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O Regicida

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–Não seja injusto…—voltou o filho com menos calor do que era de esperar em defeza de um amigo calumniado—Conheço ha onze annos Roque da Cunha, e achei-o sempre leal e serviçal até pôr o seu braço desinteresseiro em desaggravo da minha honra. Não foi elle que se me offereceu para matar o padre; fui eu quem antecipadamente o obrigára por juramento a correr commigo todos os perigos…

–E dize-me cá—interrompeu Antonio Leite—este homem era bem procedido quando te amistaste com elle? Vivia com honra?

–Não tenho que ver com o que elle era…—respondeu Domingos Leite froixamente, lembrando-lhe o assassinio do pai de Miguel de Vasconcellos, a denuncia de Mathias de Albuquerque, os insultos que este general recebera á entrada da Torre de Outão, e outras malfeitorias que não sobreviveram á memoria dos contemporaneos.

–Não tens que ver com o que elle era?—repetiu tristemente o velho—Pois, filho, muito te convem estar de sobreaviso para o que elle hade ser.

Estas palavras, proferidas torvamente, impressionaram o espirito já preparado a recebel-as sem constrangimento da rasão, bem que ao animo reconhecido de Domingos Leite doêsse o consentir em tão austeras demasias. É uma sancta verdade não haver alliança de estima honesta entre dous homens pactuados por um feito criminoso. O affecto de Domingos Leite Pereira a Roque da Cunha era tão simulado ou sobreposse, quanto os remordimentos de um e o despejo do outro se distanceavam entre si. O coração—que desbordava de lagrimas, scismando na filha estremecida, e, ás vezes, vibrava de angustia, pensando que a esposa poderia vingar-se dando a outro a belleza desprezada—não entraria aos lodaçaes, onde as grandes angustias se atordoam e atrophiam, imparceirado com Roque da Cunha.

Domingos Leite era muitissimo desgraçado, quando seu pai o deixou, indo a Guimarães vender o prediozinho que representava trinta annos de economias.

XI

Chamava a cada hora pelo pai a inconsolavel Angela.

A mãe acariciava com beijos o rosto da filha; e, soluçando, dizia-lhe que o pai não tardaria.

A menina adoeceu de molestia que a mãe attribuiu a saudade. Maria Isabel desvellou as noites de joelhos á beira do leito; e, invocando o testemunho ou a piedade da Virgem do ceo, protestava suicidar-se, assim que sua filha morresse.

Quando Angela se amodorrava em lethargia febril, Maria Isabel escrevia ao marido a historia por minutos da doença da filha. Cada pagina terminava por nova supplica de as levar para si, a não ser que a creança expirasse, que então nada lhe pediria a não ser o perdão.

A desventurada amava o marido n'aquellas horas escurissimas. As derradeiras palavras d'elle, ao despedir-se, compungiram-na profundamente, por que gemiam na alma onde o desalento amolentára os espinhos do odio. O natural despeito de se ver desprezada, por espaço de anno e meio, pôde menos que a consciencia de haver matado o porvir d'aquelle homem, tão prosperado e ditoso n'outro tempo! Alanciavam-na remorsos de o ter enganado, e pensou que a Providencia a punia, pondo-lhe o marido no desterro e a filha na sepultura.

Angela resurgia salva da perigosa enfermidade, quando Maria Isabel, fechando a longa relação com a fausta nova da convalescença, sobrescriptou a carta para Madrid.

N'aquelle tempo, cartas enviadas a Hespanha eram revistadas e rasgadas quando não davam margem a suspeitas. Todo o portuguez que demorasse então em Castella peccava por traidor á patria ou criminoso foragido á justiça. Domingos Leite Pereira fôra arrolado na classe dos ultimos.

Tanto que o seu confessor lhe disse que o marido não recebia as cartas, Maria Isabel, soffreando o pejo, recorreu pessoalmente ao marquez de Gouvêa, levando comsigo a menina. O velho mordômo-mór recebeu-a com benevolencia. As lagrimas em rosto formoso ensinam a delicadeza e afinam almas compadecidas. Entretanto, o marquez não se prestou a transmittir as cartas, receando molestar a irritabilidade de el-rei.

–Mas que mal fez meu marido a el-rei?—perguntou Maria Isabel.

–Não fez mal directamente a el-rei; uzurpou-lhe simplesmente o direito de castigar. Quem mata um homem sem poder allegar que o fez em justa defensão de sua vida, dá a entender que o faz desconfiado da lei.

–Então o sr. D. João IV persegue meu marido?

–Não, senhora; permitte que a justiça cumpra o seu dever.

–E, se eu fosse com a minha filha lançar-me aos pés da rainha?

Sorriu-se o marquez em ar de reprovação do alvitre, lembrando-se que D. Luiza de Gusmão impedira que el-rei se deixasse apiedar das deplorações da duquesa de Caminha, quando já se estavam carpintejando as peças do cadafalso. Alem d'isso o mordomo-mór sabia que o nome da mulher de Domingos Leite chegára ao aposento da rainha com o labeo de prostituida a um padre. Não revelou o que lhe passava na mente, e fez apenas um gesto negativo.

–Mas el-rei não me trataria com desabrimento?—proseguiu ella.

–Não, com certeza. El-rei tractou mui urbanamente a sr.ª duqueza de Caminha, quando lhe foi pedir o perdão do marido.

–Mas não perdoou…

–É verdade; porém, são muito diversos os pedidos e as causas. Que lhe quer vossa mercê pedir?

–Que deixe vir meu marido para Portugal.

–E não seria melhor buscar meios de elle ser julgado e absolvido?—replicou o fidalgo.

–Não conheço ninguem… e tenho vergonha de fallar aos juizes!…

–Acho justa essa repugnancia…—assentiu o marquez—todavia, se quer fallar a el-rei, maior lhe deve ser o pejo.

Maria, apóz breve pauza, em que ponderou a replica judiciosa do mordomo-mór, insistiu ainda chorando:

–Se V. Ex.ª se compadecesse de nós…

–Em que posso mostrar-lhe que me compadeço das suas magoas?..

–Se V. Ex.ª tivesse modo de fazer chegar a minha filha á presença d'el-rei nosso senhor com um requerimento meu…

–Heide pedir licença a sua magestade, e espero alcançal-a. Dar-lhe-hei a resposta. Porém, suppondo que el-rei lhe nega audiencia ou lhe indifere o requerimento, dou-lhe um conselho. Vá para Madrid com sua filha. Seu marido de certo a não repulsará, se a senhora abrir o caminho ao perdão por intermedio da filha que elle adora. Se acontecer achal-o colerico, haja-se com discreta paciencia, dispensando-se de viver em commum com elle. Vossa mercê é bastante rica. Tanto lhe faz viver em Lisboa como em Madrid. Quadra-lhe o conselho?

–Sim, sr. marquez—assentiu Maria Isabel muito reanimada—E V. Ex.ª protege a minha ida?

–Heide conseguir que não lhe impeçam a passagem nas fronteiras, e dar-lhe-hei uma carta que esta menina hade entregar ao pai.

–E como heide encontral-o em Madrid?

–Antes de vinte e quatro horas saberei de Gaspar de Faria onde seu marido se alojou. Se chegar a ir, e reconciliar-se, recommendo-lhe com muita instancia que môva Domingos Leite a sahir de Hespanha. El-rei tem bons amigos em Madrid que lhe relatam pensamentos, palavras e obras dos portuguezes que lá vivem. Já cá é notorio que Domingos Leite, dominado pelo seu funesto amigo Roque da Cunha, concorre ás cazas mais suspeitas dos maquinadores da nossa escravidão. Sobre queda couce, diz o ditado. Não é assim que elle hade ter por si el-rei e os juizes. Por estas e outras rasões lhe aconselho, como bom amigo que ainda sou de seu marido, que em vez de ir a el-rei, passe a Hespanha; e depois, se Domingos Leite a quizer attender e á carta que eu lhe hei de dar, vão para França ou para Roma.

Nesta conjuntura entrou o secretario Antonio de Cavide, que fitou com ares de assombrado o bello rosto e garbosa compostura da dama desconhecida.

Maria Isabel, erguendo-se, disse á filha que beijasse a mão do sr. marquez, e sahiu.

–Quem é esta gentil fada?!—perguntou Antonio de Cavide—Eu nunca vi mais guapa mulher!

–É a esposa de Domingos Leite Pereira.

–Oh!… é esta!?. Olha o maganão do padre Luiz com que cilicios se penitenciava! Bem me dizia el-rei que a mais bonita mulher de Lisboa, segundo ouvira ao juizo competente do sr. marquez, era a Traga-malhas… Que diria sua magestade, se a visse?

–Que diria, e que pensaria!..—accrescentou o mordomo-mór, sorrindo com a malicia commum dos dois fidalgos.

–Eu sei cá!..—tornou o secretario de estado franzindo o sobr'ôlho—Talvez desculpasse o clerigo, e perdoasse aos ciumes ferozes do marido…

–Esta é joia mais de preço que a condessa de Villa Nova!..

–Upa, upa!

–E vai muito alem da açafata?

–Da Justa Negrão? Upa, upa! sr. marquez!

–Vem a ponto uma pergunta: a D. Justa está contente no mosteiro de Chellas?—perguntou o marquez.

–Está resignada desde que eu lhe mostro a filha de mez a mez.

–E el-rei continua a ver a menina?

–Levo-lh'a ao palacio de Alcantara todas as terças feiras. El-rei é doido pela pequena, e chama-lhe a sua querida infanta: mas a creança, que fez agora trez annos, tem uns ares tristes que fazem scismar.

–Adivinhará as lagrimas da mãe?—aventou o marquez—Ou seria concebida em estação amargurada…

–Lá como ella foi concebida não sei; são segredos de alcôva; mas a historia das damas dos reis não me fez conhecer uma só que se carpisse de ser mãe…

O mordomo-mór derivou a palestra em outro rumo, receando molestar o pundunor do ministro lançarote de el-rei.

Era Antonio de Cavide tanto das entranhas de D. João IV que, se o leitor leu em a Nota 6.ª o testamento do rei, trasladado dos apontamentos originaes, veria as referencias com que o seu real amigo o recommenda á consideração da rainha. Arguiam-no os aulicos de ser o medianeiro dos amores illicitos do monarcha. Da açafata D. Justa Negrão segredava-se na côrte que fôra elle o corruptor á custa de infames alliciações, necessarias a vencer a indifferença e até a reluctancia da criada do paço. Fôra ainda Antonio Cavide o agente da profissão de D. Justa no convento de Chellas, e em caza d'este secretario se estava creando a filha d'esses amores, em que a victima violentada ganhára vestir a mortalha monastica, volvidos dois annos, mais que longos, para o regio fastio de sua magestade (Nota 19.ª)

 

Este secretario de estado, raramente referido nos historiadores do reinado de seu real amo, exercia attribuições, segundo parece, nas coisas secretissimas do rei, não lhe sobrando vagar para as do estado. Ainda assim, do testamento do monarcha deprehende-se que nenhum homem gosou como elle a confiança do rei até á hora final. Rodados vinte e seis annos, achamos Antonio Cavide condemnado á morte, na regencia de D. Pedro, como conjurado na tentativa de rebellião a favor de Affonso VI, prezo na Ilha Terceira. E dado que dois modernos historiadores3 nos dêem Antonio de Cavide executado em Lisboa em 1673 é bem de ver que não colheram idoneas informações de escriptores coevos. Carlos II de Inglaterra, enviando, a rogos de sua esposa D. Catharina de Bragança, um navio a Lisboa com embaixador expresso, a pedir o perdão do velho secretario de D. João IV, logrou salval-o do patibulo; mas, decorrido breve termo, Cavide morreu com suspeitas de empeçonhado por insinuação do regente.

XII

Maria Isabel, querendo passar a Castella, offereceu os seus predios da Tanoaria a varios compradores que lh'os haviam desejado; mas a alienação dos bens seria nulla sem consenso do marido, e nulla tambem em quanto elle não houvesse respondido á justiça, que o esbulhára dos seus direitos.

Recorreu a dama ao mordomo-mór, que não antevira o embaraço, nem podia removêl-o. A consternada senhora sahiu do gabinete do marquez, desattendendo os prudentes conselhos que tendiam a esperar alguns dias o resultado da intervenção de um ministro mais influente no real animo. O mordomo-mór lembrara-se de Antonio Cavide. Maria Isabel lembrara-se de D. João IV.

Seguiu d'alli, com a filha, para o paço da Ribeira, e entrou no Arco de Ouro. Debaixo da arcada estava a Porta da Campainha. Chamava-se assim porque debaixo d'aquelle arco havia entrada franca de serventia para uma casa onde estava uma roda, como a das portarias monasticas, e sobre a roda uma sineta que tangiam as pessoas que procurassem el-rei. E, logo que a campainha tocasse, D. João IV enviava alguem a reconhecer a pessoa, ou descia propriamente, se esperava ser procurado por aquelle meio menos ordinario.

Estava o rei com Antonio de Cavide na sua pomposa bibliotheca de musica, situada na porção do palacio chamada o Quarto do Forte, quando ouviu tanger a sineta.

–Vá ver quem é—disse o rei sorrindo—Olhe que não vá ser algum burro lazarento…

Emquanto o secretario de estado vai e volta, saibamos que allusão é aquella do burro lazarento, visto que Diogo de Paiva e Andrade no'l-a transmittiu nas suas Memorias, por vezes citadas n'este livro. Foi que uma vez entrara um jumento vadio no recinto da sineta, e começou a trincar a corda no intento provavel de a comer. Ora como a sineta repicava tão ligeira quanto a fome do tangedor esgarçava no cordel, D. João IV, que estava só, e extranhára o pressuroso dos toques, desceu pessoalmente á casa da roda, e perguntou quem era. Como ninguem lhe respondesse, mandou averiguar se a pessoa que tocára já teria subido á saleta de espera. O enviado voltou annunciando a sua magestade que encontrara um burro muito magro. El-rei ordenou logo que o levassem ás cavallariças reaes, com recommendação de o tratarem fartamente; e accrescentou; «Semelhante pretendente não póde ter outro requerimento.»

Não me consta que D. João IV, em toda a sua vida, dissesse ou fizesse coisa de tanto espirito. A não ser coevo de sua magestade aquelle burro faminto, morreriam ambos ignorados, sendo digna de escriptura a lembrança que os dois tiveram.

Voltou no entanto Antonio Cavide com ridentissimo semblante, e disse:

–Mal pensava eu, real senhor, quando ha pouco tentava pintar o esbelto rosto da mulher de Domingos Leite, que ella tão perto estava de desmentir na presença de vossa Magestade a pallida copia que eu fiz!…

–Foi ella que tocou?!—acudiu o rei entre alegre e maravilhado.

–Ella, meu senhor, acompanhada da filha. Pede audiencia; e, apezar de coberta de lagrimas, nunca houve orvalho que aljofarasse mais purpurinas rosas!..

–Estou a ver se me falla em verso, Cavide!—disse o rei escondendo a custo a commoção da curiosidade—Mande-as entrar na primeira sala.

O secretario de estado correu o reposteiro da sala de espera e disse a Maria Isabel:

–Sua magestade houve por bem admittir a vossa mercê á sua real presença; queira entrar n'esta sala, e esperar el-rei nosso senhor.

A esposa de Domingos Leite com difficuldade se sustinha nas pernas, chegado o momento de se avistar face a face do rei: tremia de respeito como tremeria de pavor. A menina aconchegava-se d'ella olhando-a com susto, e circumvagando a vista assombrada pelas tapeçarias e colgaduras de ouro e prata, de veludo e damasco entre as quaes lampejavam contadores marchetados de ouro e marfim, grandes cofres abaulados de tartaruga e prata, bofetes torneados com feitios de dragos e serpentes, jarroens japonezes encimados das peregrinas flores que recendiam nos jardins do paço da Ribeira, redomas de christal, relogios de Inglaterra com primorosos relevos de esmalte, as pompas de toda a terra conglobadas n'aquelle palacio, que já então pompeava primasias sobre as mais esplendidas côrtes da Europa, graças á baixella da duquesa de Mantua, que nunca lhe foi restituida.

Posto que o tapete abafasse as passadas d'el-rei, Maria Isabel ouviu-o nas palpitações do coração; e já estava em joelhos, quando um sumilher da cortina correu o reposteiro com um ringido de aço estridente que, digamol-o assim, aggravava mais o terror do lance.

D. João IV entrou; o reposteiro ajustou-se outra vez aos batentes da ampla porta; e, n'este conflicto, a filha do burguez João Bernardes Traga-malhas cuidou que desmaiava, encostando a face esquerda ao volante que cobria a cabeça da menina.

Orçava então o rei pelos quarenta e tres annos. Não obstante as bexigas, que lhe alteraram notavelmente a gentilesa do rosto, conservava vivacissima a graça dos olhos azues, mais risonhos que os labios, nos escassos momentos em que o contentamento lhes transluzia desafogado da violenta caracterisação de rei suspeitoso. Era de estatura mean, e largo de espaduas, robustecido em lides fragueiras, despresador de inclemencias de tempo, quando nas monterias da tapada de Villa-Viçosa dispendia selvaticamente os melhores annos da existencia. Dá a perceber o conde da Ericeira, D. Luiz de Menezes, no Portugal Restaurado, que D. João era tão desregrado na alimentação que anticipara a caduquez do corpo. O historiador aulico, se lhe dessem trella, e alforria no pensamento, assim como nos disse que no rei o trajar era pouco menos que rustico e sujo, communicar-nos-hia a intemperança do espadaúdo sugeito, cevando-se nas lubricidades que adelgaçam as mais maçorras e rijas compleições.

Não se pense, porem, que o rei de Portugal n'aquelle dia trajasse immundo ou denotasse na epiderme do rosto padecimentos de hydropesia. Vestia um pourpoint (gibão) de panno preto, refegado no peito, sem guarnições até baixo do joelho, como loba clerical, e a pescoceira da camisa derrubada sobre a gola d'aquella vestimenta que muitas vezes usava, da vil droga chamada estamenha. (Nota 20.ª)

Os cabelos loiros, mas tosquiados quasi rentes, descampavam-lhe a fronte, relevada em proeminencias, que inculcariam talento, se a sciencia phrenologica de Spurzheim não fosse um lôgro nas cabeças da raça dos braganças, não collaboradas.

Calçava meia de sêda escura e sapato de veludo com um simples botão, sem os broches e orladura de ouro e perolas com que medianos fidalgos e até os pecuniosos da classe média se ajaesavam.

Como já vimos, Maria Isabel Traga-malhas esperava ajoelhada e perturbadissima a entrada d'el-rei.

Caminhando a passo vagaroso para ella, D. João IV parou a pequena distancia, e disse-lhe:

–Levantae-vos, senhora!

E como ella permanecesse em joelhos e anciada, o rei insistiu:

–Erguei-vos, que eu desejo ouvir-vos sem essa postura de adoração. Vamos! a pé!

Sua magestade poderia dizer alguma coisa mais regia, mais conceituosa, mais galan, ou, sequer, mais espirituosa, para arrolarmos com a outra do quadrupede da sinêta; mas não o arguamos de canhêstro ou pecco de phrases, dado que, a respeito da sua eloquencia, o referido conde da Ericeira nos diga que não costumando o rei a empregar as palavras mais polidas, usava d'ellas com tal arte, galantaria e agudeza que parecia fazia estudo do que em outros podera ser defeito.4

D'esta vez, cumpre desculpar-lhe a insufficiencia, dando-lhe foros de mero homem em presença da mulher que ultrapassava toda a bellesa imaginada.

Maria Isabel, apesar de ter meia face vellada no rebuço do capotilho—descortezia que ella ignorava por desconhecer ceremonias palacianas—deixava metade do rosto aos deleites da admiração, e a outra metade á curiosidade dos desejos, como diria na sua rhetorica farfalhuda Antonio Cavide.

Quando Maria se levantou, sem altear os olhos acima do estrado, acercou-se mais o rei, e poz a mão na face de Angela, dizendo:

–És muito galante, menina!

A mãe relançou a vista menos timida á face de D. João, e, como lhe encontrasse os olhos fixos, derivou logo os seus para a creança, absôrta na contemplação do rei.

–Sentae-vos, senhora—continuou, apontando-lhe uma cadeira, e olhando de esconso para o reposteiro, afim de certificar-se que ninguem lhe espreitava tão insolita cortezia ou tamanho abatimento da magestade.

–Se vossa magestade não quer ouvir-me de joelhos, peço que me deixe supplicar de pé a sua misericordia—balbuciou Maria.

–Sentae-vos e dizei. Tudo que o rei poder fazer-vos sem gravame da justiça e direito de seus vassallos, ser-vos-ha feito. Vindes pedir-me que absolva vosso marido de um crime publico? não sou eu quem hade sentencial-o ou absolvel-o.

–Não peço tanto a vossa magestade, meu Senhor…

–Que quereis então?

–Ir com minha filha para Madrid.

–Quereis ir para Domingos Leite?—perguntou o rei com estranhesa.

–Sim, real Senhor.

–É elle que vos chama?

–Saberá vossa magestade que eu, desde que elle partiu, nunca mais tive noticias suas.

–Apezar d'isso, quereis ir… Quem vos priva?

–Quiz vender parte dos meus bens, e a justiça não m'o permitte nem permittirá ainda que meu marido assigne os contractos.

–Porque é essa a lei dos criminosos—volveu gravemente o rei—Vindes pedir-me que submetta a lei á minha vontade particular? O que não posso fazer como homem, n'este caso, tambem o não posso fazer como principe. Eu não subordino a justiça: sou-lhe subordinado. Porém, como homem, poderei prestar-vos um serviço, se o quizerdes acceitar. Dar-vos-hei meios para irdes a Castella; e emquanto lá os carecerdes, remediar-vos-hei.

Maria, pela primeira vez, encarou a fito o monarcha. Brilhavam-lhe as lagrimas nos esplendidos olhos. El-rei parecia olhal-a com o resguardo timido de vassallo a contemplar, reconditamente amoroso, a sua rainha.

–Eu queria—murmurou ella—levar a meu marido o que herdei de meus paes; mas agradeço a vossa magestade a esmola que me offerece.

–Não é esmola; é emprestimo. Quando a sentença remover os estorvos que vos privam de vender os bens, então me pagareis. Entretanto, sabeis se vosso marido vos receberá graciosamente?

–Não sei, meu senhor…

–Ouvi dizer que elle, desde a morte de certa pessoa, vos não fallára mais. É verdade?

–Sim, meu senhor.

–E esse despreso não impede que o ameis? Fallae-me verdade inteira, porque a vossa sorte me está prendendo extraordinariamente a attenção. Amaes Domingos Leite?

 

Deteve-se alguns momentos a interrogada, e respondeu com embaraço:

–Casei com elle por paixão, e foi a paixão que me cegou…—e aqui reteve-se vexada e confusa.

–Sei o que vos custa a dizer:—acudiu o rei—passae adiante, Maria Isabel.

A suavidade com que D. João proferiu os dois nomes parecia arrasar uma alta barreira, erecta entre os desiguaes interlocutores. Aquelle tom de benevola confiança—o vêr ella seu nome na memoria d'el-rei—deu-lhe umas largas á alma, uns assomos de vaidade, um desafôgo analogo ao dos pulmões que se impregnam de correntes de ar novo em recinto abafadiço.

–Dizei,—proseguiu elle—O desamor com que Domingos Leite recusou perdoar-vos uma culpa, que devia ser attenuada pela innocencia com que a praticastes, foi causa a que a vossa paixão se desvanecesse… Errei o meu juiso?

–É verdade, real senhor!.. Eu sei que fui criminosa em acceitar o seu galanteio; mas não o seria… se não fosse tão innocente.

–Ainda assim, é compaixão ou amor que vos resolve a procural-o em Hespanha?

–É esta creança que chora por elle; e é a afflicção que eu sinto quando me lembro das afflicções com que meu marido se separou da filha…

–E de vós, não?!—redarguiu elle com perfida admiração.

–Parecia querer perdoar-me n'essa hora…

–Bem. Perguntae-lhe se vos perdôa. Se elle vos disser que sim, ide, e contae commigo. Lembro-vos, comtudo, que em Madrid Domingos Leite é recebido como homem brioso que matou um padre, amante de sua mulher: e que o sr. D. Filippe IV, attendendo aos merecimentos de tal façanha, o honrou com o habito de cavalleiro da ordem de Christo. Não sei se elle vos acceitará, depois que este boato, em grande parte aleivoso, se derramou em Portugal e Hespanha; e estou em crêr que Maria Isabel, tão mal considerada em Madrid, não quererá apparecer aos admiradores de seu marido.

–Esse boato é uma calumnia, senhor!—exclamou ella com os olhos sêccos e o rubor nas faces.

–Não m'o digaes a mim, que eu já vol-o disse. Li o processo com o maior empenho; quiz salvar vosso marido; já vêdes que se alguem duvida da vossa innocencia de esposa, não sou eu. Como quer que seja, em materia tão melindrosa, não sei nem devo aconselhar. Fazei o que bem vos apraza. Repito: escreva Maria Isabel a seu marido, e dê a carta ao meu secretario de estado Antonio Cavide, que elle a fará entregar directamente a Domingos Leite, e a resposta, se vier, ser-vos-ha entregue.

–Ah!—suspirou a formosa—se o meu nome anda tão infamado em Madrid, meu marido não me responde… Elle desprezava-me, quando toda a gente ignorava a minha desgraça; que fará agora que é maior deshonra para elle reconciliar-se commigo!..

–Quem sabe? O coração humano faz mudanças de que não sabemos dar causa nem rasão. Nada se perde em lhe sondardes o animo. Escrevei-lhe hoje, que amanhã Antonio Cavide, ou alguem com recado seu, irá procurar vossa carta.

E, voltando-se para a menina, perguntou:

–Como te chamas, linda?

–Angela—respondeu a creança.

–Criada de vossa magestade—accrescentou a mãe muito desvanecida da regia curiosidade.

–Pois que dizeis que é minha criada—volveu D. João IV—minha criada fica sendo desde hoje, e virá exercer o seu officio, quando a edade lh'o permittir. No emtanto, o seu nome será registrado no livro das açafatas da rainha, desde já.

–Ajoelha a sua magestade, e pede-lhe licença para lhe beijar a mão—disse Maria Isabel com transporte.

O rei colheu a menina nos braços, e disse:

–Eu é que lhe beijo estas duas rosas do rosto, que fazem lembrar os cherubins. Uma reflexão—proseguiu o rei de subito—não diga Maria Isabel a seu marido que eu nomeei sua filha criada do paço. Seria muito dolorosa para mim semelhante nova dada a um homem, que não póde ser galardoado emquanto não fôr absolvido. Tendes entendido?

–Esteja vossa magestade segurissimo de que eu não direi que fallei a vossa magestade.

–Ainda melhor, ainda melhor. Nem uma palavra que prenda commigo.

Maria levantou-se indecisa se lhe cumpria despedir-se ou ser despedida d'el-rei.

–Quereis sair? Esperae,—disse D. João—que eu vou mandar-vos o meu secretario de estado para vos acompanhar á liteira.

–Vim a pé, real senhor.

–Ah! sim? Não obstante, esperae.

Sahiu o rei, beijando outra vez Angela, e deteve-se breves minutos com o secretario, que sahiu a dar ordens a um pagem, que as foi transmittir a um moço da estribeira.

Voltou Cavide outra vez á presença do amo.

D. João IV, encaracolando o bigode louro, e palmeando na espaciosa fronte, clamava enthusiasta:

–Que mulher! que mulher! Bem me dizia o marquez… Não ha dama no paço que lhe ganhe!.. Oh! que soberba creatura! tem musica na voz a feiticeira! Nunca vi coisa assim, nem viva nem pintada!

Cavide ria-se e esfregava as mãos.

–Isto não é para rir, meu caro!..—obstou o rei—Querem vêr que eu estou apaixonado!..

N'este lance grave, que as expressões do rei e a cara do valido tornavam ridiculo, o pagem disse por detraz do reposteiro que o moço da estribeira enviára dizer que a liteira das açafatas estava no pateo do norte.

–Vá! ordenou o rei ao secretario.

Antonio Cavide entrou na sala, onde ficára Maria Isabel, e inclinando a cabeça, disse:

–Sigam-me vossas senhorias.5

E, descendo ao pateo onde estava a liteira com lacaios de libré da casa real, deu a mão a Maria Isabel para ajudal-a a subir.

–Eu vim a pé…—gaguejou a mulher de Domingos Leite, não percebendo o convite do fidalgo.

–Sei isso; mas sua magestade manda conduzir na competente liteira a sua açafatasinha e mais sua mãe, muito minha senhora.

E, ao mesmo tempo que dizia isto mui galãmente, tomou Angela nos braços, e sentou-a no almadraque inferior; depois, offereceu o hombro á mãe, fechou a portinhola, e disse ao lacaio da frente:

–A casa de suas senhorias é na Porta do Salvador.

A liteira partiu com as cortinas fechadas. O instincto do pejo imprimira aquelle impensado impulso ao braço da mulher do expatriado.

E D. João IV, que de uma janella que abria sobre o terreiro, presenciára o fecharem-se as cortinas da liteira, dizia depois a Cavide:

–Aquelle recato pagára-lh'o eu com milhões, se o meu coração não valesse mais que elles!…

O confidente ouviu isto com a maior circumspecção.

O castigo supremo dos validos é não poderem escancarar sinceras gargalhadas nas faces dos reis.

3O sr. M. Pinheiro Chagas, Historia de Portugal, tomo 6, pag. 291, e o sr. A. José Viale no Novo epitome da Historia de Portugal pag. 158. Veja Monstruosidades do tempo e da fortuna por fr. Alexandre da Paixão, Ms. da Bibliotheca do Porto—e Vida de Affonso VI escripta no anno 1684, Porto, 1873.
4Port. Rest. T, 2. pag, 906.
5O tratamento de senhoria foi juridico para as donas, moças da camara e açafatas, por alvará de 17 de maio de 1777, quando já de antes a excellencia era o tratamento usual. Na côrte de D. João IV, a lisonja e a urbanidade não hesitariam tratar de senhoria as açafatas, e as amantes do rei em perspectiva.

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