Villasco tem algum familiar trabalhando com ele no escritório, um primo, sobrinho, qualquer coisa. Isso é muito importante. Por favor me retorne assim que puder.

A lista que ela havia conseguido antes, de todas as pessoas que trabalhavam com Villasco, estava aberta. Um círculo rodeava o nome de Edwin Pesh.

Você não pode simplesmente sair da cena do crime, ela disse a si mesma. É a sua cena do crime. Connelly nunca vai te perdoar. O’Malley nunca vai te perdoar. Você tem que continuar. Tome depoimentos, complete as buscas na casa.

Paciência nunca fora a maior qualidade de Avery. Ainda que, por fora, seu comportamento calmo e sarcástico tivesse, durante muitos anos, dado a muitas pessoas uma falsa sensação de segurança, por dentro ela era de fato uma máquina, que se recusava a parar.

Se Villasco é o seu assassino, ele está morto agora, ela ponderou. Não há nada mais que você pode fazer. A casa está sendo vigiada e examinada.

Você não pode sair daqui! Gritou mentalmente.

Avery voltou para a casa. Thompson e Connelly não estavam lá. Alguns policiais de Somerville conversavam entre si. Crianças começaram a aparecer na rua, assim como os pais das casas vizinhas.

Vá, ela pensou e foi direto para o carro.

Ninguém a parou.

O endereço de Edwin Pesh em Watertown ficava a trinta minutos da casa de Villasco em Somerville. Uma viagem pequena, ela disse a si mesma. Se você não encontrar nada anormal, você volta. Diga que foi tomar um café ou estava passando mal.

Avery não se apressou. Parou em todos os sinais e não ultrapassou os limites de velocidade. Não preciso correr, pensou.

Na metade do caminho, ela lembrou de Rose, angustiada pelo almoço e com um humor péssimo durante todo o fim de semana.

Você tem que acertar as coisas com ela. Não importa o que aconteça, ela é sua filha, e não mais aquela coisinha que só chora e faz cocô e xixi. Ela é uma mulher agora, uma pessoa de verdade, e precisa de uma mãe.

Avery discou o número de Rose.

A mensagem eletrônica atendeu.

- Ok, eu sou uma idiota - Avery disse. – Rose, aqui é sua mãe. Deus, eu nem mereço ser chamada assim, mereço? Eu sei que não estive ao seu lado. Provavelmente eu nunca estive aí quando você precisou. Fui uma mãe terrível. É verdade, eu sei. Mas eu era jovem, estúpida, e ter um filho é algo difícil. Isso não é uma desculpa - ela imediatamente se corrigiu. – A culpa é toda minha. O Jack foi ótimo, de verdade, especialmente com você. Por favor, me dê outra chance Rose. Eu odeio o que está acontecendo com a gente. Mais uma chance, por favor. Prometo me redimir pelo passado. Você pode até não me aceitar mais como mãe, mas eu queria pelo menos tentar.

A caixa de mensagem a interrompeu.

- Merda - Avery sussurrou.

Estava prestes a ligar novamente quando entrou em Watertown. A área não era tão familiar para ela quanto Cambridge ou Boston. Em um semáforo, colocou o endereço de Edwin Pesh no GPS e viu uma luz vermelha na tela.

O lugar ficava a cinco minutos dali.

Dois.

A casa de Edwin Pesh estava em estado deplorável. Havia falhas na pintura cinza e no painel de madeira e apenas uma trava azul na única fechadura, e o teto estava cheio de galhos e folhas. Diferente das outras casas da quadra, árvores faziam sombra em toda a propriedade. O gramado não era cortado há meses, e nenhuma flor estava murcha ou morta.

Havia uma minivan estacionada no terreno.

Isso, ela pensou. É essa a casa.

Tudo voltou à sua mente: as conversas com Randall, as rotas do carro do Lederman e de Cambridge, o rapto de Cindy Jenkins, e o assassino, se curvando para a câmera e entrando no carro para sair dirigindo.

Ela manteve o carro em baixa velocidade e seguiu pela rua. Na esquina, ela virou e estacionou. Um pente extra estava guardado em seu bolso de trás. Uma lanterna portátil e potente estava presa a seu cinto. Ela deixou o walkie-talkie no banco do carro.

Não vá sozinha, ela pensou. Chame ajuda.

E se ele tiver outra vítima? Agora, você tem o elemento da surpresa. Não crie uma cena. Vá sozinha. Em silêncio. Rápido.

Você precisa de ajuda! Avery não conseguia se decidir.

Por um momento, ela pensou em ligar para Connelly, Thompson ou até Finley. Não, não eles. Você não confia em Connelly Thompson e Finley é imprevisível.

Uma voz entrou em sua mente, uma das oradoras na formatura da academia de polícia, uma mulher que dissera “Todo mundo precisa de ajuda. Você não está sozinha enquanto agente. Você é parte de um time. Confie neles.”

Durante anos, ela havia estado sozinha. Ninguém era seu amigo depois que seu mundo entrou em colapso. Em seus primeiros anos na polícia, quase todos haviam sido inimigos. Estranhamente, uma pessoa veio em sua memória: Ramirez. Desde o começo, ele havia sido sincero e bacana com ela, um verdadeiro parceiro, em todos os sentidos. Ele está machucado, fora do trabalho, pensou.

E discou o número dele.

Ramirez atendeu na primeira chamada.

- Por onde anda, Black? – Ele disse. – Ouvi que O’Malley te tirou do caso. Que merda aconteceu?

- Cadê você? – Ela disse.

- Em casa. Me deram alta do hospital. Não posso fazer nenhum esforço por um tempo, mas estou entediado pra cacete. Por favor, diga que você está por aqui.

- Eu encontrei o assassino - ela disse. - O nome dele é Edwin Pesh. Mora em Watertown. Estou aqui do lado de fora da casa dele.

- Uou!

- Quanto tempo você leva até aqui?

- Você chamou reforço?

- Eu chamei você.

- Tudo bem - ele sussurrou e pensou. – Tudo bem.

- Anote o endereço - ela disse e lhe passou os detalhes.

- Chego em vinte minutos, talvez antes se eu furar os sinais. Não entre sem mim, entendido?

Ela desligou.

Como se fosse só mais um andarilho em uma tarde amena de domingo, Avery bateu a porta do carro e caminhou pela rua.

Seu coração batia rápido.

Já na casa, ela se agachou e apressou o passo.

Ela colocou uma mão na traseira da minivan e olhou para o lado da casa. Não havia luzes acesas. O interior mal podia ser visto pelas janelas do primeiro e segundo andar. As janelas do porão eram pintadas de preto.

Seus dedos passaram pela placa do carro e na mesma hora ela sentiu uma substância pegajosa nas bordas. Minivan, pensou. “Documento falso, placa colada. Família. Villasco havia falado sobre isso. A casa escura estava a sua frente. Em uma das janelas, ela viu um gato cinza.

Causa provável.

Avery puxou sua arma.

CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Edwin Pesh estava tendo um final de semana atormentado. O Espírito Maior não o deixara sozinho. Ele não havia dormido nada no sábado à noite; a voz em sua mente continuava pedindo por mais e mais, e as muitas responsabilidades com as quais ele ainda teria que lidar sozinho começaram a atormentá-lo.

Destruído e cansado, ele sentou em um dos quartos do segundo andar, rodeado por gatos. Gatos de todas as formas e raças tentavam sentar em seu colo. Havia pelo menos dez somente naquele quarto. Alguns olhavam pela janela. Outros dormiam nos cantos ou na cama de solteiro, ou comiam nos muitos pratos disponíveis no chão de madeira.

Wanda Voles… o nome de Wanda Voles era repetidamente mencionado pelo Espírito Maior, tanto que Edwin sabia o que tinha que fazer. Mexa-se, pensou. Cuide dos gatos, passeie com os cachorros, e depois volte para a Bentley e pegue Wanda Voles.

Não! Sua mente gritava.

Sim! Ele respondia.

Um latido veio do andar de baixo, seguido de vários outros.

Instantaneamente alerta, Edwin levantou e olhou pelas janelas.

O terraço estava vazio.

Ao lado da casa, alguém estava agachado atrás da minivan.

A polícia, ele pensou.

O medo inicial saiu de seu pensamento e Edwin se preparou para se tornar o hospedeiro do Espírito Maior, um ser vivo habitado por um deus.

Com os olhos fechados, ele respirou fundo, levantou os braços e pressionou as mãos juntas acima de sua cabeça. Um simples agachamento, repetido três vezes, e ele voltou a abrir os olhos, iluminado por uma chama interior.

Em sua mente, ele imaginava o Espírito Maior tomando controle sobre ele; o ser celestial estava dentro de seu corpo, formando seus gestos e direcionando seu pensamentos e ações.

Eu lhe aceito com todo o coração, ele jurou.

Nenhum exercício tradicional fora requisitado para Edwin. Ao invés disso, ele geralmente fazia séries de exercícios providas pelo Espírito Maior para prepará-lo em caso de um ataque exterior.

Após anos praticando em casa, e agora com o Espírito Maior dentro de si, Edwin estava certo de que poderia enfrentar qualquer inimigo.

Eles ameaçam nossa causa, o Espírito Maior sussurrou na mente de Edwin. Nós não podemos deixá-los atrapalhar nossos planos. Vá, meu aprendiz. Vá… e cace!

* * *

Cachorros latiam de dentro da casa. Deveria haver dois ou três. Um era um pitbull grande que seguia aparecendo na janela do primeiro andar.

Merda, ela pensou. Se mexa.

Agachada, Avery correu para o terraço.

Os cachorros a seguiram e continuaram latindo.

A porta do porão era azul. Ela tentou abri-la. Trancada. Havia uma varanda e uma porta nos fundos. Ela se levantou e olhou para dentro. Na mesma hora, o rosto do pitbull apareceu novamente. O latido se tornou feroz. Havia outros dois cachorros, ambos pequenos: um pug e outro que parecia ser um poodle. Ela também viu muitos gatos.

A porta dos fundos estava trancada.

Ela martelou sua arma em uma das placas de vidro perto da fechadura.

O vidro se quebrou. O focinho do pitbull apareceu no buraco. Avery levantou-se e seguiu os movimentos dos três cachorros. Quando o caminho se abriu, ela alcançou e destravou a porta.

Ela voltou a se agachar. Com as costas protegidas pela porta de madeira, Avery colocou uma das mãos na maçaneta. A arma estava na outra mão. Ela prestou atenção nos barulhos: o pitbull latiu e pulou, ficou no chão por um momento, depois repetiu o processo.

 

Quando o pitbull estava prestes a pular, Avery abriu a porta.

O cão saiu correndo. Um leve toque com os pés e o pitbull caiu pelos degraus. Os dois outros cachorros apareceram e se apressaram para que pudessem alcançar Avery. Ela simplesmente segurou a maçaneta, entrou na casa e fechou a porta.

Os latidos continuaram, mas já não a incomodavam.

Avery havia entrado.

Um gato avançou em sua perna.

A cozinha estava ao lado dela. Em sua esquerda havia uma pequena área de jantar, e logo em frente uma sala com mais dois gatos. Algumas plantas descansavam na soleira da janela. Pareciam ser as espécies mais fáceis de se cultivar: cactos e jiboias.

Segurando a arma abaixada, Avery caminhou pela casa.

Alerta, ela pensou. Ele sabe que eu estou aqui.

- Edwin Pesh! – Gritou. – É a polícia. Deixe suas mãos visíveis e apareça. Há mais dois policiais lá fora - ela mentiu. – Reforços estão a caminho. Em poucos minutos a quadra inteira vai estar cheia de tiras. Edwin Pesh!

Em um dos cantos estava a escada para o segundo andar. Havia mais gatos nos degraus.

Avery seguiu pela escada de carpete, com a arma apontada para frente e para cima, onde ela poderia ver um corrimão. Os gatos continuavam no caminho. Ela gentilmente os colocou de lado.

O segundo andar estava vazio, mas com mais gatos. Não havia imagens na parede, nem fotos de nenhum tipo. Apenas dois quartos completamente cheio de gatos. Os closets estavam abertos. Ela olhou embaixo das camas e nos cantos. Edwin Pesh não estava em lugar nenhum.

A porta do porão ficava na cozinha.

Atrás da porta havia um telefone.

Avery o pegou e chamou a emergência.

- Serviço de emergência - uma mulher atendeu. – Como posso ajudar?

- Meu nome é Avery Black. Sou do Boston A1 - ela respondeu e passou o número de seu distintivo. – Estou na casa de um possível assassino em série e preciso de reforço.

- Obrigado pela ligação, Detetive Black. Você poderia…

Avery deixou o telefone pendurado.

O porão estava escuro. Uma luz acesa à sua direita iluminava outra porta ao fim dos degraus. Ela desceu. As paredes eram de madeira lisa.

No fim da escada, ela abriu a segunda porta.

Outro corredor era perpendicular à escada. Outras lâmpadas estavam penduradas no teto de madeira e iluminavam o espaço. Ela virou à esquerda e foi obrigada a virar mais uma vez para entrar em uma passagem muito maior.

Cada centímetro quadrado das paredes na passagem maior estava preenchido com imagens, centenas de imagens. Elas pareciam estar alinhadas horizontalmente. Se ela seguisse todas, até o fim, pela direita, haveria uma história. Havia um gato preto em uma moldura, sentado em uma janela. No próximo quadro, o gato parecia estar morto no chão. No seguinte, parcialmente aberto, mostrando seu interior. Cada uma das próximas imagens mostrava o gato em algum estágio de taxidermia.

Havia portas nos dois lados das paredes.

Que labirinto, ela pensou.

- Edwin Pesh! – Gritou. – É a polícia! Apareça! Coloque as mãos em um lugar visível e apareça na sala.

Ela tentou ouvir uma resposta.

Nada. Apenas cachorros latindo ao longe e o barulho de um gato alaranjado que a havia seguido até o porão.

A primeira porta à sua esquerda estava aberta. A escuridão tomava conta do cômodo. Avery ligou sua lanterna e a alinhou com a mira da arma. Ela entrou. Jarras de vidro lotavam a parede dos fundos, filas e filas de jarras com substâncias multicoloridas. Havia uma mesa médica prateada à sua esquerda, junto com equipamentos médicos e fluidos e ferramentas de embalsamento.

Cacete!

Um gato arranhou sua perna.

Assustada pelo contato, Avery apontou a arma e quase disparou.

- Porra! – Ela sussurrou.

Por um momento, fechou os olhos.

O assoalho começou a ranger atrás dela. No segundo que Avery levou para perceber e agir, ela sentiu uma picada na nuca e escutou alguém correr pela sala.

Merda!!

Black começou a se sentir cada vez mais tonta.

Não, não assim, ela lutou. Você não pode acabar assim.

Estimulada pelo pensamento que acabara de ter, antes de uma estranha mistura fazer efeito, Avery tentou dar um grito, quase imperceptível, e caiu pela sala. Ela bateu na parede antes de chegar ao chão. Algumas imagens caíram e quebraram no piso. Todas as portas que ela via estavam abertas. A lanterna foi de um lado a outro do cômodo.

Sem enxergar nada, ela atirou.

Imagens apareceram em sua mente borrada: uma sala que mais parecia uma cela, com grades e chão de palha; outra sala cheia de gatos e cachorros.

Quando alcançou a última porta, Avery caiu de joelhos.

A lanterna caiu de sua mão.

Ela puxou a maçaneta e empurrou a porta.

Edwin Pesh podia ser visto na outra extremidade da luz da lanterna.

Avery caiu de peito. Ela segurou a arma em sua frente e se preparou para atirar. De repente, leve como uma pena, Edwin começou a se mover de um lado a outra da sala, repetidas vezes, rápido como um gato, fazendo com que ela não conseguisse mirá-lo.

Confusa. A mente de Avery estava confusa e se apagando. A arma estava pesada, muito pesada para segurar. Ela a deixou cair no chão. Seu rosto tocou o chão gelado, mas ela continuou olhando para Edwin Pesh.

Edwin se agachou, com os olhos amarelos iluminados pela luz da lanterna.

Avery podia sentir sua consciência indo embora.

Edwin levantou com toda sua força e caminhou em direção a ela.

- Shhhh - ele sussurrou.

Não assim, Avery pensou.

Com muito esforço, e equilibrando o pulso no chão, Avery levantou a arma em direção à cintura de Edwin e atirou três vezes. Crack! Crack! Crack!

A arma caiu de sua mão.

Os pés de Edwin estavam a sua frente. Ela viu as pernas dele dobrarem. De repente, ele caiu para o lado.

Edwin estava caído ali, em colapso, a seu lado. O rosto dele estava a centímetros dela. Os dois estavam deitados lado a lado, ambos paralisados, ambos morrendo, com os olhos fixos um no outro.

Os olhos dele a miravam. No labirinto mental causado por qualquer que fosse a droga que envenenara seu corpo, os olhos de Pesh pareciam extremamente grandes, abertos e cheios de escuridão. Ela pode vê-lo sorrir.

- Mais - ele sussurrou. – Mais.

Depois disso, ele não voltou a se mover. Seus lábios continuavam sorrindo, seus olhos, totalmente abertos, olhando dentro da alma dela.

Em sua mente, Avery escutou. Mais. MAIS!

Uma voz masculina soou pelo cômodo.

- Avery?

Uma mão tocou seu pescoço, checando o batimento. Alguém praguejou e depois disse em uma voz quase irreconhecível:

- Fale comigo, Black. Você consegue me ouvir? Tente ficar viva. A ajuda está a caminho.

Mas ela se sentia cada vez mais fraca.

A voz soou novamente, dessa vez em pânico.

- Porra, Black! Não morra agora!