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Carlota Angela

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VII

Fiel é Deus, que não soffre termos mais peso do que aquelle com que podem os nossos, hombros. Delle se devem esperar os verdadeiros allivios, e nesta fé se acabam os quebrantos.

Fr. Antonio das Chagas. (Cartas.)

Carlota Angela proferira o juramento, ajoelhada diante de uma cruz; foram, porém, d'ahi levantal-a os braços de D. Rufina, que, acudindo ao soluçar dos gemidos, a encontrara esvaida.

Depois que a lançou á cama, a religiosa leu a carta, e disse a uma noviça que vinha entrando:

–Quando assim se amam duas creaturas, a vontade de Deus está n'esse amor: tudo que os homens fizerem contra elle é um sacrilegio, é um attentado contra os designios do Altissimo.

A noviça, depositária dos segredos de Carlota, leu tambem a carta, e foi sentar-se á cabeceira do leito, encostando ao seio a face desmaiada da sua amiga.

Os sentidos de Carlota restauraram-se espavoridos. Tremia toda, e fitava com spasmo e assombro o rosto lagrimoso de Dorothea.

–Chora, chora, Carlotinha—disse a noviça, dando-lhe o exemplo, e acariciando-a com beijos.

–Se eu podesse chorar…—balbuciou Carlota, encolhendo-se em tremuras de frio entre os braços de Dorothea.

–E, se elle morresse, não soffrerias mais, menina?!

Carlota fitou-a espantada, e disse com voz rouca pela suffocação:

–Se elle morresse… quem?… pois sabes…

–Sei; li a carta, e tua tia tambem a leu, e chorou. Eu não acho razão bastante para succumbires assim.

–Eu não succumbo… se succumbisse, estava morta… Ainda vivo; mas, Dorothea, eu creio que morro, e morro brevemente…

–Arrepende-te, alma de pouca fé!—disse a tia, mostrando a sua nobre fronte de cabellos brancos, coberta com o magestoso véo negro, por entre os cortinados do leito—Que fallas ahi em morrer, creança! Vida, muita vida, e muita confiança em Deus, e esperança em dias melhores, é o que te ensina esta carta, mulher sem animo. Vamos lel-a de novo: sou eu que a leio, e veremos se o coração de uma velha sabe melhor que a moça entender o coração de um mancebo.

D. Rufina, sorrindo com fagueira graça, abriu a carta, sentou-se na cama de Carlota, e acompanhou a leitura com suas glosas, não deixando sem ellas a menor phrase esperançosa.

A respiração profunda de Carlota, o convulsivo soluçar, o gemido indomavel que lhe fugia em agudissimos ais, interromperam, muitas vezes, a leitora. Era então que as consoladoras annotações de Rufina, e o assentimento da noviça, redobravam de persuasiva eloquencia, capaz de maravilhar as freiras, que suppozeram sempre estranha á linguagem das paixões a austera religiosa.

Terminada a leitura, soror Rufina, descontente com o insensivel resultado das suas consolações, appellou para o influxo sobrehumano da religião.

–Venham cá ambas,—disse ella—vamos todas tres pedir de joelhos ao Senhor, que leve e traga a porto de salvamento o nosso Francisco.

–Sim, sim!—exclamou Carlota Angela, saltando do leito, e seguindo-a com passos vacillantes.

Ajoelharam, e oraram afervoradamente. Seria difficil estremar entre as tres qual era d'ellas a que pedia a Deus o salvamento do amante: tal era a devoção de todas.

–Agora respiremos!—disse, terminada a reza, a freira—Has de vel-o, has de ser sua esposa, minha Carlota.

Nas grandes agonias, qualquer esperança exalta a crença em agouros, em presagios, em superstições até. Carlota, pensando que sua tia recebera a suprema graça da revelação, exclamou com alegria e transporte:

–Que foi, minha tia? Disse-lh'o Deus?

–Deus, filha, não falla a creaturas tão peccadoras e indignas como tua tia; mas consente que se possa contar com os effeitos da sua divina misericordia. Tudo o que se pede ao Senhor, com humildade e justiça, consegue-se. E, assim, te repito, Carlota, que Francisco Salter voltará, será teu marido, e tereis larga remuneração dos soffrimentos que offerecerdes a Deus em desconto dos contentamentos que sobejam aos felizes d'este mundo.

Estas palavras soaram tocantes e solemnes como o prophetisar da que a communidade reverenciava assistida de graça superior. Carlota sentia alargar-se a golilha de ferro que lhe entalava na garganta o respiro e a falla. As lagrimas, represadas no coração, rebentaram em torrentes: e o sangue, que se retivera suspenso, circulava de novo, rosando-lhe a lividez cadaverica do rosto.

Estava desopprimida; e fora a esposa de Jesus misericordioso que lhe insuflara alentos. Fora uma freira das que desafiavam o riso dos incredulos com suas devoções, e austeras impertinencias; fora uma mulher, das que morreram para o mundo ou o mundo matara, das que se acolheram a Deus ou Deus tirara do seu inferno em vida, fora essa a que tirara da cruz, onde expirara o amantissimo redemptor dos homens, remedio de vida, e esperança para a chaga de um coração de dezesete annos, ferido de desespêro e morte.

Assim, pois, na cella da rigida religiosa se desafogavam e consolavam affectos dos que, fóra d'alli, no mundo tolerante e vicioso, são julgados rebellião contra a vontade paternal, escandalo para filhas submissas, e peccadora cegueira do coração humano!

Quam inventiva não é a caridade! quam largas bracejam as vergonteas d'esse tronco evangelico, regado pelas lagrimas d'aquella a quem Jesus perdoara por ter amado muito!

A desvelada noviça não deixava sósinha Carlota, um instante. Ella e Rufina revezavam-se ao pé da pensativa menina, que parecia querer fugir-lhes, já não para se carpir, mas para orar; que, na oração sentia Carlota outro espirito em si, o murmurio de outros labios supplicantes, a fervorosa crença de Mendonça inflammar-lhe a fé.

A serenidade viera com a confiança no futuro: do sobresalto, da afflicção, pouco e pouco socegada, ficara a melancolia suave da paciencia, essa que só Deus concede aos que á sua misericordia recorreram na adversidade, e em sua vontade se louvaram.

D. Rosalia visitava a filha miudas vezes, o pae raras; e de breve demora, porque o silencio de Carlota, que elle julgava desaffeição, desanimava-o de a ver, e incommodava-o a sós com ella.

Dizia a mãe, nos primeiros tempos, que não havia tirar-lhe o sim para o casamento; mas que ainda era cêdo para descorçoar. Dois mezes depois, mostrou-se mais docil a pertinacia, e já elle dizia que, na volta de Mendonça, tudo se faria pelo melhor: é que o ajudante do intendente geral da policia, por occasião de lhe pedir mais seis mil cruzados, explicara o saque, dizendo que esta quantia se fazia mister para crear novos embaraços ao regresso de Salter, logo que a commissão, a que fora, estivesse cumprida.

Decorreram quatro mezes. Os navios vindos do Rio, já com a nova da chegada do Amazonas, e cartas dos tripulantes, receberam a bordo uma visita da policia, e entregaram a correspondencia. Entre as cartas havia uma de grande volume, subscriptada a D. Carlota Angela de Meirelles, residente no mosteiro de S. Bento da Avè Maria, no Porto.

O bacharel Sampayo deslacrou esta carta, leu oito folhas de papel, e lançou-as ao brazeiro, aquecendo e esfregando as mãos á lavareda. O malvado queimara alli o traslado das mais tristes imagens, o desafogo da mais dorida saudade que ainda apertou coração de homem! O impio não se amiserara de tantos signaes de lagrimas em que a tinta se apagara! Que raptos de alegria, e suspiradas consolações aquella carta, que voejava no ar em faúlas, levaria a Carlota! Que esperanças tão bellas o perverso queimou com a chamma d'aquelle papel!

Entretanto, Carlota, que contara os dias, e calculara, mil vezes, com Dorothea, o primeiro em que devia receber novas de Mendonça, mandava todos os dias de estafeta uma servente para a porta do correio, esperando a lista, ou interrogando o carteiro. Sempre, em vão! A antiga dor renascia em cada correio; redobrava a afflicção a cada esperança frustrada.

Conspiravam em consolal-a Rufina e a noviça, esta com razões mais carinhosas que persuasivas, aquella confirmando o vaticinio da felicidade promettida. Os allivios da primeira eram sempre proficuos e desejados; os da segunda faziam-a proromper em gemidos, que tambem eram desabafo.

Decorreram tres mezes de afflictivas esperanças, sempre enganadoras para todas. Nem uma carta, nem duas linhas escriptas no leito da morte!

Carlota Angela tremia de pronunciar uma desconfiança acerba que lhe trazia o coração em agonias. Soror Rufina rogava incessantemente á bondade divina que afastasse da sobrinha o temor que a sobresaltava a ella. Dorothea segredava á freira os seus receios, e esta pedia-lhe muito encarecidamente que não proferisse uma palavra sobre tal desconfiança.

Acontecia, porém, que todas suspeitavam o mesmo; a morte de Francisco Salter.

Carlota receiava que as suas amigas julgassem possivel ter elle morrido; assentimento tal seria para ella uma especie de evidencia, porque tão pouco basta para certificar suspeitas entranhadas n'um espirito que a desgraça fez supersticioso. As outras calavam o presentimento funesto, cuidando que a matariam.

N'este conflicto, correu no Porto a noticia da morte de Francisco Salter de Mendonça. Ninguem sabia dizer por onde a noticia viera; os amigos, porém, do honesto e talentoso official de marinha contavam-se que elle morrera no Rio de Janeiro, quando a gloria o vinha buscar por uma carreira esperançosa de grandes destinos.

A noticia chegou ao convento. Souberam-a todas, excepto Carlota Angela.

Rufina caíu doente, e Dorothea denunciava-se á infeliz menina, evitando-a, quando mais anciosa de compaixão e carinho se sentia impellida para ella.

As freiras olhavam a pobresinha com mais piedade que nunca; animavam-a como se quizessem ter parte em seu coração para a salvarem pela amizade, quando houvessem de revelar-lhe a mortal noticia. Carlota estranhava os melancolicos olhares, os beijos e caricias de todas, a condolencia terna com que, as mais afastadas da sua convivencia, a vinham espairecer ao seu quarto.

 

Norberto de Meirelles procurara sua filha, n'esses dias em que a noticia vogava. Soror Rufina estava de cama; recebera primeiro o recado do pae de Carlota. Esta preparava-se para ir á grade, quando a anciada tia lhe disse:

–Vou-te aconselhar a desobediencia, minha sobrinha, e Deus me perdôe por sua immensa bondade. Não vás á grade. Eu tomo sobre mim a responsabilidade de mais um peccado.

E, voltando-se para a criada, mandou dizer a Norberto que sua filha não podia fallar-lhe; mas esperasse alguns minutos, que alguem iria em logar d'ella.

–E por que é isso, minha tia?!—perguntou a sobrinha admirada.

–Porque sim, minha filha. Receio que elle te venha fallar…—continuou balbuciante—em cousas desagradaveis.

E, sentando-se no leito, a febricitante religiosa, ajudada de Carlota, vestiu-se, e foi á grade encostada a Dorothea.

–Então a pequena que tem?—perguntou Norberto.

–Está doente.

–Já lhe chegou a noticia! Que tenha paciencia. Deus tudo faz pelo melhor…

–Tambem digo o mesmo—atalhou Rufina.—E o mano agora que lhe quer? Consolal-a?

–Quero dizer-lhe que é preciso mudar de rumo, e tirar o sentido do homem que morreu.

–Isso ha de dizer-se-lhe por outras palavras menos terminantes.

–Isso lá é bom p'rá mana; eu cá digo as cousas como sei.

–Pois sim; mas consinta que eu a disponha para o golpe, e depois tudo se lhe dirá com prudencia e caridade.

–Pois ella ainda não sabe que morreu o homem?!

–Não, mano; se a noticia fosse alegre, tinha-se-lhe dito; mas eu não acho necessario dar-se-lhe uma nova que a póde matar.

–Qual matar, nem meio matar!—replicou o brutal arrozeiro, tregeitando com os beiços carnudos um gesto de incredulidade—Pobre de quem morre, diz o dictado. Ainda é de bom tempo, cunhada. Isto de raparigas namoradas, são como as viuvas: choramigam oito dias, e ficam frescas como se não fosse nada com ellas.

–Está enganado. Pergunte a minha irmã, que tem coração de esposa e de mãe, se isso assim é. Estou bem convencida que ella fará um diverso juizo do soffrimento de Carlota. Emfim, mano, eu ergui-me da cama para vir aqui, e estou a tremer de frio e febre. Conceda que eu me retire, pedindo-lhe pelo divino amor de Deus que deixe ao meu cuidado revelar a noticia á desgraçada Carlota. O mais difficultoso é curar depois a ferida, se o golpe não for de morte: confio em Maria Santissima que não será.

–Pois então adeus—tornou Norberto, puxando para as orelhas a gola do capote de quartos.—Arranje cá isso do melhor modo, e diga-lhe que venha cá p'ra fóra, a ver se ella se tenta com algum de tres noivos, o qual melhor, que eu trago na mira. Se eu a quizesse casar com um morgado da provincia, fidalgo, e senhor de casa com capella, já me fallaram para isso; mas, a fallar a verdade, o que eu quero é homem de negocio, ou filho de negociante com dote á vista; não faço bem, cunhada?

–O mano lá sabe o que lhe convem; mas nunca faça calculos sem contar com a vontade de Carlota. Parece-me que lhe posso asseverar que ella não sairá mais d'este convento. Perdeu um esposo; mas o esposo verdadeiro, o esposo das almas angustiadas está cá dentro; é Jesus Christo, o unico bem que ha de entrar no coração espedaçado de Carlota, e cural-o com a esperança de encontrar na bemaventurança o primeiro que perdeu.

–Pois Carlota ha de ser freira?!—interrompeu com impetuosa grita Norberto, derrubando a gola do capote, que era de mais na cara afogueada pela ingrata nova.

–O mano faz um espanto—redarguiu mansamente Rufina—como se eu lhe dissesse que sua filha havia de praticar um crime!…

–É que eu não quero!…—redarguiu elle, batendo um troante murro na banqueta.

–O mano não quer; mas a sua vontade agora vae encontrar outra vontade sem comparação mais poderosa: é a vontade omnipotente do Senhor, que move os mundos e os corações. Não me disse, ha pouco, que Deus tudo fazia pelo melhor? Pois bem, póde ser que a divina vontade quizesse para as suas eternas nupcias a que havia de ser esposa de outro, que Deus chamou a si.

–Veremos como isso ha de ser. Em todo o caso eu quero minha filha cá para fóra. Não a creei para freira, tenho muito que lhe deixar.

–Tudo o que o mano tem póde varrel-o um ligeiro sôpro da desgraça. Modere a sua soberba, que não o castigue Deus, que abate os soberbos, e exalta os humildes. E, demais, a casa do Senhor não se abre só para as meninas pobres. Eu deixei um grande patrimonio quando aqui entrei, e vim achar uma riqueza incomparavelmente maior do que a que deixei: foi o esquecimento do mundo, e o amor sempre crescente de outro melhor. Ora, bem póde ser que sua filha se deixe namorar dos anjos, e rompa com os amores tranzitorios d'esta vida. Em summa, o que eu lhe digo, meu cunhado, é que minha sobrinha só póde ser salva pela religião; e eu, se Deus me achar digna, hei de estender-lhe a mão ao abysmo onde a lançaram, e encaminhal-a por onde eu vir que ella é menos infeliz. Não posso mais, estou fatigada e angustiada, adeus.

Norberto de Meirelles enfiou de novo a cara oleosa na pelucia da gola, sobraçou a enorme bengala encastoada de prata, e saíu do atrio do mosteiro com as ventas fumegantes.

VIII

 
                  Didone
… No mai die fiamma impura
Feci l'are fumar per vostro scherno;
Dunque perché congiura
Tutto il ciel contra me, tutto l'inferno?
                  Osmida
Ah! pensa a te non irritar gli Dei…
                  Didone
Che Dei? Son nomi vani,
Son chimere sognatte, ó ingiusti son.
 
Metastasio. (Didone.)

Norberto de Meirelles communicou, immediatamente, ao cunhado o acontecido com a religiosa benedictina, pedindo-lhe conselho para evitar que a filha se fizesse freira.

O bacharel Sampayo chamou a capitulo os seus vastos expedientes de perfidia, e conglobou-os n'um, do qual ousou afiançar ao cunhado um exito feliz.

Chamou pessoa idonea para executal-o, e de Lisboa veio ao Porto um individuo encarregado da seguinte missão:

Entrou, um dia, no pateo do mosteiro de S. Bento esse homem, e perguntou na portaria, se lhe seria possivel fazer chegar ás mãos da snr.ª D. Carlota Angela um bilhetinho de sua mãe.

A porteira respondeu affirmativamente, como era de esperar, recebeu o bilhete, e entregou-o a Carlota, que saia do côro, onde costumava passar as manhãs em oração.

Era este o conteúdo do bilhete:

Uma pessoa quer fallar á snr.ª D. Carlota ácerca de Francisco Salter de Mendonça; mas deseja estar só com ella em uma grade. A pessoa espera resposta.

Carlota alvoroçada correu ao locutorio, e exclamou:

–Estou aqui.

O enviado do bacharel aproximou-se, e disse:

–Sou eu que a procuro, minha senhora; mas na esperança de ser demorada a nossa pratica, pedia o favor de me fallar n'uma grade, porque este logar é improprio para se tratarem cousas de tamanho segredo.

Carlota olhou em redor de si, viu uma criada com uma chave, e disse com precipitação:

–Empresta-me a grade por um bocadinho? empresta, por quem é?

–Sim, minha senhora—disse a criada.

Carlota indicou ao homem de Lisboa a grade, e correu a encontral-o.

Não tinha ainda elle terminado as formalidades da cortezia, disse Carlota impaciente:

–Elle já veio? Está em Lisboa?

Estas perguntas eram feitas a tremer. Carlota, não podendo com a afflictiva duvida da resposta, apressou-se a interrogal-o assim, cuidando que a certeza com que perguntava por Mendonça vivo a desopprimia da suspeita de que elle era morto.

O homem não estava preparado para perguntas tão expeditas. Ficou perplexo, e esta indecisão deu azo a novas perguntas:

–Traz-me cartas d'elle? dê-m'as…

–Não trago cartas, minha senhora.

–Não?!—atalhou ella com vehemencia e sobresalto.

–Não, snr.ª D. Carlota. Francisco Salter não lhe escreveria, ainda que podesse…

–Como?! não entendo!… Não escreveria… porque?

–Se a menina serenar um pouco, tomarei a liberdade de historiar-lhe vagarosamente a vida do homem que lhe mereceu um grande amor, digno, permitta-me dizer-lh'o, de ser melhor applicado.

–Isso é uma calumnia! isso é mentira!—exclamou Carlota, sem pesar a gravidade das palavras que ouvira, e das que proferira com exaltada acrimonia.

–Eu desculpo-a das injurias que me dirige, porque avalio a surpreza dolorosa, que lhe fazem tão horriveis novas. Queira escutar-me.

Francisco Salter saiu do Porto amando-a, como se ama aos vinte e quatro annos, com esse amor imprevidente, superficial, e arriscado ás variantes do coração logo que as tempestades de outras paixões se levantam, sopradas por um casual encontro com outra mulher. Era um rapaz no comêço de uma bella carreira, com espiritos ambiciosos, sem bens de fortuna, e descontente da sua sorte… O desengano devia vir, logo que os olhos da pessoa, que elle amava, deixassem de influencial-o. Chegou a Lisboa, onde tinha valiosos amigos e parentes, e onde fora chamado para receber uma honrosa commissão para o Brazil, com augmento na sua carreira, e promessas seguras de grandes vantagens.

Francisco Salter de Mendonça rejeitaria a gloria, se o amor fosse de mais rija tempera; renunciaria um almirantado, se o coração de Carlota Angela saciasse n'elle a louvavel ambição de se fazer grande por merecimento proprio. Obedeceu ao orgulho, e partiu para o Brazil, como a menina sabe. Escreveu-lhe, talvez, uma carta muito saudosa, muito lamuriante, muito esperançosa; mas… partiu.

No Brazil, foi recebido como era de esperar. Encontrei-o na melhor sociedade, posto que a melhor sociedade de lá só se faça valiosa pelo dinheiro. As ricas herdeiras olhavam-o como um rapaz distincto, capitão da real brigada, bem fallante, gentil, bravo, soberbo de si, e collocaram-o na posição de escolher.

Vejo que v. s.ª está anciada. Se a continuação da minha visita a molesta, peço licença, e retiro-me.

–Não… não… queira dizer—balbuciou Carlota, tirando com violencia a respiração do seio convulsivo.

–Os fumos da vaidade e os da ambição—proseguiu o porta-voz do bacharel—ennevoaram aos olhos de Mendonça a imagem de Carlota Angela. Eu, que fora nos primeiros dias seu confidente, sabia que a menina existia n'este convento; recordei-lhe com pezar o indigno perjurio, e elle respondia-me que a ausencia era o balsamo maravilhoso das chagas que o amor fazia. Confesso que me angustiou esta baixa condição de alma! e muito principalmente depois que vi algumas cartas de v. s.ª, escriptas emquanto elle fazia a viagem.

Passados mezes, dois ou tres, se tanto, Mendonça dá parte aos seus amigos de que vae tomar estado com a filha unica de um opulento negociante, dotada com centenares de contos.

–E casou?—exclama Carlota, lançando com vertiginoso impeto as mãos ás grades.

–Casou—respondeu o homem, friamente.

Carlota soltou um grito, que não tem outro comparavel na expressão da angustia humana. Era o ruido agudo do estalar de todos os tecidos do coração, do rasgarem-se todos os vasos de sangue, do embate dos pulmões lacerados contra as paredes do peito. E, depois, os dedos recurvos nos ferros da grade, relaxaram-se, hirtos como os de um cadaver, e o corpo resvalou da cadeira para o chão com estrondoso baque.

O homem horrorisou-se um instante da sua obra, e recuou até á porta para retirar-se; mas a sua missão não estava ainda cumprida. Relampagueou-lhe uma ideia lucida. Desceu á portaria, e disse que fosse Alguem á grade, onde se achava desmaiada a snr.ª D. Carlota.

A este tempo já a madre porteira, alarmada pelo estrondo da quéda, entrava pressurosa na grade, e vendo Carlota no chão, chamou-a a altos gritos. Houve grande rumor no convento, e entre as muitas pessoas que desceram á portaria, vinham D. Rufina e a noviça.

O homem de Lisboa permanecia imperturbavel na grade, esperando que o interrogassem, já depois que Carlota fora transportada, com frouxos signaes de vida, ao seu quarto, acompanhada de um medico, que a fortuna trouxera n'esse conflicto.

–Alguma das senhoras é a tia da snr.ª D. Carlota Angela?—perguntou o homem.

–Sou eu—respondeu a pavida religiosa.

–Concede-me alguns minutos sem testimunhas?

As outras senhoras deixaram só Rufina; o delegado do bacharel proseguiu:

–Essa menina desfalleceu, quando eu lhe noticiei o casamento de Francisco Salter de Mendonça.

–O casamento?!

–Sim, minha senhora.

 

–O que geralmente se diz é que morreu.

–Casou, e morreu, dias depois.

–Oh meu Deus!—clamou a freira, levando as mãos ás faces—oh meu Deus, o que se passa debaixo de vossos olhos! Francisco de Mendonça casou!… O senhor tem a certeza d'isso?!

–Como quem assistiu ao casamento e á morte. Esta segunda parte é que sua sobrinha ignora, porque me não deu tempo. Agora convém que v. s.ª lh'a diga, para que a morte sirva de perdão ao ingrato, e a ingratidão lhe converta em quasi indifferença a morte. É assim que essa pobre menina ha de recuperar a tranquillidade que precisa; e eu, que espontaneamente aqui vim dar-lhe o golpe, que ninguem lhe queria dar, com o bom proposito de curar a ferida com o proprio sangue d'ella, retiro-me, delegando em v. s.ª o complemento da minha obra. Minha senhora, recebo as suas ordens.

Soror Rufina surgira de uma especie de lethargo, depois que o desconhecido saíra.

Foi ao quarto da sobrinha, e viu-a sentada no leito, com os cotovêlos fincados nos joelhos, e o rosto entre as mãos. Saíam-lhe das palpebras os olhos vidrentos e immoveis como os de um cadaver embalsamado. Parecia não ver alguem, e a respiração das pessoas, que a rodeavam, nem sequer se ouvia. O olhar de Carlota fazia terror.

A religiosa chamou-a tres vezes, como a mãe delirante chamaria sua filha morta; o pavor, porém, d'aquelle olhar sem luz nem movimento, parecia responder-lhe que estava morto o coração que devia ouvil-a. Rufina abraçou-a vertiginosamente, agitando-a com desespêro: o corpo obedecia ao impulso, com a inerte obediencia do cadaver, mas os olhos lá estavam na sua terrivel immobilidade como que seguindo a alma que lhe fugira arrancada pelas garras de um demonio.

–Que é isto, snr. doutor! está morta minha sobrinha?—bradou a religiosa ao medico.

–Não está morta, minha senhora; póde estar demente.

Carlota Angela soltou um profundo grito, ergueu-se sobre os joelhos no leito, travou das tranças com frenetico delirio, deixou caír os braços semi-mortos, e recaíu no torpor de momentos antes.

Passado o espanto, todos os corações se derramaram alli em lagrimas. Não sabiam ao certo que immensa angustia era aquella; mas adivinhavam-a. Todas se voltaram para Jesus crucificado, de joelhos oraram chorando, e a oração era a mesma em todos os espíritos:

«Se ella está demente, levae-a, Senhor!»

Aquelle estado era impossivel longo tempo. Durante vinte e quatro horas succediam-se as syncopes, cada vez mais prolongadas e assustadoras. O medico, descrido da acção dos antispasmodicos, aconselhou que lhe fallassem muito na causa d'aquelle accidente, confiado na vitalidade febril que dão as agonias moraes; e nas lagrimas consecutivas.

Assim o aconselhara; ninguem, todavia, queria encarregar-se de tão cruel flagellação.

Soror Rufina esperara a saída das incessantes visitas, para, com o soccorro do céo, executar o duro supplicio de Carlota. O coração dizia-lhe que tal expediente seria um tormento inutil; mas o medico ajuntara ao conselho razões que a convenceram.

A sós, Carlota fitou-a com uma turvação de olhar, que deu quebranto á resolução da freira.

–Se ella está demente, de que serve este triste remedio?!—dizia soror Rufina—Eu vou verter-lhe fel na chaga do coração, e nem posso ao menos contar com a intelligencia d'ella para lhe faltar á razão! Se Deus a chamasse a si, que maior felicidade lhe poderia eu desejar! Minha filha!—murmurou ella, aconchegando-a ao seio—Tu não me conheces? Sou a tua boa tia, a melhor das tuas amigas. A tua dor me dóe tambem, Carlota. É preciso que nos consolemos uma á outra. Diz-me uma palavra só, anjinho… Conheces a tua tia, menina?

–Se conheço!…—disse com meigo sorriso, Carlota, abraçando-a pelo pescoço. Rufina estremeceu de alegria, comprimindo com transporte o seio da sobrinha ao seu, e cobrindo-lhe de lagrimas e beijos a face.

–E és a minha querida filha, pois não és?—proseguiu a freira—É de mim que esperas allivios d'esta agonia, e amor para toda a vida? Aceitas as consolações de tua tia, crendo que é ella o instrumento de que a misericordia de um Deus piedoso se serve?

–Não me falle em Deus!—bradou com impetuosa violencia Carlota Angela.

Rufina tremeu e empallideceu como assombrada de um raio.

–Está douda a infeliz!—disse ella—Agora sim, creio que não ha valer-lhe! Ó Mãe Santissima, ó Senhor dos Afflictos, levae esta alma para vós… não consintaes que os labios digam blasphemias, que o espirito d'esta virtuosa creatura não sente.

–Não me falle em Deus!—repetiu Carlota, esgazeando sinistramente os olhos—Não ha Deus, nem justiça, nem misericordia. Ha inferno n'este mundo para os innocentes, para os que, fugindo ao odio humano, se acolhem ao amparo divino.

–Jesus!—atalhou a religiosa—Que palavras são essas, filha!?

–Eu não merecia esta morte, minha tia. Que fiz eu para morrer assim desesperada de achar a remuneração de tamanha perfidia?! Abandonada, esquecida por elle… Que horror!

Carlota Angela tapava o rosto, e arquejava, fugindo impetuosa aos braços da freira.

–Que horror!—continuava ella, apertando as fontes com as mãos, e tirando com violencia pela respiração—Trahida por Francisco!… Todo este amor, a amor de toda a minha vida, calcado, desprezado, ao mesmo tempo que eu o ia alimentando com lagrimas diante d'aquella cruz, onde eu cuidei que se encontrava compaixão!…

–E encontra, minha filha; e ainda agora das chagas de Jesus Christo está correndo o balsamo que te ha de curar, Carlota!

–Curar-me!… A tia não sabe o que eu soffro, não conheceu esta dor, não sabe que desesperada vae ser a minha agonia! Eu tenho a morte já na garganta. Era preciso que eu perdesse o juizo para se crer que ha Deus. Morrer assim, e sentir a causa da morte… isto é mais que barbaridade… o demonio não póde tanto, e um Deus não consentiria padecimento tamanho… Oh!… quem me apressasse a morte… quem me désse um veneno… quem me arrancasse do coração esta agonia!… Oh meu Deus!…—bradou ella, estendendo os braços para o crucifixo.

Soror Rufina correu a tomar a cruz de sobre a commoda, e aproximou-lh'a. Carlota cravou-lhe os olhos, um momento humedecidos de lagrimas, e lançou-a de si com um violento gesto de repulsão.

–É mentira tudo isso!—exclamava ella, agitando as mãos com frenesi, como se a tia teimasse em dar-lhe a cruz—É mentira tudo! não ha Deus, não ha nada a que uma desgraçada, como eu, possa recorrer! Deus não consentiria que houvesse um perverso tal como esse homem, nenhuma miseravel como eu…

–E, se souberes que foi castigado o perverso que te faz soffrer tanto, Carlota, crês que ha justiça de Deus?

–Castigado!… não ha n'este mundo castigo para tamanha ingratidão… Elle é feliz a esta hora, nos braços de outra, com os carinhos de outra mulher, e eu… aqui, nas agonias da morte, sem poder saber que tempo hão de durar!… Meu Deus, eu morro arrependida de vos ter negado, se me levardes já…—E tomando a cruz, que beijava fervorosamente, proseguiu:—Levae-me, Senhor… tirae-me d'este inferno, ou fazei que eu endoudeça! Se eu sou grande peccadora, dae-me as penas eternas da outra vida, se lá não ha memoria das amarguras d'este mundo! Dae-me o outro inferno por este, e eu darei sempre louvores á vossa misericordia!… Não me escuta!—bradou Carlota com desesperada indignação, querendo arremessar a cruz.

–Filha!

–Deixe-me acabar, minha tia… Eu não quero esperanças… esperanças!… em que? Não quero consolações de ninguem… A maldade d'aquelle homem não me deixa já crer no amor de ninguem… Fujam todos de mim, que eu sou uma mulher amaldiçoada, sem ter offendido uma só pessoa… É a maldição de meu pae que chegou ao céo. Fui enganada, tinha fé n'aquelle homem, estou assim penando, porque o acreditei… É um castigo maior que o meu delicto! Deus devia perdoar á pobre mulher de dezoito annos, e castigar o traidor por quem me perdi…

–E castigou.

–Como?

–Chamando-o a contas.

–Diga, diga, minha tia… que é? chamando-o a contas!… pois elle…

–Morreu… pouco tempo depois que perjurou, Carlota. Agora crês que ha Deus?… crês na justiça divina?

Carlota não ouvia. Os olhos pasmaram, como se a paralysia os ferisse de subito. Os labios ficaram semiabertos, como se por elles perpassasse a derradeira expiração. Os braços decairam com mortal quebranto.

A freira abraçara-a, sustendo a cruz entre os dois seios, e invocando Jesus, e Carlota.

Dorothea entrara, ouvindo os gritos de Rufina. Subira ao leito, clamando agudos ais, porque julgara morta Carlota.

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