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O Regicida

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XVII

Aos primeiros assomos do dia seguinte, a casa de Domingos Leite e a de Francisco Mendes Nobre, eram invadidas pela justiça dos corregedores de dois bairros. A da rua dos Vinagreiros foi arrombada, e a outra exposta á busca pelo escudeiro. Bernardo, como gaguejasse nas respostas, foi preso, conduzido, e posto a tractos. O velho, apenas as puas da roda compressas a torno lhe deslocaram os ossos dos braços, confessou que Domingos Leite, ás duas horas da noite passada, se havia refugiado em uma casa da rua das Olarias, pertencente a Francisco Mendes Nobre. A horda dos quadrilheiros derrubou a porta, bateu todos os cantos, e não encontrou vestigios de ali ter estado alguem recentemente; mas um visinho tresnoitado depoz que, por volta das tres e meia da manhã, havia dado tento de estropear de cavallo, depois que a porta da rua se fechára. Pero Fernandes Monteiro, corregedor do crime da côrte, alvitrou que Domingos Leite devia ter partido para Guimarães, sua terra natal.

Incontinenti se despediram postilhões para o Minho.

Fr. Francisco Brandão é o unico, e mais coevo e esclarecido narrador que nos relata estes passos: …Tres vezes veio o réo sobredicto (Domingos Leite) a este reino, ainda que da primeira não consta que fosse com o mesmo intento. Teve-se noticia da sua entrada n'aquella occasião primeira, e foi tal a desgraça sua que com apertadas dilligencias em Lisboa e Guimaraens se não pôde descobrir nem aprisionar; que a ser assi é veresimil que desculpára as persumpçoens do passado e não incorrêra etc.9

Emquanto estas diligencias frustradas se cumpriam, D. João IV prevenia Antonio Cavide que era forçoso, logo que Domingos Leite estivesse em ferros, transferir Maria Isabel e a filha, com o maximo segredo, para mosteiro muito afastado. Receava o astuto monarcha as declarações escandalosas do preso, as quaes, desmentidas pela clausura da mulher, lhe redobrariam a penalidade, aggravando o crime de homicidio o aleive assacado á pessoa sacratissima do rei e á innocencia da esposa.

Baldaram-se as prevenções. Duas semanas passadas, a espionagem de Antonio Cavide em Madrid assegurou-o que Domingos Leite ali estava, dado que vivesse mais retirado que da primeira fuga. Maria Isabel recobrou-se dos seus pavores. Cavide folgou do bom successo do negocio sem effusões sanguinarias, o marquez estudava traças de apiedar o rei, e o rei, com grande magua da ciosa Luisa de Gusmão, raras horas passava fóra da tapada de Alcantara.

No entanto, o proscripto, reconcentrado com a sua vergonha, cujo pungir sobre-excedia as angustias da saudade, laborava no cerebro uma idéa de vingança, pela qual elle daria de bom grado a vida, que lhe era cruz atrocissima.

Confidenciou o seu pensamento de matar D. João IV, ao hebreu Francisco Mendes. Este discreto moço oppugnou-lhe o desvairado intento com argumentos e supplicas, instando-o a que o seguisse para Hollanda, e lá pediriam ao tempo o balsamo da chaga, e a vingança do remorso nas consciencias do rei e da collareja real.

Rebelde á rasão e aos rogos, Domingos Leite viu partir o amigo para Amsterdão, quando o medo da inquisição de Hespanha o forçou. Era immensa a tristeza do christão-novo, culpando-se de haver sido elle o propulsor da ida de Leite Pereira a Lisboa, e dos horrendos effeitos que se lhe seguissem.

Roque da Cunha não podia ser estranho á desventura do seu amigo, já por que Domingos lh'a referira, já porque os faccionarios de Filippe IV em Portugal a transmittiram para lá com o intento de aviltar o monarcha, violador adultero da honra dos seus mais serviçaes acclamadores.

Roque era o portador das lastimas de sua mãe e dos fidalgos ao desgraçado, que mais se enfurecia quando o deploravam. A primeira vez que o assassino de Pedro Barbosa e padre Luiz da Silveira o ouviu rugir ameaças de morte a D. João IV, atirou o sombreiro ao tecto, e bradou:

–Viva Deus! que afinal topei um homem! Quantas vezes, Domingos, quantas vezes eu tenho dito cá muito commigo: «Se Maria Isabel fosse minha mulher, o duque de Bragança, que me deshonrou, havia de morrer tres vezes ás minhas mãos, visto que o padre Luiz morreu uma, não me tendo feito mal nenhum! A mim, na verdade, assombrava-me que este nobre desejo de vingança te não houvesse passado ardente pela alma como um raio da justiça divina! Ainda hontem D. Luiz de Alencastre, irmão do marquez de Porto Seguro, me disse: «E que faz esse brioso Domingos Leite que não espeta dous pelouros no peito do real bandalho que lhe paga os serviços, tomando-lhe a mulher como quem compra com quatro sequins uma fregona do bêcco da Madragôa! Que faz esse homem de honrados figados que matou um padre, pela innocente rasão de ter amado uma mulher primeiro do que elle!» E esta, meu querido amigo, é a linguagem de Diogo Soares, do conde de Figueiró, de Francisco Leitão, e até… queres que te diga tudo? el-rei Filippe IV, que tem sido o exemplo dos reis continentes, quando tal soube, disse: «É bem feito que o mateiro de Villa Viçosa faça os seus vassallos veados, já que alguns d'elles entenderam que o melhor rei seria o mais destro e certeiro matador de porcos-espinhos. É bem feito que Domingos Leite receba alvará de Cornelio tacito para dignamente escrever os Fastos do seu real amo!…» Aqui tens ouro fio o pezo que está fazendo na opinião de Castella o teu infortunio. Ora imagina agora, amigo meu, com que jubilo eu não direi ámanhã a D. Luiz de Alencastre: «Pode v. ex.ª dizer a el-rei nosso Senhor que Domingos Leite hade vingar-se de modo que a posteridade o aponte aos reis devassos como aponta o punhal de Bruto aos tyrannos de Roma!»

–Melhor é que não digas nada,—observou glacialmente Domingos Leite—Eu tanto despreso as censuras como os applausos. Se eu matar D. João IV, não me hei de glorificar com os gabos nem descorar na presença dos verdugos…

–Dos verdugos!—acudiu Roque—Se te expozesses ao alcance da corda ou do cutello, serias honrado, mas parvo. Se queres vingança com gloria e reputação de sensato, é mister que o homem morra, e que tu fiques a ouvir-lhe gargantear o de profundis. Alem de que, se a tua heroica idéa fermentar, eu heide ser ouvido, e sócio da aventura…

–Não quero cumplices—disse Domingos Leite.

–Nem amigos? Dize isso aos outros: não o digas a Roque da Cunha, réo de homicidio, na pessoa do muito reverendo thesoureiro de S. Mamede, que Deus conserve á porta inferi, esperando a alma de cantaro de D. João de Bragança. Amigo,—proseguiu, abraçando-o, e recuando o peito para lhe vêr de fito o rosto—Se queres só para ti a gloria de matar o amante de tua mulher, justo é que a tenhas; não serei eu que a dispute á coragem e ao pundonor da tua justiça; porem, quando essa conjunctura venha a realisar-se, Roque da Cunha hade estar á tua beira; por modo, que se a desaventura te fizer cambapé, ambos nós tombemos ao mesmo abysmo. Quem te falla assim, ou hade ser teu cumplice, ou teu inimigo. Escolhe.

–Sabes o que eu escolheria, se me fosse permittido escolher? A morte; o adormecer, e não acordar; o esquecer-me subitamente d'esta minha execravel situação.

–Temos sesão de fraquesa? Vá lá! Os leões tambem tremem suas maleitas. Não me assusta esse desalento… Ámanhã, quando eu aqui voltar á tua charneca, heide achar essa alma remoçada, e o plano feito. Medita, que eu tambem vou escogitar o meu traçado. Espero que o meu seja o mais acceitavel, porque calculo com animo frio, como os estrategicos que escrevem no quartel da saude a arte da guerra. Domingos Leite Pereira, ouve lá o que eu te digo: Tens nas tuas mãos o destino de Portugal! E serás um dos primeiros da tua patria, se o quizeres ser.

Domingos Leite sorriu-se motejando o enthusiasmo prophetico d'aquelle que ás vezes se lhe pintava infernalmente necessario á sua existencia.

N'aquella noite infinita, a ira, a paixão, fora-lhe exulcerada pelas zombeteiras declamações de Roque da Cunha. A publicidade do seu vexame, e a mofa com que o apodavam de transigente no opprobrio, era cauterio que lhe afogueava as dores. Instantes de desafogo tinha apenas os que a phantasia sinistra lhe pintava, se diante d'ella via escabujar D. João IV, nas vascas da morte como outro qualquer homem. Ponderando no que era e seria sempre sua vida,—engolphando-se na treva que todos os passos lhe negrejava pelo futuro alem,—pareceu-lhe que matar o rei, e deixar-se matar sem soltar gemido de covarde angustia, seria a mais brilhante e redemptora solução de sua desgraça.

Aclarava o dia seguinte, e já Roque da Cunha batia á porta da casa campestre de Domingos Leite.

Radiou intima alegria no aspeito do marido de Maria Izabel. Um homem bom, um consolador christão, ser-lhe-hia repugnante, depois d'aquella insomnia de febril raiva e espectaculos fantasticos de sangue e patibulos. O unico homem competente á sua desesperação era Roque. Abraçou-o com arrebatada ternura, e exclamou:

–Heide matal-o!

–Isso sabia eu…—disse o outro friamente.—Resta saber como.

–Pensaste?

–A noite toda. São cinco horas e meia. Bem sabes que é meu costume levantar-me ás dez, quando durmo o somno do justo. Não dormi nada. Estive com Diogo Soares até ás onze, com o conde de Figueiró até á meia noite, com D. Luiz de Haro até á uma, com meu padrasto até ás duas, e d'ahi em diante commigo só, e agora comtigo para te dizer o que vais ouvir…

–Toda essa gente—interrompeu Domingos Leite—está, por tanto, no segredo dos meus projectos?…

 

–Assim como estava no segredo das tuas desventuras.

–Vamos lá, dize, que eu já me não embaraço com pequenas miserias. Que vens annunciar-me? que plano trazes?

–Plano de grande artifice. Não é meu: dou o pai á creança: é de Diogo Soares. O duque de Bragança não póde ser morto face a face, nem dentro do paço, nem na rua, nem nas passagens que elle costuma fazer de um palacio para outro, com grande escolta. Quanto elle é covarde sabêm'ol-o nós, desde que inventámos n'elle um rei legitimo; e, depois que a vida lhe esteve a pique das espadas do conde de Armamar e do marquez de Villa Real, hade ter bom olho quem o vir sósinho ao alcance de um tiro, ou quem o descobrir a dez leguas de distancia de um arraial. Covarde como todos os infames, diz o conde de Figueiró. Observei eu ao ministro Soares que tu, homem de bizarra condição, não quererias matar o duque de cilada. Replicou Soares perguntando-me se o duque, empolgando-te a esposa, te matára o coração com a vizeira levantada, ou se te não ferira com a mais abominavel perfidia. Não tinha replica sensata a pergunta. Traição por traição. Seguiu-se discutir a traça da morte. Diogo Soares pediu meia hora de meditação. Apanhou a calva fronte entre as mãos, espremeu os miolos, e decretou o seguinte: A procissão de Corpus-Christi cahe este anno no dia 20 de junho. Iremos para Lisboa, sem perda de tempo. São hoje 24 de abril. Devemos partir d'aqui no fim do mez. Soares tem amigos seguros em Lisboa, que nos hãode alojar sem risco. Alugaremos casas em uma das ruas por onde a procissão hade passar. Estas casas hão ter outras e outras contiguas que tambem allugaremos. Abriremos communicações entre ellas, de modo que façam frente para duas ruas. Suppõe tu… proseguiu Roque traçando no papel a planta das casas … Aqui tens tu tres moradas de casas, vês?

–Sim.

–Imagina que estamos na extrema da parochia de S. Nicolau. A entrada d'este primeiro predio é por este bêcco. Sabes como se chama?

–Não.

–É o bêcco de Pero Ponce de Leão, que vai dar aqui ao Terreiro de traz da capella mór de S. Nicolau. Percebes?

–Percebo…

–Bem. Aqui n'este Terreiro principia a rua dos Torneiros. Ella aqui vai… Ora agora, este outro predio, como vês, fica no ultimo canto da rua dos Torneiros, e faz face para a Fancaria e bêco do Ourinol. Comprehendes?

–Sim.

–A outra casa, como vês, está no meio das duas.

–É claro.

–A procissão, ao recolher da Sé, vem aqui ter da rua dos Torneiros. Quando aqui passar, temos o rei pela frente; e, quando entrar na Fancaria, têmol-o de costas, não é assim?

–É.

–N'esta casa, que olha para a Tornearia, abrimos uma seteira; e aqui, no angulo que fronteia com a Fancaria, abrimos duas, uma no primeiro sobrado, e outra no segundo. A do primeiro andar, como vês, é que mais geito nos dá para a pontaria, porque a rua aqui é larga. Deu-se o tiro nas costas do rei, suppomos. Nada mais facil que o escapar-se a gente. Esta casa d'onde sahiu o tiro está trancada com alavancas. O povo naturalmente quer arrombar a casa, d'onde sahiu o estrondo, não é assim? Mas emquanto se arromba a porta, passamos nós para esta casa do meio, pela communicação interior que temos aberta, e d'aqui passamos a estas que estão no beco de Pero Ponce, mettemo-nos ao meio da multidão, vestidos de atafoneiros, vamos sahir ao postigo de Nossa Senhora da Graça, cavalgamos á noite fechada, e passem por lá muito bem. Que te parece?

–Tudo isso é de Diogo Soares?

–É.

–E as casas tambem?

–As casas!..

–Não digo as casas que pintaste; pergunto se são d'elle e estão devolutos os trez predios representados n'estas linhas.

–Entendo o gracejo. Queres dizer que não estão á nossa espera trez casas com taes condições…

–Quer-me parecer…

–Esse milagre pertence á alçada do dinheiro.

–Não contes commigo, que sou pobre.

–Conto eu…

–Com quem?

–Commigo.

–É el-rei de Hespanha que me dá recursos para me eu desaffrontar? Regeito-os.

–Não é el-rei de Hespanha: sou eu. Tudo que se gastar não será um terço do que te devo. Esqueces-te de que as tuas algibeiras em solteiro eram as minhas? Saldaremos contas depois. Approvas o plano ou tens outro?

–Tenho outro.

–Dize lá.

–Esperar el-rei, á entrada ou sahida da casa de Maria Isabel, e matal-o.

–E depois?

–Morrer, ou ás minhas proprias mãos, ou ás do carrasco.

–Acho isso bastante antigo;—volveu o outro motejando—parece-me grego ou romano; mas é tolo, consente á minha amisade que t'o escreva assim na fronte, é romanamente e gregamente tolo esse plano.

–O que tu quizeres. Devo dizer-te que assim mataria o padre, se elle houvesse sido amante de minha mulher.

–Onde mora tua mulher?

–Não sei.

–A quem o vais perguntar?

–Lá verei.

–Não verás nada; não acharás ninguem que t'o diga. Não se espera um rei á porta de uma amante. Os reis não entram nem sahem pelas portas, nem pelas janellas, nem pelas trapeiras das amantes. E o duque de Bragança, desde que D. Francisco Manuel lhe bateu no pateo da condessa de Villa Nova de Portimão (tu sabes que o pobre poeta está preso na Torre Velha ha quatro annos..) nunca mais andou n'estes cazos como homem em quem as pranchadas de uma espada não são brincadeira. A tal respeito, vem de molde informar-te, segundo as informações que teve Diogo Soares, que a sr.ª Maria Isabel não recebe o amante em sua casa; é recebida no palacio de Alcantara. Ninguem sabe quando; mas sabe-se por onde. O pavilhão e as colgaduras do seu camarim amoroso são as arvores da tapada; é o que os passarinhos lá cantam uns aos outros.

Domingos Leite fez um gesto de indignação, e disse:

–Isso é vil!..

–Que é vil?!

–A minha desgraça deve poder mais que o teu genio zombeteiro!

–Não zombo, Domingos!.. Tracto de obstruir com a irrisão as veredas por onde tu queres ir a uma desgraça infallivel. Matares o rei frente a frente!.. Sabes lá o que isso é?.. Corto a cabeça se fores capaz, se quer, de o encarar com um pensamento homicida!

–Essa!…—atalhou Domingos Leite.

–Bravos cavalleiros eram os fidalgos inimigos de D. João II; valentes e expostos á morte andavam os duques de Bragança e Vizeu; muitas occasioens se lhes ageitaram de matar o rei; e, chegado o lanço de o apunhalarem, retrahia-se-lhes o braço gelado da covardia que incute na alma o olhar de um homem que se chama rei—coisa fantastica mas terribilissima como a palavra diabo ás creanças que o temem. Poderoso de braço e coração era o duque de Vizeu, e ali se deixou cravejar de punhaladas de D. João II…

–Depois de agarrado pelas costas…—ajuntou Domingos Leite.

–Pelas costas são agarrados todos aquelles que os reis querem matar, Domingos Leite… (Nota 23.ª) Eu não percebo o que seja vingança, se a desaffronta custa a vida de quem se vinga. Morrer eu, sem provar o nectar dos deuses! morrer, fechar os olhos, não ver… não palpar a victima! Então, antes eu queria perdoar-lhes christãmente, e deixar-me acabar de paixão; que assim pelo menos havia de ter dois frades que espalhassem cá por baixo que eu estava no ceo; mas passar da vingança á forca! Domingos Leite, deixa-me abraçar-te, e dizer-te que tu não és parvo! Não deves dar a tua cabeça ao algoz como prova de que não podes viver sem o amor e a fidelidade de Maria Isabel Traga-malhas. Que mates o rei ou mates o ultimo criado das cavallariças reaes, isso que monta, se a tua questão não é a morte, é a vingança! E, depois, homem, ouve lá isto: Se tentares publicamente contra el-rei, ainda que nem de leve o firas, sabes que desde a masmorra até ao cadafalso hasde ser arrastado nas ruas; e que no Pelourinho te hão de decepar as mãos; e mutilado, com horrendissimas agonias, te hão de levar muito de vagar até á forca; e que tua filha hade ser herdeira da tua infamia até á terceira geração, privada dos bens, por que tudo que houver sido teu hade ser confiscado para a camara real?… Pensaste n'isto? viste a tua querida Angela entre ti e o rei e o carrasco?…

Domingos Leite passou vertiginosamennte a mão pela fronte, e murmurou:

–Jesus!…

Invocára o dulcissimo nome da divina caridade humanada, e… estava perdido! Quem sabe como lá soou nos juizos de Deus aquella invocação! Quem sabe a distancia que medeia entre o grito do homem e a serena magestade do seu Creador!

XVIII

Roque da Cunha negociava com os ministros de Filippe IV, em nome de Domingos Leite, a morte do uzurpador. Encomiando o caracter audaz do seu amigo, encarecia-o tambem como grato e affeiçoado ao rei de Hespanha; sendo que a facção planeada timbrava tanto de pessoal como de politica. E, do mesmo passo, entre-mostrava que o ex-escrivão do civel da côrte, pelo facto de haver sido tão liberalmente remunerado, creara necessidades de pompas, que el-rei de Castella poderia de antemão assegurar-lhe em Madrid, com promessas de maiores vantagens, restaurado Portugal.

Exposto isto ao valido por Francisco Leitão, o secretario das mercês nomeou Domingos Leite em uma commenda de Christo de lotação de duzentos cruzados e brindou o medianeiro com quatrocentos escudos e um officio na casa real. Quanto á partilha do espolio de Portugal, Diogo Soares, desde logo, magnanimamente nomeou seu secretario Domingos Leite, com meio vencimento, até se abancar na respectiva secretaria.

Roque apressurava n'este em meio a sahida para Lisboa recolhendo no seu alforge afivelado de moscovia de prata provimento de quartos e pelouros, e frascos de peçonha com que as balas deviam ser hervadas. Da parte de Filippe IV recebeu, por mão do desembargador Guedelha, Domingos Leite uma escopêta de primoroso artificio, ao mesmo tempo que lhe entregava o alvará da mercê da commenda de Santa Maria de Valdestillas, e carta de passagem e recommendação muito instante ao marquez de Mollinguen.

Em 6 de maio de 1647 estavam Domingos Leite e Roque da Cunha, na Ameixoeira, uma legua distante de Lisboa, em casa de Bento Rodrigues Taveira, amigo de Diogo Soares.

Haviam ambos cortado as barbas, antes de entrar em Portugal. Roque trajára-se com a simplicidade de mercador, e fallava uma linguagem estrangeirada com mescla de termos hollandezes.

Nos primeiros dias concorreu á Ameixoeira um negociante de sola, chamado Serges, de origem allemã, cujo avô, em tempo d'el-rei D. Manuel, se estabelecêra em Lisboa com privilegio de sapateiro. Serges era espião de Castella em Lisboa, onde, áquelle tempo, amealhava grossos haveres. Ao tempo que os regicidas sahiam de Madrid, era o sagaz mercador avisado por expresso afim de se avistar com elles em casa do fugitivo partidario dos Filippes, na Ameixoeira.

Apresentou-lhe Roque a planta das casas escolhidas por Diogo Soares para a emboscada. Devia ser Serges o alugador das casas, sob color de querer armazenar n'ellas os seus generos, logo que lhe chegasse de fóra a carga extraordinaria que encommendára, prevenindo-se para o consummo da grande guerra e para a contingencia dos bloqueios. Assim explicava o mercador aos inquilinos dos tres ou quatro prédios o interesse grande que punha em alugar as casas pelo dôbro da sua renda. Tão minucioso é n'esta relação o manuscripto consultado, que não lhe esqueceu dizer-nos ser o proprietario das casas Gomes Freire, fidalgo de Beja.

O plano de Diogo Soares foi levemente alterado, segundo deprehendemos da descripção particularisada do Ms. que reza assim: «A morada de casas que primeiro alugou Simão Serges está em um bêcco fronteiro á Capella mayor de S. Nicolau; e por um passadiço sahe a outro bêcco que desemboca na Tinturaria e cinge por aquella parte a Tornoaria; e além d'estas alugou mais tres moradas, umas que dizem para a Tinturaria, e outras que fazem a revolta da rua dos Torneiros, e as ultimas no recanto d'esta rua, que faz desegualdade a outro canto de Quebra-Costas.»

Conseguido o despejo dos quatro prédios, Domingos Leite e Roque da Cunha alojaram-se no Bêcco de Ponce de Leão, na noite de 20 de maio, sem encontro que lhes desfalcasse a coragem. Serges proveu-os dos viveres necessarios, ferramenta e tudo que os dispensasse de sahirem.

O trabalho interior de demolir e construir communicação de umas para outras casas era pezado para mãos mimosas e não callejadas na alavanca e picarêta. Como os planos dos sobrados eram desiguaes, ao romperem as paredes mestras tiveram de escadear a passagem d'uns aos outros, e cobrir os envazamentos com tal artificio que, se os procurassem na primeira casa, não se lobrigassem vestigios de passagem para a immediata. Quanto ao melhor local para abertura de setteiras, escolheram uma esquina que dominava toda a rua dos Torneiros e parte da Correaria, resolvendo descarregar sobre o rei pelas espaldas; e abriram outra, conforme o plano de Madrid, para, em conjunctura melhormente proporcionada, lhe atirarem de frente.

 

Estes preparativos estavam concluidos em 15 de junho, com poucas ferias de repouso, e nem o minimo ruido que motivasse a curiosidade dos visinhos.

Em algumas das noites decorridas, Domingos Leite quiz sahir com o disfarce de atafoneiro; mas Roque embargava-lhe o passo com reflexões de prudencial severidade. Figurara-se-lhe possivel vêr, acaso, a filha estremecida. Escutando o coração, o pae de Angela decifrava no vago terror que lá lh'o innoitecia que nunca mais havia de vêl-a! Enganava-se. Tinha de vêl-a um instante, e esse seria o derradeiro e unico.

Todavia, se Domingos Leite, na noite de 19 de junho, se confundisse na multidão que enchia o Terreiro do Paço, veria Maria Isabel e Angela, recostadas nos almadraques de uma liteira, a gozarem o espectaculo das columnas resplendentes de lampadarios de christal que era costume accenderem-se n'aquella praça, na do Rocio, e em todas as ruas percorridas pela procissão do Corpo de Deus. Depois, iria no rasto da litteira pela rua Aurea, pela dos Mercadores, dos Ourives da prata, dos Escudeiros, dos Odreiros, da Almada, das Portas de Santa Catharina, de S. José, com os seus trinta palacios estrellados de luminarias, e pela Calçada do Combro, onde o palacio do Monteiro-mór excedia os mais sumptuosos na bellesa da illuminação. Por todas estas ruas abobadadas de esteira, com figurações christãs e pagãs nos remates de cada cunhal, poderia Domingos Leite seguir a litteira de sua mulher, vêr a espaços o rosto alegre da filha, debruçada na portinhola perguntando á mãe a significação das estranhas figuras debuxadas nos guadalmecins e paineis que tapizavam as paredes e balcões das sacadas. E, depois, ahi por volta da meia noite, seguil-a-hia ao longo do bairro da Marinha, estrada de Alcantara, até que, apagado o clarão dos lustres que alumiavam, se acingisse á liteira e apunhalasse a esposa, e sobraçasse a filha, e a devorasse de beijos, e morresse n'aquelle extasis!

Mas, a essa hora de tumultuosa alegria, Domingos Leite, depois de ceia, encostou os cotovellos á meza, apoiou a barba entre as mãos, e disse a Roque da Cunha:

–Parece-me que foi Leonidas, na vespera da passagem das Thermopilas, que disse aos trezentos companheiros da sua funesta façanha, depois de jantar: «hoje aqui jantamos, e iremos cear ao reino de Plutão.» Onde iremos nós cear ámanhã?

–D'aqui trez leguas: á estalagem da Povoa de D. Martinho, onde ainda ha um velho Malaga, que os portuguezes bebem para matar a sêde do sangue de castelhanos—respondeu Roque sorrindo.

–Vamos marcar os nossos postos—volveu o commendador de S. Maria de Valdestillas.

–Estão marcados.

–Ainda não. Onde hasde tu estar quando eu atirar ao rei?

–Aonde? aqui.

–Não quero. Ao pé de mim, não. Se eu for agarrado, quero ver-me sósinho, face a face do algoz. Se o homem morrer, e eu me evadir, não disputarei o teu quinhão de gloria n'este feito. Dirás em Madrid, e eu confirmarei, que tu estavas ao meu lado, com o pé na beira do meu abysmo, com o pescoço exposto ao mesmo esparto, com as mãos debaixo do mesmo cutello. A hora é excellente para sahires d'aqui por entre o povo que enche as ruas. Os cavallos, a esta hora, devem estar na Ameixoeira, segundo combinamos com o marquez de Molinguen. Vai tu pernoitar á Ameixoeira, e ámanhã, por volta do meio dia, parte com elles e espera-me no Postigo da Senhora da Graça. Se eu lá não estiver antes das tres, foge, porque então estarei preso ou morto.

–Mas…

–Não questionemos. Isto é resolução feita e inalteravel. Tenho-te dito que não quero cumplices; e, se guardei para esta hora o declarar-t'o formalmente, foi por evitar contestações então, e agora muito mais, que é tarde para discutir. Vamos. A pé e sahir. Dá cá um abraço. Até ámanhã de tarde, ou… até… nunca mais. Viverei ou morrerei agradecido á tua dedicação. Ingrato e atrozmente egoista seria eu, se arriscasse a tua cabeça n'um desaggravo da minha honra. Se eu morrer, se me não vires mais, dize ao rei d'Hespanha que o alvará da commenda com que nobilitou minha resalva de assassino o desfiz em buchas para a escopêta com que me elle brindou. E adeus!

Roque da Cunha abraçou-o sem commoção sensivel. Para esta frieza concorria a crua rigidez de sua compleição e a esperança do bom exito da entrepreza. Se Domingos Leite lograsse penetrar-lhe nas cavernas do peito, veria lá dentro assomos de jubilo. Desde que o dia 20 de junho se aproximava, Roque meditava absôrto e pávido no trance do tiro, nos paroxismos do rei, no torvelinho do povo, na grita de milhares de vozes, no arrombarem-se as portas, na linha de alabardeiros cintando as ruas, na sua propria cara a delatar o crime, nos crimes impunes da sua proterva historia—em fim, na forca.

Se um homem n'estas condições ousaria prever que um historiographo portuguez, seculo e meio depois, escreveria d'elle: … cheio de confusão e honra!

Pois houve! O leitor verá que n'esta sua, tão sua e minha querida terra, temos historiadores que denominam a incestuosa mulher de Pedro II rainha prudentissima (veja o sr. conselheiro Antonio José Viale, na sua Historia) e Roque da Cunha homem cheio de confusão e honra. (Veja Roque Ferreira Lobo na sua Historia da acclamação de D. João IV.)

9Relação do assassinio intentado por Castella contra a Magestade d'el-rei D. João IV, nosso Senhor e impedido miraculosamente. Lisboa 1647.

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