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O Regicida

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XIII

Vellou a noite inteira Maria Isabel.



Figuravam-se-lhe visões, ora terriveis, ora deslumbrantes.



Sentia o que quer que fosse de interior transfiguração de seu ser. Contemplava-se e via-se mudada virtualmente. A scena do paço, a sala explendorosa, o rei, a

senhoria

 do secretario, a açafata, a liteira armoreada, a libré, e sobretudo os conselhos do rei, aquellas phrases umas vezes meigas, outras vezes tristes, o seu nome tres vezes proferido pelos regios labios, tudo, que ainda sonhado lhe seria deleitoso, era, em realidade, sobejo estimulo a que a noite lhe corresse não dormida. Mas, por entre as fulgurações da imaginação febricitante, dava-lhe tremuras um pavor indefinivel, se a idéa de ter cahido na graça do rei lhe impunha o dever de se lhe dar cegamente, e sem resistencia de rasão, de religião ou de pudor, como as mulheres que se vendem. Contradiziam-lhe estes sustos do pejo as palavras de D. João IV, aconselhando-a a consultar a vontade do marido, quanto a ir para sua companhia. Depois, como a revirar-lhe esta pudica justificação dos reaes intentos, occorria-lhe a lembrança de ter ouvido dizer a Domingos Leite que D. João IV nos seus amores, quando duque, não se estremava dos moços do monte em bruteza; que nenhuma das suas affeiçoádas lhe conhecera coração. E d'ahi umas explosões luminosas de vaidade, a mulher em todo o seu elasterio de vangloria, tanto mais acrisolada quanto se vira repudiada do marido… Muitas expressões do soberano soavam-lhe ainda nos ouvidos, quando a luz da seguinte manhã lhe alvoreceu no quarto; e, entre todas, estas principalmente: …

Não sei se elle

 (o marido)

vos acceitará, depois que este boato, em grande parte aleivoso, se derramou em Portugal e Hespanha; e estou em crêr que Maria Isabel, tão mal considerada em Madrid, não quererá apparecer aos admiradores de seu marido

.



–Decerto, não quero!…—dizia ella de si comsigo—Ainda que elle, por amor á filha, me deixe ir, hade querer que eu me esconda para que me não vejam; e talvez que me mande embora depois de lá ter a filha. Além d'isso, se eu lhe disser que o rei me dá o dinheiro para lá viver, elle reprova que eu o acceite, e pergunta-me como foi que eu procurei e obtive este favor…



Alvoroçada por tantissimas idéas incongruentes, sentou-se ao bofete para escrever tantas vezes quantas se levantou, depondo a penna, por não atinar com o expediente mais natural, ou, digamos antes, mais artificial da carta.



N'esta conjunctura, appareceu a menina a recordar-lhe as impressões da vespera, a fazer-lhe repetir as palavras que o rei lhe dissera, a pedir explicações dos dizeres que não percebêra. Depois vieram as criadas sobresaltadas, e Maria Isabel contou-lhes á sua anciosa curiosidade que a sua Angela era açafata, que o secretario de estado lhes déra senhoria, que el-rei tivera a menina sobre os joelhos, que a beijára muitas vezes; e de tudo pedia segredo ás môças, por certos motivos, os quaes motivos as criadas, em conciliabulo de cosinha, explicavam tão compridamente que não deixavam nada a desejar.



Assim foi correndo o dia, até que, ao cahir da noite, se annunciou a um lacaio de Maria Isabel uma pessoa que sua senhoria esperava.



O secretario particular do rei, annunciando-se incognito, a hora tão impropria, começava o acto mysterioso da sua interferencia; não obstante, a mãe da açafata, quando se lhe deu a noticia, disse com desenvoltura propria de fidalga, affeita a visitas de tal porte:



–Hade ser o secretario de estado Antonio de Cavide.



Momentos depois, o cortezão beijava os dedos da mulher de Domingos Leite, affagava a sr.ª Dona Angelasinha, a quem sua magestade enviava um beijo, e terminava por dizer que vinha receber a carta que havia de ir para Hespanha na manhã do dia seguinte, conforme as ordens dadas por el-rei ao correio-mór.



–Ámanhã!—disse Maria Isabel—Já ámanhã!… Mas eu ainda não escrevi…Como hade ser?



–Ainda tem v. s.ª muito tempo. Eu voltarei mais tarde, ou mandarei um escudeiro procurar a carta—remediou o secretario.



–Jesus!—murmurou ella, com ademanes de afflicta.



–Que tem a sr.ª D. Maria?—volveu Cavide.



–Não sei… não sei em que termos heide escrever a meu marido…



–Comprehendo o seu embaraço… que em verdade é justificadissimo. Devo dizer-lhe, senhora minha, que o que passou entre el-rei meu amo e v. s.ª, me não é de todo estranho. Tambem eu, pensando durante a noite no segredo que é mister haver, respeito á mercê que el-rei lhe faz, mal posso ligar a ida de v. s.ª para Hespanha sem que seu marido conheça a origem dos recursos, e até a real intervenção na remessa da carta. O sr. D. João IV, meu amo, d'esta vez não conciliou a generosidade de seu real animo, com a circumspecção que lhe é habitual. Quer-me parecer que v. s.ª deu todo pezo ás considerações que sua magestade lhe fez, e eu tambem tive a honra de ouvir-lh'as. Desde que o sr. Domingos Leite, fugindo para Castella, deu ansa á calumnia que denigre a reputação de sua mulher, parece, até certo ponto, que protestou diante do mundo não receber mais em sua companhia uma esposa, que lá e cá—malditas linguas!—passa por ter faltado á honra conjugal.



–Mentira!—interrompeu Maria Isabel assomada.



–Mentira atroz—assentiu Cavide—Sabe-o el-rei, sei-o eu, sabem-no os ministros em cuja alçada corre a devassa; mas os praguentos querem que as atoardas se propaguem bastante aleivosas para que lhes seja mais farto o sêvo da maledicencia. A nossa questão não é a calumnia; é sabermos como v. s.ª hade affrontal-a, como seu marido hade desfazêl-a, se lhe quizer perdoar; emfim, como a sr.ª D. Maria, minha senhora, hade illibar-se perante o mundo. Aqui é que bate o ponto. Por isso dizia eu agora que comprehendo os embaraços em que v. s.ª hade achar-se no modo de escrever a seu marido.



–Tem v. s.ª rasão.—confirmou Maria Isabel—Pensei n'isso tudo que me disse, e estive duas horas a começar cartas e a rasgal-as, porque tudo me parecia máo… não sei como heide sahir d'este aperto!…



–Peço venia para lhe dar um conselho…—disse Antonio Cavide, erguendo-se, aproximando-se d'ella mais á puridade, e abaixando o tom da voz.



–Faz-me v. s.ª um grande beneficio, se me aconselhar.



–Auctorise-me a sr.ª D. Maria a consultar el-rei, meu amo. Parece-me que nenhuma deliberação lhe cumpre tomar sem ouvir o parecer de sua magestade…



–Nem eu me atrevo a pensar coisa alguma em contrario das ordens d'el-rei.



–Mas—volveu o valido, depois de estar alguns minutos recolhido, passando por sobre os dentes a unha do pollegar como se corresse um teclado—Mas, se v. s.ª me promette segredo inviolavel com juramento…



–Prometto…—balbuciou Maria Isabel, tremula de alvoroço, entre receosa e anciada de curiosidade, com os brilhantes olhos postos nos beiços do secretario.



–Promette-me nunca, em tempo algum, em quaesquer circumstancias de sua vida, revelar propriamente a el-rei o que lhe vou dizer?



–Sim… prometto…—affirmou ella.



Antonio de Cavide pegou da mão de Angela, e apontando-lhe um cofre de madre-perola que estava sobre um contador no extremo da sala, disse-lhe:



–Vá a menina buscar aquella alfaia que desejo vel-a.



E, emquanto a menina foi, inclinou os labios ao ouvido de Maria Isabel, e segredou-lhe:



–El-rei quer-lhe como não quiz a ninguem n'este mundo. A vontade do meu real amo é que v. s.ª não vá para Hespanha; e eu, que conheço quanto el-rei soffreria, se a sr.ª D. Maria partisse, rogo-lhe encarecidamente que não vá.



A menina já estava ao pé do secretario com o cofre, quando Maria Isabel, proferidas as ultimas palavras, pegou de enfiar e tremer a ponto que Angela lhe disse assustada:



–Que tem, minha mãesinha, que está tão amarella?



E, ao mesmo tempo, o subtil alcayote, examinando os embrexados da caixa japoneza, resmuneava:



–Que formoso lavor! que linda coisa!.. É alfaia do tempo do sr. rei D. Manuel. Cá tem a esphera armilar! Bellissima joia!..



E, lançando de soslaio a vista a D. Maria, murmurou como se conversasse com as figuras chinezas embutidas no cofre:



–Não cuidei que lhe dava novidade; nem que a novidade, se o fosse, a inquietasse tanto! Seria triste se eu a magoava, pensando que lhe trazia o maior contentamento que pode dar-se á primeira fidalga da côrte portugueza.



Angela ouvia e não percebia as palavras, quando a mãe, abraçando-se n'ella com estremecido affôgo, resudava nas palpebras cerradas uma, ou talvez duas lagrimas que deviam ser—oh materialidade!—a cristalina seiva das fibras do pudor, as quaes viriam a depauperar-se em resultado d'aquelle perdimento de vida.



–Aqui tem, minha açafatasinha—ajuntou o secretario de estado, entregando o cofre a Angela—Esta caixa cheia de perolas e diamantes não valeria tanto como as duas lagrimas que sua mãesinha tem nos olhos. E eu bem sei o coração em que ellas vão cahir e doer…



Maria Isabel permanecia com a face apoiada na mão, o cotovello no braço da cadeira, os olhos velados pelas sedeudas pestanas, e com uma lagrima que, derivando, se quedára tremula no canto dos labios.



Antonio Cavide ergueu-se e caminhou para onde tinha o chapéo emplumado. Pegou d'elle, e sacudindo-o, á maneira de leque, entre as mãos, veiu ao pé de Maria Isabel, que se havia levantado.



–Recebo as determinações da sr.ª D. Maria Isabel, minha senhora. Mandarei ou virei em demanda da carta, quando se dignar ordenar-m'o.



–A carta?.. —perguntou ella—Pois não me aconselhou que não escrevesse?



–Não ousei tanto, minha senhora; aconselhei-a tão sómente a que me permittisse consultar el-rei meu amo; porém, depois do segredo que confiei á sua honra, quanto aos sentimentos de sua magestade, e depois de assistir á magua que taes sentimentos lhe occasionaram, receio que v. s.ª não queira que o seu destino dependa da vontade d'el-rei…



–El-rei decerto não quer a minha desgraça…—balbuciou ella.

 



–Quizera elle, senhora, dar-lhe n'este mundo venturas que os anjos do céo lhe invejassem…



Maria Isabel declinou os olhos ao rosto da filha, que parecia querer com a fixidez do olhar supprir a mingua do entendimento.



E, n'este lance, as lagrimas abrolharam a torrentes, porque, ao lado da cabeça de Angela, figurou-se-lhe vêr o rosto do marido, perdido por ella, e, áquella hora, talvez, traspassado de saudades de sua filha.



Ai! aquella mãe e esposa presentiu que havia de escorregar á voragem das deshonradas, embora resvalasse por ladeira de ouro, e lhe pozessem á flor do seu pégo de lama uma corôa de rei!



XIV

Na correntesa dos referidos casos passados em Lisboa, Domingos Leite Pereira, desmentindo os informadores de D. João IV, vivia pouco menos de obscuro, nos arrabaldes de Madrid, gastando restrictamente o que seu pae lhe enviava com grande resguardo e difficuldade.



Ideára elle que sua mulher, quer por compaixão, quer a rogos de Angela, lhe escrevesse, dizendo-lhe, ao menos, que a filha chorava. Esta dôr filial quizera elle que lhe fosse desafogo ás suas.



Mentira o rei quando affirmára que Domingos Leite se pavoneava de desmacular sua honra de marido, matando directa ou indirectamente o padre. Nunca elle articulou o nome da mulher, nem consentira de boa feição que lhe alludissem aos motivos da fuga. A Roque da Cunha rogava que não deslustrasse o nome de sua innocente filha, divulgando as affrontosas desventuras da mãe.



Mostrava-se muito commiserada da tristesa e soledade de Domingos Leite, D. Vicencia Corrêa. Convidava-o miudas vezes a passar com ella, e acintemente reunia em sua casa os filhos da marqueza de Montalvão, o conde de Figueiró, Diogo Soares, o senhor de Regalados, e outros dos muitissimos portuguezes que juraram fidelidade a Filippe IV. A fidalguia rodeava-o de attenções, sem o desengolpharem da sua tristesa, nem, sequer, o moverem à cortez condescendencia de negar a legitimidade de D. João IV. Roque reprovava-lhe a ingratidão, a falta de tino politico, e o perigo em que elle se expunha de não ter amigos em Portugal nem em Castella. Respondia então o desterrado que os recursos de seu pae tanto lhe davam um pão negro em Madrid como em qualquer outra parte do mundo; e que tanto lhe fazia estar ali como em outro ponto da terra, pois, fóra de Portugal, toda a terra lhe era exilio.



E accrescentava:



–Olha, Roque… Fui menos infeliz do que esperava, porque te vejo contente em Madrid.



–Contentissimo—confirmou o enteado do desembargador—Tenho cem escudos da junta dos portuguezes, cincoenta de meu padrasto, o nobilissimo Guedelha; serei brevemente nomeado criado do paço; e, quando Portugal voltar ao que era em 31 de novembro de 1640, uma das boas commendas do teu marquez de Gouvêa, ou d'outro quejando rebelde, será minha!



–Bem fallado!—disse, sorrindo, Domingos Leite—Eu, no teu logar, ia requerendo uma boa commenda em Hespanha, na incertesa do reviramento que desejas em Portugal. Bem sabes quantas investidas tentam ha sete annos os hespanhoes contra a nossa milagrosa independencia. Pergunta-o aos melhores cabos de guerra: ao duque de Feria, ao marquez de Castroforte, ao conde de Monterey, ao marquez de Mollingen, ao marquez de Torrecusa…



Et c½tera

…—atalhou Roque da Cunha—Espera-lhe pela volta. O duque está sem dinheiro e sem gente. Se não fosse o judeu Jeronymo Dias, não haveria fôlego dinheiroso que lhe desse vinte cruzados pelas lettras de cambio.



Esta replica era tristemente verdadeira. Quando D. João IV necessitou comprar em Amsterdão petrechos de guerra, ninguem lhe quiz honrar a firma; por maneira que as lettras foram apregoadas na praça, para serem protestadas. N'esta conjunctura, o hebreu expulso, Jeronymo Dias da Costa, resgatou do opprobrio o nome do rei e talvez a honra da patria, pagando as lettras e abrindo os seus thesouros á causa da independencia da nação, que lhe queimava os parentes. E tão grandemente qualificou D. João IV este serviço, que despachou Jeronymo Dias com a patente de seu ajudante, honra que o successor na corôa confirmou em Alexandre e Alvaro Nunes da Costa, filhos do hebreu; mas, no seguinte reinado, D. João V não consentiu que o emprego se desse ao neto por ser judeu,

como se seu pae e avós fossem christãos

, diz com ironica elegancia D. Luiz da Cunha.

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  Carta ao principe D. José.





Domingos Leite não redarguia triumphantemente aos argumentos de Roque, senão recorrendo-se dos factos mais eloquentes que as hypotheses.



Todavia, o animo abatido e desvigorisado para contendas politicas esquivava-se a disputações.



Em horas de desalento, a só no seu retiro, escrevia cartas ao marquez de Gouvêa, todas alheias da guerra travada entre as duas nações no mais alto ponto de encarniçamento. Eram lastimas de pae, por onde se transluzia a esperança de apiedar com ellas D. João IV. Taes cartas ou não chegaram ao conhecimento do mordomo-mór, ou o estadista meticuloso as inutilisou, por entender quanto seria malogrado o intento com el-rei. O marquez espiava os passos surdos de Antonio Cavide, e usava traças de lhe explorar o recesso da alma, durante o postre de um jantar bem lardeado de taças. Se o fidalgo farejára um segredo, cuja revelação iria angustiar o desterrado, nobre e caritativo era o silencio; e boa prova de amisade seria têl-o afastado do reino por modo que ignorasse sua deshonra, e o derradeiro golpe lhe não fosse vibrado por mão de um amigo.



Em frustradas esperanças de perdão ou sequer de resposta, ás suas cartas, passaram tres acerbos mezes na vida erma e desconfortada do pae de Angela.



Em começo do mez de abril de 1647, appareceu em Madrid um portuguez, foragido ao santo officio; e, sabendo acaso que Domingos Leite Pereira estava ali homisiado e pobre, bem que de leve se conhecessem, procurou-o para lhe offerecer quinhão da sua abundancia.



Francisco Mendes Nobre, que assim se chamava o christão-novo,—e então orçava por vinte e cinco annos—conhecia de vista Maria Isabel; e, como residisse perto do Salvador, muitas vezes vira a menina com sua mãe.



Consolação immensa para o saudoso pae ir ali um enviado da Providencia fallar-lhe de sua filha, da sua bellesa, dos anneis dos seus cabellos, da côr dos seus mantos, da graça do seu andar, e até da pallidez das facesinhas, onde parece que as lagrimas haviam arado o frescor da puericia!



Domingos Leite chorou nos braços d'este quasi desconhecido que de sobresalto lhe senhoreára o coração.



E Francisco Mendes, captivo da expansão de Domingos Leite, animou-o a ir secretamente a Portugal buscar a filha, facilitando-lhe recursos abundantes para a empresa, e dinheiro em Madrid para subsistencia de ambos, a não querer Domingos Leite acompanhal-o para Hollanda. Alem d'isso, deu-lhe duas chaves de dois predios em Lisboa, dizendo-lhe:



–Tem vm.

ce

 esta chave que é da minha casa na rua dos Vinagreiros, e est'outra da casa em que eu morava na rua das Olarias.

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  Em

Nota

 que hade ser posta como confirmação d'estas miudezas verá o leitor que não tem rasão para se maravilhar da omissão dos historiadores, salvo se lhe não é desconhecido um opusculo de fr. Francisco Brandão, chronista-mór do reino, opusculo publicado anonymamente em 1647, com este titulo:

Relação do assassinio intentado por Castella contra a Magestade d'el-rei D. João IV, nosso Senhor, e impedido miraculosamente

.



 Sirva-se da casa que melhor lhe quadre, ou de ambas, para as suas sortidas nocturnas. Se vir que os quadrilheiros o suspeitam em uma, vá esconder-se na outra: isto é no caso de que o santo-officio as não haja sequestrado; mas presumo que não, por que eu, apenas soube que um meu parente remoto foi preso, escapuli-me com o melhor e mais portatil dos meus haveres, comprando muito cara a passagem nas fronteiras ao conde de S. Lourenço, que é um honrado christão velho, desde que o hebreu Lafeta conquistou foros de christão mais velho que o proprio Christo. (

Nota 21.ª

)



O israelita, cuidando que preparava dias alegres e resignados ao seu amigo, despenhava-o da esperança na ultima paragem da perdição.



Participou Domingos Leite a Roque da Cunha o seu designio.



–O diabo arma-as!—contraveio Roque—Não vás, doido! Tu não sabes onde te vaes metter… Olha que em Lisboa já se sabe que és cavalleiro de Christo em Hespanha, e que os ministros de Filippe IV são teus amigos.



–Mal os conheço…



–Porque foges d'elles, ingrato! e foges d'elles porque a tua perdição te chama a Portugal.



–O que Deus quizer. Não me despersuades. Vou buscar minha filha. Se me prenderem, se me matarem, é-me indifferente acabar de um golpe ou agonisar n'esta arrastada tortura da saudade. Um favor te peço.



–Que vá comtigo? Nego-me. Matei um homem, por que a tua honra m'o exigiu; deixar-me agora matar, porque és um fraco, um piegas, que não póde viver sem a filha, isso é que não assigno.



–Espera, homem, que eu ainda te não disse o que pretendia—replicou bem humorado Domingos Leite.



–Dize lá, então.



–Quero que obtenhas uma ordem para que o marquez de Molinguen, governador das armas em Badajoz, me dê passo franco para Portugal.



–Isso te arranjo eu. E dinheiro, queres?



–Não. Achei aqui um portuguez que me soccorreu, um christão-novo.



–E despresas os soccorros dos christãos-velhos! Ora queira Deus que o tal judeu te não leve ao calvario como fizeram ao seu rei. Como se chama elle?



–Desculpa-me: pediu-me segredo da sua passagem por Castella.



–E tu, Domingos Leite Pereira, tens segredos para Roque da Cunha?



–E para meu pae que me pedisse o nome de um homem que confia tanto nos dominicos de Lisboa como nos de Madrid. Os segredos da minha deshonra, revelei-t'os; os da consciencia alheia não devo, nem posso.



–Nem eu quero sabel-os. Foi mera curiosidade que me levou a perguntar-te o nome do teu banqueiro hebreu. Leva-te grande onzena?



–Não. O juro das esmolas recebe-se no ceu.



–A pagal-os lá, todas as burras judaicas da Hollanda vazaria eu a juro de 200 por cento ao mez!—volveu cascalhando Roque, e accrescentou:—Quando partes?



–Logo que me obtenhas a ordem para o general.



–Vou tratar d'isso. Entretanto, pensa, Domingos Leite! Que plano levas?



–Por emquanto, nenhum.



–Raptas a pequena, e foges?



–Não: se poder convencerei Maria Isabel a deixar-m'a.



–Se o conseguires, serás feliz; mas duvido que a mãe te dê a pequena. Se tua mulher quizer acompanhar-te, vem?



–Não.



–Bom será isso; que, se a trazes, depois que a devassa esclareceu a morte do padre, tão infamada está ella em Portugal como em Hespanha.



–Sei o que devo á minha dignidade, Roque. O rubor das minhas faces não hade aquecer a dos meus amigos.



–É o que todos desejamos. Vou em teu serviço. O mais tardar ámanhã, terás a ordem do ministro valido D. Luiz de Haro.



XV

Na noite de 10 de abril de 1647, por volta das onze horas, chegou Domingos Leite aos arrabaldes de Lisboa, os quaes, do lado da Senhora da Graça, eram povoados de quintas, cujas casas, debruçadas pelos outeiros da serra de Almofala, o luar froixo d'aquella noite amarellecia tristemente.



Ahi descavalgou Domingos Leite, despediu o arrieiro que o conduzira desde Moira, e esperou o repontar da manhã, hora em que as trinta e oito portas de Lisboa se franqueavam.



Com a gualteira do ferragoulo encapuzada, entrou de involta nas récovas das vitualhas, e desceu, estugando o passo, pela ingreme calçada da senhora da Graça, metteu por beccos ainda desertos, e parou na rua dos Vinagreiros. Abriu a porta, depois de examinar a numeração da casa, e fechou-se por dentro, com a certeza de que ninguem o vira. Subiu tateando no escuro das escadas até ao quinto andar, que sobranceava os telhados visinhos; abriu as janellas, respirou com offegante prazer o ar do Tejo, que, áquella hora matinal, emquanto as adufas não resfolegavam a peste interior das casas, era saudavelmente respiravel. Entre as setenta e duas torres de Igrejas procurou a de S. Thomé, porque d'ali perto estava a Portaria do Salvador, e nesse sitio lampejava aos primeiros raios do sol um zimborio que era o da caza onde áquella hora devia estar dormindo a sua Angela. A manhã era d'abril, o ceo azul, o Tejo formoso; n'aquelle ar da patria resoavam-lhe os cantares que só percebem almas volvidas do desterro. Estes jubilos eram-lhe revesados de tristezas amarissimas, ao lembrar-se que a tão donairosa e poetica Lisboa lhe seria apenas uma paragem de horas com perigo da sua liberdade; porém, o anhelante desejo de ver a filha, o evadir-se com ella, e a solidão do proscripto dulcificada pela convivencia da creança, davam-lhe alento e alternativas de exultação.

 



Previra Domingos Leite que na casa de Francisco Mendes Nobre, com toda a certeza, não moravam fadas lareiras que lhe cosinhassem o jantar. Esta racional hypothese, não vulgar nos personagens das novellas, preveniu-o fora de portas, indusindo-o a comprar dois pães saloios, com que substituiu frugal e alegremente os dois repastos do dia. E, como as suas horas eram muitas e vagarosas, examinou os repartimentos da casa do seu recente amigo e bemfeitor, maravilhando-se da belleza dos adornos, do aroma feminil que recendia das alfaias, e disposição graciosa dos objectos, posto que se estivesse em tudo revelando um abandono subito e desordenado. Deprehendêra Domingos Leite que d'aquelle recinto fugira ao mesmo tempo a timida amante do christão novo, e essa devia ser a formosa mulher que elle, um momento, vira em Madrid, quando se despedira de Francisco Mendes.



Assim que escureceu, e antes que o luar apontasse, Domingos Leite sahiu. As noites da Lisboa d'aquelle tempo eram apenas alumiadas pelas lampadas dos oratorios vazados entre as adufas. Os quadrilheiros rondavam em magotes, receosos dos turbulentos fidalgos cujas delicias eram investir com elles e soval-os, se os pilhavam repartidos. Facil, por tanto, foi a Domingos Leite entrever de longe os vultos suspeitos, e furtar-se a seguro, por bêccos conhecidos, até se avisinhar da Portaria do Salvador.



Quando alli chegou, todas as janellas e portas de sua caza estavam fechadas. Nos trez andares, e ao travez das trinta janellas, não translusia claridade de luz; mas, por entre os resquicios de um frestão, ao rez da rua, no quarto dos criados, viu Domingos Leite que havia luz, e a espaços ouviu o ruido de passos.



Temendo que os criados já fossem outros, hesitou em dar signal; mas, porque a noite se adiantasse, e o medo de ser conhecido pelos transeuntes o obrigasse a fugir por vêzes da visinhagem da casa, resolveu bater no postigo e proferir o nome do escudeiro, que o servia desde que elle entrára no paço da duqueza de Mantua, na qualidade de môço da capella.



–Bernardo!—murmurou Domingos Leite tocando subtilmente no postigo.



–Quem está ahi?—acudiu alvorotado o velho escudeiro, afigurando-se-lhe a vóz do amo.



–Eu: não me conheces? Abre depressa: mas não faças rumor—disse elle collando os labios ao frestão.



O criado abriu o postigo, reconheceu o amo e exclamou:



–Nossa Senhora da Graça! é vossa mercê, sr. Domingos Leite?!



–Sou… abre-me a porta; mas que não se ouça lá em cima.



–Aqui estou eu sosinho e mais ninguem—murmurou Bernardo.



–O que? e minha filha? e… tua ama?—exclamou Domingos Leite conturbado.



–Eu vou abrir, eu vou abrir.



Recolhido ao quarto do escudeiro, que o abraçava pelos joelhos, perguntou:



–Onde está minha mulher?



–Hade haver quinze dias que sahiu de caza.



–Para onde?



–Não sei dizer a vossa mercê.



–Como não sabes?! iria para Hespanha?



–Não, senhor. Está em Lisboa; mas não sei onde está. Tudo que havia em casa, ficou como estava. A senhora levou tão somente dois bahús com vestidos seus e da menina. Despediu os criados que eramos tres; e fiquei eu só para ter conta na casa; levou uma criada, e a preta que creou a menina, e despediu as outras. Deixou-me dinheiro para um mez, e disse-me que, no mez que vem, cá mandaria entregar-me egual mezada á que me deixou. Eu desconfiei que a minha ama e menina teriam ido recolher-se em algum convento; mas quero cuidar que, se fosse isso, a senhora m'o diria para que eu podesse saber d'ella e da minha ama pequena, que tantas vezes chorou aqui n'este quarto por vossa mercê…



–Viste-a sahir de casa?—atalhou Domingos Leite.



–Não, meu senhor. Sahiram tão de madrugada que eu apenas dei tento da sahida ouvindo o tropel dos machos da liteira.



–Da liteira da casa?



–Não, senhor. Logo que vossa mercê sahiu de Lisboa, d'ali a dias, minha ama mandou-me vender os machos, o cavallo, a liteira, a cadeirinha, e tudo mais.



–Quem vinha a esta casa depois que eu me retirei?—perguntou mais tranquillo Domingos Leite, abraçando, contra a opinião do criado, a hypothese do convento.



–Apenas aqui entrou trez vezes…



–Quem?



–O sr. Antonio de Cavide…



–Oh!—exclamou o marido de Maria Isabel, arregaçando as palpebras, como se os olhos tumidos de terror ou ira não coubessem nas orbitas—Que dizes tu? Antonio Cavide? o secretario d'el-rei? conhecel-o bem?



–Se conheço, senhor!… e mais eu nunca o vi aqui entrar senão ao fim da tarde, entre lusco-fusco…



–Dize-me o que sabes…—clamou desabridamente Domingos Leite, batendo no hombro ao amedrontado escudeiro.



–Não sei mais nada, meu amo… Ah!.. outra coisa… depois que o Cavide aqui veio, as criadas disseram-me que a menina era açafata do paço…



–O que? açafata!?.



–Sim, meu senhor, e por signal todos começamos a tratar a menina por

senhoria

 e

dom

, porque a mãe assim o ordenara ás criadas…



–Que mais, Bernardo, que mais?—soluçava em violento arquejar Domingos Leite, com os pulsos fincados nas fontes e os olhos espavoridos na cara atribulada do criado.



–Nada mais sei.



Quedou-se alguns minutos em silencioso anceio; e de subito disse ao criado:



–Que ninguem saiba que estou em Lisboa…



–Ó meu amo!—volveu Bernardo—permitta Deus que a morte me colha, se alguem o souber de mim…



–Fecha as portas, que eu vou sahir; mas não durmas, que eu talvez tenha de voltar aqui esta noute. Vai ao meu quarto, e…



–Não tenho as chaves do quarto de vossa mercê.



–Arromba a porta e traze de lá os meus pistoletes para aqui; se eu voltar esta noite, dar-m'os-hás pelo postigo, logo que eu te der signal, e te chamar.



–Onde vai o meu amo!… pelas chagas de Christo, pense no que vai fazer…—rogou o velho de mãos erguidas.



Domingos Leite encarou-o de ruim aspecto, e interrogou:



–Que cuidas tu que eu vou fazer?! Então sabes onde está essa mulher? Dize, Bernardo! Ordeno-te que m'o digas!..



–O Senhor dos Paços da Graça me tolha esta lingua se eu sei onde está minha ama.



Domingos Leite sahiu em direitura ao

Bairro da Marinha

, que assim chamavam á parte da cidade convisinha do Tejo. Ahi, contiguo ao convento dos

hybernios

 ou dominicanos irlandezes, era o palacio do marquez de Gouvêa, somente habitado durante o inverno.



Soavam onze horas no relogio do paço da Ribeira, quando Domingos Leite aldravava no portão do mordomo-mór, com o desassombro do seu tempo de secretario. Fallou o porteiro pelo postigo, e disse que o sr. marquez estava na cama. Instou Domingos Leite por lhe fallar, dando-se a conhecer ao pavido porteiro, que levou a noticia ao fidalgo.



Ergueu-se o marquez sobresaltado, e foi receber Domingos Leite, ordenando ao porteiro que escondesse dos mais criados a vinda d'aquelle infeliz a Lisboa.



–Vossemecê aqui?!—exclamou o mordomo-mór.



–É verdade—respondeu Domingos Leite com semblante em apparencia socegado—venho perguntar a V. Ex.ª se me sabe dizer onde está Maria Isabel.



O marquez olhou-o compassivamente, deteve-se silencioso, apoiou a fronte entre os dedos entrelaçados, deu um gemido de sincera magua, e murmurou:



–Fuja, desgraçado; saia de Lisboa… A que veio aqui?



–Buscar minha filha. Não disse eu tantas vezes em minhas cartas a V. Ex.ª que morria de saudades d'ella? Venho buscal-a; mas, não a achando nem a mãe na casa onde ficáram, pergunto a V. Ex.ª onde estão.



Apoz longo silencio do interrogado e rapida mutação no aspecto de Domingos Leite, o marquez, dados alguns passeios na sala, perguntou:



–Contenta-se com levar sua filha, sr. Leite?



–É minha filha unicamente que eu quero levar.

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