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Carlota Angela

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III

 
Tu me matas, meu pae! Quem tal pensara?
Eu beijo a mão que o golpe me prepara.
 
Marqueza de Alorna.

A traça do bacharel Joaquim Antonio de Sampayo era afastar Mendonça de Portugal, repentinamente.

Aconselhara elle a mentira, para evitar o escandalo de um rapto, ou a saida judiciaria de Carlota.

Ausentar Mendonça para alguma das colonias, ou para os estados barbarescos, sob pretexto de guerra á pirataria, que infestava então o Mediterraneo; e prolongar essa ausencia até dissuadir Carlota, cortando-lhe os meios de se escreverem, era a trapaça do habil jurisconsulto. Norberto, pasmado de tamanho ardil, fez tão estremado conceito do doutor que, no expandir-se da sua admiração, exclamou:

–Ó cunhado! vossê é homem de todos os diabos! Quem sabe, sabe!

–Mas, Norberto,—disse o doutor—sabe que sem dinheiro nada se faz?

–Saque o que quizer, cunhado!

–Eu tenho talvez de comprar muito caro o pretexto para a saída de Mendonça. Não sei se me verei a braços com os protectores e parentes d'elle na côrte, e as nossas armas são o dinheiro.

–Pois é dizer o que quer. O doutor leva ordem franca; não poupe dinheiro, e ponha-me o homem fóra da nação.

Assim armado com o invencivel dinheiro, o tio de Carlota Angela chegou a Lisboa, em fins de 1806, levando cartas de apresentação para o ministro da marinha, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, para D. Catharina Balsemão, e para o intendente geral da policia, Diogo Ignacio de Pina Manique.

A materia que então mais se discutia era a demencia do principe regente, causada por soffrimentos dos que tornam ridiculo um marido, ainda que o motivo seja mais para compaixão que riso. Fallava-se na morte violenta de José Anastacio, em Mafra, empeçonhado por ter sido o espia e delator da conspiração urdida contra o principe, em Arroios, n'uma casa da condessa de Alorna, que emigrara para Inglaterra, descoberta a conjuração. Os rumores surdos contra os pedreiros-livres indicavam os individuos suspeitos, mórmente depois que o escriptor publico Hippolyto da Costa fugira dos carceres da inquisição, que lhe foram abertos pelo braço poderoso da maçonaria. Hippolyto, auctor, depois, do Correio Braziliense, devia a liberdade á embriaguez dos guardas e á astucia d'elle; convinha, porém, ao governo simular-se assustado do poder da maçonaria para encruar contra os suspeitos a sanha da plebe. É, porém, certo que a maçonaria, em Portugal, entrara em 1797, com os emigrados francezes, e podera a muito custo implantar-se n'uma pequena sociedade ou loja denominada Fortaleza, quasi desconhecida e despercebida até 1806. Só depois que o ministro do reino entregou á inquisição um pedreiro-livre, e o impio fugiu do carcere do Rocio, levando nos canos das botas os «Regimentos da Inquisição» reformados pelo marquez de Pombal, dos quaes publicou, em ar de zombaria, curiosos extractos no jornal que, depois, redigiu em Londres—só depois desses nescios mêdos e estupidas perseguições do governo, sempre providenciaes para acordar os povos do lethargo, é que a sociedade maçonica em Portugal se radicou, floresceu, e deu fructos bons e maus. (Os de hoje apodrecem todos antes de madurar.)

A questão dos pedreiros-livres revirou os projectos do bacharel portuense. Nova ideia lhe acudiu, quando principiava a mortifical-o o receio de não poder supplantar um frade benedictino bem aparentado, que se dizia ser pae de Francisco Salter de Mendonça. Essa ideia era denunciar o tenente de marinha como encarregado de fundar no Porto uma loja maçonica, para o que tratava de intimidade com Jeronymo José Rodrigues, arcediago de Barroso, o primeiro liberal que teve a cidade eterna, antes de pregoar-se a liberdade em Portugal.

Francisco Salter de Mendonça conhecia o arcediago, era sua visita, sympathisava com as suas doutrinas politicas, e deixara-se eivar do espirito de vaga novidade que os principios de liberalismo balbuciavam ainda então confusamente. Não era, todavia, pedreiro-livre, porque venerava o frade que o adiantara na carreira das armas, e queria cumprir o juramento que fizera, nas mãos do monge, de jámais se associar á seita dos inimigos de Deus, com quanto conhecesse a inepcia dos pharisaicos amigos do altar.

O tio de Carlota apresentou-se a D. Catharina de Balsemão, ouviu-lhe dois sonetos, applaudiu-lh'os até chorar de terno enthusiasmo, e disse, depois, o fim a que ia. Pintou com negras côres o roer profundo do cancro da maçonaria no seio da sociedade; lastimou a inevitavel quéda dos fóros e prerogativas da classe nobre, se a média se incorporasse para desarreigar a arvore de seculos; disse que a maçonaria fizera Silla, e Robespierre, e Bonaparte; ajuntou outras muitas tolices em linguagem garrafal, até incendiar a combustivel D. Catharina, que logo alli lhe deu carta de mui especial recommendação para Manique.

O intendente ouviu com attenção e mêdo o bacharel. Soube que Francisco Salter de Mendonça, mancommunado com o arcediago de Barroso e outros, tratava de fundar uma loja maçonica no Porto, convencendo os timidos «com a sua eloquencia revolucionaria, e promettendo aos illusos a restauração dos direitos dos povos, victimados que fossem os reis e os grandes. Acrescentava o bacharel que Salter de Mendonça traduzia e espalhava os escriptos mais incendiarios dos revolucionarios francezes em 1791, e propalava que Portugal não podia ser feliz sem mandar um rei de companhia a Luiz XVI.

Manique estava tranzido! O orador, electrisado com o pasmo do ouvinte, entrara na sua hora feliz. As imagens mais ensanguentadas, as metaphoras mais patibulares, os tropos mais coriscantes acudiam-lhe com trovejante iracundia. Digna de melhor destino, a furia oratoria do lettrado do Porto conseguira mais que o desejado. Manique susteve-lhe a torrente, promettendo providencias promptas, e acabou por lhe pedir que ficasse na intendencia exercendo o logar do ajudante, assassinado em Mafra, José Anastacio.

Aqui é que o bacharel se achou superior a si mesmo, e deu um mental adeus ao safado tostão dos conselhos, que raros clientes lhe levavam, no Porto, ao seu obscuro escriptorio da rua de Santa Catharina.

Confiado na sua estrella, o nomeado ajudante do intendente geral da policia perguntou ao chefe o que tencionava s. exc.ª fazer a Francisco Salter. Manique respondeu que o faria conduzir preso a Lisboa, e do Limoeiro passaria para a inquisição.

–Se v. exc.ª me permitte uma reflexão…—disse o bacharel.

–Diga lá, que eu respeito muito o seu parecer.

–Com o devido respeito e humildade que se deve aos atilados juizos de v. exc.ª, peço licença para observar que convem obrar com mansidão e parcimonia, para impedir que uma seita perseguida faça proselytos. Eu vou, com o maior respeito, lembrar a v. exc.ª trinta e tantos casos da historia, dos quaes se vê quão imprudente e perigoso é empregar o cauterio á borbulha que muitas vezes resolve sem medicamento, e quasi sempre lavra quando a fazem sangrar. Começarei primeiro pela seita lutherana, a qual seita lutherana…

–Tem a bondade de não exemplificar…—atalhou o intendente, que detestava cordialmente as novidades tanto em politica como em historia—Que entende o senhor que se deve fazer? Desprezar? Deixar rebentar o volcão? Então de que me servem as tristes novas que me trouxe?!

–Desprezar, não, exc.mo snr.! Que faz o habil agricultor ao galho sêcco da sua arvore? Corta-o, separa-o das vergonteas vivazes, mas não o lança á estrada, para que o passageiro o leve como cousa sem dono, nem o desfaz com o machado como objecto sem utilidade. Leva-o para casa, lança-o na lareira, e aquece-se a elle. Façamos a applicação: Francisco Salter é o membro contaminado e damninho: cumpre decepal-o, para que não empeçonhe os outros; cumpre aproveital-o, a fim de que os inimigos da ordem se não aproveitem d'elle; cumpre empregal-o em serviço da patria; mas seja onde as suas tendencias revolucionarias não catechisem incautos. Mendonça é tenente; promova-se a capitão, e (permitta-me v. exc.ª o arrojo de dar o meu parecer com a franqueza propria de um portuguez, homem de bem) seja sem perda de tempo enviado como commandante do primeiro vaso que sair para o Brazil, dispondo de modo a sua expedição, que elle só volte á metrópole passados annos. Esta é a minha humilde opinião.

O bacharel concluiu, dobrando o pescoço até bater com a barba no peito. Manique redarguiu debilmente em opposição aos principios fabianos do bacharel. Sampayo replicou, pedindo sempre mil perdões da audacia, e alfim superou o chefe, fortalecendo-se com a difficuldade de provar a denuncia, visto que as testimunhas presenciaes das arengas revolucionarias de Mendonça não jurariam contra elle.

N'esse dia expediu-se ordem para recolher a Lisboa o tenente da corveta Audaz, Francisco Salter de Mendonça, no praso de oito dias. Aprestou-se um brigue, que devia, dois dias depois da chegada do official, fazer-se á vela para o Rio de Janeiro, capitaneado por Salter, promovido a capitão.

O ajudante do intendente geral da policia, escrevendo a seu cunhado Norberto de Meirelles, dizia:

«Tenho luctado com enormes difficuldades. Saquei seis mil cruzados, e venci as primeiras; as outras hão de vencer-se… etc.»

D'onde se infere que o agente de Norberto de Meirelles estimara em seis mil cruzados as duas arripiadas arengas á celebre poetiza e ao intendente geral da policia.

IV

 
         Salada
¡Ai! ¡no me dejes nunca!
         Aden
                                             ¿Yo dejarte?
¿Y para qué, y porque?! tu mi querida!
¿Ni como, aunc quisiera abandonarte
Juntos tu y yo lanzados en la vida?
 
Espronceda. (El diablo mundo.)

Fazia tristeza e saudade a formosa lua de uma noite de agosto n'aquelles olorosos jardins do Candal.

 

Era meia noite, e a viração do mar bafejava mansamente as copas dos arvoredos, que circuitavam a sombria casa de Norberto de Meirelles, o qual, a essa hora, resonava mais alto que todos os sêres vivos da natureza em roda.

De mansinho rodou a porta que abria para o jardim. Um vulto deslizou por entre os myrtos e japoneiras, até ganhar o mirante erguido n'um angulo do jardim.

–Esperaste muito?—disse ella a Francisco Salter, que lhe saira de sob a ramagem sombria dos chorões debruçados no muro—Tem paciencia, meu amigo. Minha mãe deitou-se ha meia hora; não sei que ar de inquieta alegria ella tinha hoje, que lhe não chegava o somno…

–Seria tão viva a alegria d'ella, como é viva a amargura que me não deixara dormir a mim?

–Amargura! Que tens, Francisco?

–Não te fallou por mim o meu bilhete d'esta tarde?

–O teu bilhete?… não… Dizias-me que era indispensavel fallares-me hoje… Não traduzi amargura n'isto… Cuidei que era uma saudade feliz e serena como a minha…

–Oh! não, minha querida, é uma saudade que me despedaça… é a saudade que…

–Como?! que linguagem é essa, Francisco! Não me tens agora aqui?! não sou eu tua para sempre?!

–Sei que serás, Carlota, sei… mas eu preciso que chores commigo para me ser menos amarga a minha dor… É forçoso que nos separemos por alguns dias… mezes… annos…

–Jesus! que nos separemos?! Onde vaes tu?

–Sou chamado immediatamente a Lisboa.

–A Lisboa!… para que és tu chamado a Lisboa, Francisco?

–Não sei… é uma ordem terminante do ministro.

–Oh meu Deus!… que lembrança terrivel!—exclamou com vehemencia Carlota—É impossivel! é impossivel!

–Impossivel o que?

–Nem te quero dizer a horrivel ideia que tive agora…

–Diz, Carlota… vejamos se se encontram duas ideias horriveis.

–Pois tambem suspeitas?… que te lembra, meu amigo?… diz, diz, se tambem julgas possivel…

–Tambem suspeito que a ida de teu tio a Lisboa…

–Sim, sim, é isso que me lembrou; mas não creias, porque meu tio é um bom homem. Ha muito que elle dizia que iria a Lisboa requerer um emprego. É ao que foi; mas… é verdade que…

–Não receies atormentar-me, Carlota; diz tudo que te faz desconfiar…

–É que hoje recebeu-se carta de meu tio, conheci a lettra do sobrescripto, quiz abril-a innocentemente, e meu pae tirou-me a carta da mão com grande sobresalto, dizendo que não era boa creação ler as cartas de outro. Eu disse-lhe que era uma curiosidade filha do desejo de saber como meu tio passava; e o pae voltou-me as costas, e eu bem vi que elle estava muito inquieto… mas…

–Duvidas ainda, Carlota, que teu tio foi agenciar a minha saida do Porto! Duvidas que não foi traiçoeiro o consentimento de teu pae, sem ao menos me perguntar que familia ou haveres são os meus?

–Isso é horrivel, meu amigo! não me convenças d'essa traição, que me matas! Elles não podem separar-nos, não! O que a morte póde fazer não o farão elles. Juro-t'o pela minha alma e por tudo quanto ha sagrado…

–Não jures, Carlota; eu sei o que és para mim; vale mais essa tua afflicção, que todos os juramentos. Por quem és, não chores assim, meu querido anjo. Aqui o terrivel mal que nos ameaça é a saudade, a incerteza não. Se a nossa ventura vier mais tarde do que esperavamos, resignemo-nos, vençamos a desgraça com a esperança. Teu pae porque será contra mim? porque eu sou pobre? pois bem, Carlota, irás pobre para a companhia de teu marido. O meu pão chega para ti, e bastará para mim a felicidade de t'o alcançar á custa de honrado trabalho. Não aceitaremos uma moeda de cobre dos cofres de teu pae… Bem basta que esse dinheiro tenha sido o nosso algoz para o não querermos comnosco. Pobre é que eu te quero, e, se teu pae me não diz tão depressa que eras minha, ouviria da minha bôca uma renuncia formal do teu grande dote… Coragem, minha amiga. Eu vou a Lisboa, conheço logo a causa da minha chamada, desfaço as intrigas, se ellas lá me esperam, empenho em nosso favor amigos e parentes, que tenho alguns valiosos ao pé dos ministros. Voltarei para convencer teu pae de que eu reputei verdadeira a sua palavra, e me envergonhei por elle, suppondo necessario chamar a lei em nossa ajuda. Entrarei em tua casa, e dir-te-hei: Vem ser minha esposa! E tu sairás, pois não, minha Carlota?

–Sim, sim, sairei; e por que não ha de ser já?!

–Já?!

–Sim, leva-me comtigo; não me deixes entregue a esta gente que me quer matar. Coméço a odial-os, e não poderei mais vel-os sem rancor. Leva-me, Francisco… Aceita-me assim pobre, e verás que te levo a maior riqueza d'este mundo, um coração onde eu tenho o segredo de fazer a nossa felicidade na pobreza. Não me respondes?

–Queria responder-te de joelhos, Carlota! Tu és um anjo, és um bem que eu não mereço a Deus, e receio desagradar-lhe se faço soffrer teus paes, que, de certo, te devem amar muito, e cuidam que te fazem bem, separando-te de mim. Eu se fosse pae, e pae de uma filha assim, dal-a-hia ao primeiro que m'a viesse pedir, sem me mostrar virtudes dignas d'ella? Não diria a esse homem perfidamente que sim, para depois praticar a villania de o afastar, matando-lhe o coração a punhaladas traiçoeiras… não mostraria ao amante de minha filha o céo, para depois o despenhar no inferno; mas… custar-me-hia muito a dizer-lhe: Ahi te dou o thesouro que tive no coração dezesete annos, que guardei para me dar alegria nas amarguras da velhice… leva-o, e deixa-me só com a minha saudade irremediavel!… Não, Carlota, é cêdo ainda para dares a teus paes esse desgosto. O teu amor ensina-me a ser nobre. Ha um amor que faz tyrannos e crueis; mas esse amor não é o meu. Sou generoso para todo o mundo, e para os teus mais que para outrem. Ninguem dirá que calculei com os cem mil cruzados de teu pae, quando eu tiver uma casa que te offereça, á hora do dia, na presença de quantos quizerem ver como um homem pobre serve um pobre jantar a sua mulher. Fica, minha querida Carlota, fica em tua casa. Nós exageramos o infortunio. É proprio do muito amor que nos temos; mas saibamos empregar as armas da razão para vencer uma desgraça imaginária. Vou a Lisboa, ouço o que me querem, volto com licença aqui, apresento-me a teu pae no dia dos teus annos, e no seguinte venho pedir-lhe o cumprimento da sua palavra. Á palavra não, encontro-te ao meu lado… e depois, venham todas as potencias do inferno contra nós.

–Francisco!—murmurou Carlota, despeitada—tu não me amas… porque não receias perder-me.

–Perdôo-te a injustiça, Carlota… Diz o que te não vem do coração, diz, minha amiga, que eu até das injurias, se de ti me vierem, tirarei provas de que me amas muito, e crês que te amo. Ha dois annos a amar-te assim! Ha dois annos a respeitar-te como irmã, acarinhando-te como esposa! Ha dois annos a viver de uma esperança, que só ás tuas palavras se afoutou a dizer que existia! O homem que assim pensou não podia hoje aceitar a tua fuga, sem tu me dizeres que é preciso roubar-te para te merecer. Oh! isso nunca tu m'o dirás, anjo do céo, porque então pouco apreço daria eu á alma que não tem a intrepidez de dizer «sou livre».

Carlota soluçava com a face apoiada na pilastra da varanda, e os olhos fitos no céo. O aperto de coração que a suffocava era mais que o exprimivel e imaginavel. Essas angustias soffrem-se; mas não deixam reminiscencias aos que as devoraram. São como as agonias do naufragado, que não preenchera ainda a conta dos seus dias, e quiz em vão contar aos que o salvaram a suprema afflicção do afogamento. Para as torturas de um adeus, entre duas almas animadas por um só espiraculo de vida, sei eu que ha na lingua humana uma palavra, uma só: INFERNO. Isso é peior que o morrer, porque na morte ha o esquecer graduado por cada estalar de fio que nos atava aos poucos bens d'este mundo: ha o extremo dom do arbitro das vidas—a resignação sem lucta, o luzir da estrella esperançosa que se ergue detraz do tumulo, o recordar-se dos anceios para Deus, quando as brilhantes illusões da terra se convertiam n'um como tenue vapor de incenso que nos prendia aos olhos lagrimosos até o vermos entrar no céo.

Mas o adeus de Carlota Angela a Francisco de Mendonça!… Essas derradeiras palavras, que já não eram mais que um longo gemido, convulso, suffocado, a cada impeto dos dois corações que rasgavam os peitos para se juntarem!........................................

Linda expirava a noite. Raiava a aurora, empallidecendo as estrellas. Uma aureola de frouxa luz cintava os horizontes. Na extrema orla do mar enrubesciam-se as aguas, e calava-se o rumorejar da vaga, como para ouvir o hymno matinal dos madrugadores alados.

Era um formoso amanhecer aquelle! Tão donoso, tão alegre, tão radiante tudo, só tu, Carlota, com os olhos na collina onde viste o derradeiro adeus do amante, e a mão no seio como a suster a vida que te foge, perguntas á tua razão se tamanha angustia não é um sonho! Acorda, martyr, que o teu dia de desgraça amanheceu, e será longo!

V

 
Sai se o vulto de meu corpo
                  Mas ei non.
Cá ós çocos vos fica morto
                  O coraçon.
 
Egas Moniz Coelho. (?)


… Si notre affection est traversée; si elle rencontre des obstacles, elle réagit, et cette réaction, impétueuse, convulsive, comme celle de tout ressort agitée et comprimée, nous porte á des mouvemens desordonnés, par conséquent accompagnés de souffrance. Notre affection, alors, devient passion. Et comme les obstacles qui l'irritent ne peuvent jamais être placés que par les intérêts d'autres personnes, elle nous anime d'une violente haine contre ces personnes si offensives, si importunes; elle change notre douceur en brusquerie, notre générosité en sentimens odieux.

Azais. (Précis du systême universel.)

Francisco Salter foi, n'aquelle mesmo dia, ao Candal offerecer a Norberto de Meirelles os seus serviços em Lisboa, onde era chamado pressurosamente.

O negociante não tinha pratica ou habilidade bastante para simular no rosto a surpreza ou o descontentamento da inesperada ausencia do genro apalavrado. Manifestou, em toda a expressiva estupidez com que a providencia dos grosseiros velhacos lhe dotara a physionomia, a alegria damnada que lhe não cabia no bojo do peito. Mendonça evidenciou as suas suspeitas, e arrependeu-se de não ter convertido em peçonha toda aquella alegria, aceitando a fuga de Carlota, horas antes.

–Desejava despedir-me das senhoras—disse Mendonça.

–Minha mulher—tartamudeou o negociante—foi á missa, e mais a menina, a uma capellinha á Bandeira, senão com todo o gosto…

Mendonça, quando entrara o portão da quinta, vira Carlota através de uma vidraça. Carlota, pé ante pé, viera, a occultas da mãe, avisinhar-se da sala, com o sentido de, caso o pae a não chamasse, entrar na sala onde Mendonça estava, como de passagem para outra, e fingir-se surprendida do encontro.

Foi o que ella fez ao tempo em que o negociante acabava de improvisar uma missa na capella da Bandeira.

–Ai!—exclamou ella—estavam aqui!…

–Acabava eu de pedir licença ao snr. Meirelles—disse Mendonça, sorrindo ironicamente—para offerecer a v. s.ª e a sua mãe o meu prestimo em Lisboa, para onde parto hoje ás quatro horas da tarde.

O arrozeiro, em pé, com os braços estendidos ao longo dos flancos abdominaes, abria e fechava as mãos, como um idiota: não sabia fazer outra gesticulação mais parva, quando a sua inepcia fosse tal que se lhe fechassem todas as evasivas de uma posição falsa.

–O snr. Norberto—proseguiu Francisco Salter, cedendo ao prazer de affrontar a mentira do villão diante da propria filha—disse-me que v. s.ª e sua mãe estavam na Bandeira ouvindo missa, e eu… retirava-me…

Carlota encarou o velho, e viu um tregeitar de olhos, que a obrigou a baixar os d'ella, por vergonha de si e de seu pae. Salter teve dó de ambos, e mudou de conversação.

–Não sei que motivos imprevistos me chamam a Lisboa; talvez as ameaças de uma nova invasão hespanhola, ou bem póde ser que se tema um definitivo assalto da França…

–Pois virão cá esses herejes de Napoleão?!—exclamou o negociante, já transfigurado pelo susto dos francezes, mal incomparavelmente maior, que destruiu o vexame em que o deixou a apparição da filha.

–Póde ser que venham, snr. Norberto, responder ao desafio que lhes mandamos pelos nossos soldados do Roussillon, quando a França liquidava as suas contas com a Hespanha.

 

Norberto não o entendeu; mas redarguiu:

–Se elles cá vem, é contar que não deixam nada; diz que mettem a saque tudo quanto topam, pois não mettem?

–É possivel; mas v. s.ª previna-se, escondendo o seu precioso aqui no Candal, por exemplo, onde de certo os francezes não virão. Ahi está o inconveniente de ser rico. Já o snr. Norberto está a soffrer com o mêdo de que o obriguem a uma contribuição…

–Se lhe parece.... o caso não é para menos: quem não tem nada, tanto se lhe dá como se lhe deu; mas quem lhe custou a ganhar o que tem, pouco ou muito, quer paz e socego.

–Não se aterre antes de tempo, snr. Norberto,—replicou Mendonça, sorrindo a Carlota—quando os francezes invadissem Portugal, eu ajudaria a v. s.ª a defender o que é seu, não só como esposo de sua filha, mas tambem como seu amigo.

–Isso lá…—regougou o mercieiro—muito obrigado, não me despeço do favor: mas o senhor é militar, e quando isso for não lhe ha de faltar por lá que fazer, na guerra do mar.

–Assim aconteceria—tornou Mendonça, enterrando lentamente o estillete observador—se eu não tencionasse pedir a minha baixa do serviço, para evitar que as revoluções perturbem a felicidade de minha mulher e a minha.

–Então que modo de vida queria o senhor ter, se casasse com a minha Carlota?

–Outro qualquer mais permanente, mais descansado; negociante, por exemplo.

–E que é dos fundos?

–Fundos?

–Sim, o casco do negocio?

–O casco!… a que chama v. s.ª casco?

–Casco é o cabedal para começar.

–Meu sogro dar-me-hia…

–Dinheiro?! meu amiguinho, está quasi todo empregado em torrões; e eu, emquanto vivo, não dou nada.

–Mais uma razão—replicou Mendonça, condoido do vexame de Carlota, e seguro, mais que seguro, do villão caracter do arrozeiro—mais uma razão para v. s.ª não receiar a invasão dos francezes… Agora tem logar—proseguiu elle, mudando de ironico para circumspecto e grave—uma observação que me esqueceu ha dias, quando tive a ventura de pedir-lhe a snr.ª D. Carlota. Eu, snr. Norberto, pedi sua filha, simplesmente sua filha; não pedi dinheiro, nem pedirei jámais. Eu conto com recursos proprios para que ella não sinta falta de commodidades que deixou em casa de seus paes. O meu patrimonio é a patente que tenho e as bem fundadas esperanças de me augmentar n'esta carreira. Não me julgue v. s.ª atido ao dote de sua filha, nem cuide que me affligi com a ameaça de nada lhe dar emquanto vivo. Póde o snr. Norberto gastar, ou augmentar o que tem, que sua filha não esperará a morte do pae para poder comprar mais um vestido. Faça, portanto, justiça ás minhas intenções, e conceda-me que eu dê liberdade a algumas ideias que me estão inquietando e magoando.

V. s.ª não procedeu lealmente commigo, quando me deu, sem reparo, sua filha. Rogo á snr.ª D. Carlota me consinta este desabafo, porque a clareza, n'este momento, é necessaria a todos nós, e o amor e o decoro costumam, nas almas nobres, soffrer juntos, quando um d'elles é offendido… e agora são ambos.

–Eu não entendo o que v. s.ª ahi está a dizer—atalhou Norberto conscienciosamente.

–O snr. Mendonça…—acudiu Carlota; mas o pejo embargou-lhe a voz.

–Eu queria dizer ao snr. Norberto de Meirelles—tornou Mendonça—que fez v. s.ª mal em dar uma palavra de que se quer desquitar por meios menos honestos, e á custa talvez da minha liberdade. A ida de seu cunhado á capital, e a ordem de eu ir, sem perda de tempo, a Lisboa, escondem uma trama que eu espero desenredar em oito dias. Se o snr. Norberto e seu cunhado julgaram que uma intriga basta para aniquilar um amor de dois annos, uma união de toda a vida já abençoada por Deus, que vê a pureza das minhas ambições, enganaram-se! Retardar não é destruir. Eu confio tanto no generoso coração da snr.ª D. Carlota como em mim proprio; e só o muito amor me podia dar a mim esta franqueza com que fallo, e a ella a indulgencia com que me ouve accusar o proceder injusto de seu pae.

–O senhor está a insultar-me!—exclamou Norberto—e demais a mais em minha casa!

–Eu não insulto, senhor, queixo-me de ter sido ultrajado, e reconheço, n'esse desabrimento, que é certissima a perfidia com que fui enganado. Retiro-me, para que v. s.ª não me offenda terceira vez, dizendo-me que o insulto.

–Pois o melhor é isso—redarguiu Norberto.—O senhor pensava que me levava á valentona? Eu tambem tenho amigos, e sei o que hei de fazer!…

–Que ha de fazer o pae?—disse Carlota com altivez—O pae não póde fazer nada.

–Que dizes tu, Carlota?!—trovejou Norberto.

–Digo que não ha forças humanas que me privem de casar com este senhor. O pae governa no seu dinheiro, e nós nada lhe pedimos. O snr. Mendonça, se quizesse ser menos generoso com meu pae, estaria já casado commigo, porque eu o auctorisei a tirar-me de casa por justiça.

Norberto, como todas as indoles abjectas, caira no miseravel da sua atonia, sob a fulminante coragem de Carlota. Francisco Salter aproximou-se d'ella, tomou-lhe a mão, como se estivessem sós, e murmurou:

–A virtude, que Carlota chamou generosidade, continúa. Vou a Lisboa, porque sou militar, e transgrido a honra e dever não me apresentando.

Mendonça despediu-se de Carlota Angela, que chorava, e de Norberto de Meirelles, que limpava com o canhão da japona de cotim o suor da brunida testa.

D. Rosalia faltara a este conflicto, porque, atarefada na cozinha com a liquidação dos legumes vendidos na manhã d'aquelle dia, não dera fé de entrar Mendonça.

Carlota Angela, apenas sósinha com seu pae, voltou-lhes as costas, e saiu da sala.

Norberto ficara de tal modo aturdido com o desembaraço da filha, que parecia temel-a. Procurou a mulher, e contou-lhe, como elle podia, o succedido. D. Rosalia benzeu-se tres vezes, e tres vezes levou os braços em arco á altura da cabeça, acção favorita da grossa matrona, quando queria exprimir o supremo espanto.

Animando-se mutuamente, entraram no quarto de Carlota, e gritaram ambos ao mesmo tempo:

–Filha ingrata! nós te amaldiçoamos!

–Para sempre!—disse a solo o snr. Norberto.

–Para sempre!—repetiu D. Rosalia.

–Amaldiçoada!—bradaram em dueto.

–E por que me amaldiçoam?—disse Carlota—que crimes são os meus?

–Ainda perguntas?!—respondeu Norberto, opilando olhos, bochechas, nariz, e tudo o mais susceptivel de opilação na sua elastica physionomia—Pois não tiveste o atrevimento de me dizer ainda agora que eu não podia fazer nada?

–Disse, sim, senhor; disse, porque ha só um meio de me prohibir o casamento com a pessoa a quem o pae me deu: é matarem-me.

–Isso diz-se a teu pae, rapariga?–bradou a mãe.

–A verdade diz-se aos paes; mentir-lhes é que é crime. Para que hei de eu dizer que faço a vontade a meu pae, se não sou capaz de cumprir a minha palavra? Logo que Mendonça voltar de Lisboa, se elle me não procurar, procuro-o eu. Se elle me quizesse com a mira no dote, faria todas as diligencias por que me dotassem, ou morreria de paixão por me não dotarem; felizmente, o homem que Deus me destina é a mim que me ama, e não ao dinheiro de meus paes; para ser sua mulher basta-me o coração; pois bem, fique o dinheiro a meu pae, e seja o coração para o homem que não exige de mim outros thesouros.

Norberto olhava Rosalia, Rosalia olhava Norberto, grotescamente pasmados. Estranha era para elles a linguagem, o enthusiasmo, a altiveza, as attitudes de Carlota. Queriam contradictal-a com os argumentos triviaes de um casamento rico; mas a migalha de bom senso que tinham ambos, bastava a convencel-os da inutilidade de similhantes razões. Queriam leval-a pelo terror; mas com tanto mimo a tinham deixado emancipar-se desde creança, que não sabiam agora com que gestos, com que palavras, exprimir o agastamento, a admoestação irada, a soberania paternal.

O coração de Rosalia era bom, e seria ella a protectora do casamento, se a não tolhessem os prejuizos de classe. A mulher de Norberto cuidava, em boa consciencia, que sua filha não podia ser feliz, casando sem o precedente de escripturas de doação, sem a concorrencia de doadores bem ricos e bem estupidos por parte do noivo. Por mais que ella quizesse descobrir no official de marinha os encantos que seduziram sua filha, a tapada creatura o que encontrava era motivo para pasmar cada vez mais.

–Um engarilho de bigode como um chibo…—dizia ella a Carlota, depois que Norberto se retirara com mêdo de ceder á indignação, que o enfurecia—um pechibeque que não tem terra, nem leira, nem ramo de figueira, ó rapariga, que feitiço te fez aquelle patavina? Ha por ahi tanto rapaz bem azado, com negocio estabelecido, e creditos… se querias casar, por que o não tinhas dito, que já se tinha escolhido a flor dos rapazes do Porto? Está ahi o filho do Antonio José da Silva, e do Joaquim José Guimarães, que por entre os dentes deram a entender a teu pae que te queriam, e ainda estão solteiros, não tens mais que fallar… Ó mulher! isso foi enguirimanço do demonio! Por que não casas tu com um dos outros?

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