Romancistas Essenciais - Joaquim Manuel de Macedo

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Capítulo X: A balada do rochedo

A hóspeda e o estudante deixaram então a gruta e, tomando o do jardim para vencer a altura do rochedo, viram a bela Moreninha em pé e voltada para o mar, com seus cabelos negros divididos em duas tranças que caíam pelas espáduas, e cantando com terna voz o seguinte:

I

Eu tenho quinze anos

E sou morena e linda!

Mas amo e não me amam

E tenho amor ainda.

E por tão triste amar,

Aqui venho chorar.

II

O riso de meus lábios

Há muito que murchou;

Aquele que eu adoro

Ah! Foi quem matou;

Ao riso, que morreu,

O pranto sucedeu.

III

O fogo de meus olhos

De todo se acabou,

Aquele que eu adoro

Foi quem o apagou:

Onde houve fogo tanto

Agora corre o pranto.

IV

A face cor de jambo

Enfim se descorou,

Aquele que eu adoro

Ah! Foi quem a desbotou:

A face tão rosada

De pranto está lavada!

V

O coração tão puro

Já sabe o que é amor,

Aquele que eu adoro

Ah! Só me dá rigor:

O coração no entanto

Desfaz o amor em pranto.

VI

Diurno aqui se mostra

Aquele que eu adoro;

E nunca ele me vê,

E sempre o vejo e choro;

Por paga a tal paixão

Só lágrimas me dão!

VII

Aquele que eu adoro

E qual rio que corre,

Sem ver a flor pendente

Que ti margem murcha e morre:

Eu sou u pobre flor

Que vou murchar de amor.

VIII

São horas de raiar

O sol dos olhos meus,

Mau sol! Queima a florzinha

Que adora os olhos seus:

Tempo é do sol raiar

E é tempo de chorar.

IX

Lá vem sua piroga

Cortando leve os mares,

Lá vem uma esperança

Que sempre dá pesares:

Lá vem o meu encanto,

Que sempre causa pranto.

X

Enfim abica a praia,

Enfim salta apressado.

Garboso como o cervo

Que salta alto valado:

Quando há de ele cá vir

Só pra me ver sorrir

?

XI

Lá corre em busca de aves

A selva que lhe é cara,

Ligeiro como a seta

Que do arco seu dispara:

Quando há de ele correr

Somente para me ver.

XII

Lá vem do feliz bosque

Cansado de caçar,

Qual beija-flor que cansa

De mil flores a beijar:

Quando há de ele, cansado,

Descansar a meu lado?

XIII

Lá entra para a gruta,

E cai na rude cama,

Qual flor de belas cores,

Que cai do pé na grama:

Quando há de nesse leito

Dormir junto a meu peito?

XIV

Lá súbito desperta,

E na piroga embarca,

Qual sol que, se ocultando,

O fim do dia marca:

Quando hei de este sol ver

Não mais desaparecer?

XV

Lá voa na piroga,

Que o rasto deixa aos mares,

Qual sonho que se esvai

E deixa após pesares:

Quando há de ele cá vir

Pra nunca mais fugir?...

XVI

Oh bárbaro! Tu partes

E nem sequer me olhaste?

Amor tão delicado

Em outra já achaste?

Oh bárbaro! responde,

Amor como este, aon

de?

XVII

Somente pra teus beijos

Te guardo a boca para;

Em que lábios tu podes

Achar maior doçura?...

Meus lábios, murchareis,

Seus beijos não tereis!

XVIII

Meu colo alevantado

Não vale teus abraços?...

Que colo há mais formoso,

Mais digno de teus braços?

ingrato! Morrerei...

E não te abraçarei.

XIX

Meus seios entonados

Não podem ter valia?

Desprezas as delícias

Que neles te of’recia?

Pois hão de os seios puros

Murcharem prematuros?

XX

Não sabes que me chamam

A bela do deserto?...

Empurras para longe

O bem que te está perto?...

Só pagas com rigor

As lágrimas de amor?...

XXI

Ingrato! Ingrato! foge...

E aqui não tornes mais,

Que, sempre que tornares,

Terás de ouvir meus ais:

E ouvir queixas de amor,

E ver pranto de dor...

XXII

E, se amanhã vieres,

Em pé na rocha dura

'Starei cantando aos ares

A mal paga ternura...

Cantando me ouviras,

Chorando me acharás!...

Capítulo XI: Travessuras de d. Carolina

Mas ela não pára: o movimento é a sua vida; esteve no jardim e em toda a parte; cantou sobre o rochedo e ei-la outra vez no jardim!

Infatigável, apenas suas faces se coraram com o rubor da agitação. Travessa menina!... Porém ela tempera todas as travessuras com tanta viveza, graça e espírito, que menos valera se não fizera o que faz. Não há um só, entre todos, de cuja alma não se tenham esvaído as idéias desfavoráveis que à primeira vista produzira o gênio inquieto de d. Carolina. O mesmo Augusto não pôde resistir à vivacidade da menina. Encontrando Leopoldo, disseram duas palavras sobre ela.

— Então, como a achas agora?... disse Leopoldo, apontando para a irmã de Filipe.

— Interessante, espirituosa e capaz de levar a glória ao mais destro casuísta. Olha, Fabrício vê-se doido com ela.

— Só isto?...

— Acho-a bonita.

— Nada mais?...

— Tem voz muito agradável.

— É tudo o que pensas?...

— Tem a boca mais engraçada que se pode imaginar.

— Só?...

— Só?...

— Que mais?

— É tão ligeira como um juramento de mulher.

— Dize tudo de uma vez.

— Pois que queres mais que eu diga?

— Que a amas!... Que dás o cavaco por ela.

— Amá-la? Não faltava mais nada! Amo-a como amo as outras.., isto sim.

— Pois meu amigo, todos nós estamos derrotados: o diabinho da menina nos tem posto o coração em retalhos. Se, de novo, se fizer a saúde que hoje fizemos, todos, à exceção de Felipe, pronunciarão a letra C.

— Também Fabrício?

— Ora! Esse está doente... perdido... doido enfim! E ela?

— Zomba de todos nós; cada cumprimento que lhe endereçamos paga ela com uma resposta que não tem troco e que nos racha de meio a meio. Tu ainda lhe não disseste nada?

— Coisas vãs... e palavras da tarifa.

— E ela?

— Palavras da tarifa... e coisas vãs.

— Tanto melhor para mim.

— Pois é opinião geral que ela te prefere a todos nós.

— E pior para ela, mas... adeus! O meu lindo par se levanta do banco de relva em que descansava, vou tomar-lhe o braço; tenho-me singularmente divertido: a bela senhora é filósofa! ... Faze idéia! Já leu Mary de Wollstonecraft e, como esta defende o direito das mulheres, agastou-se comigo, porque lhe pedi uma comenda para quando fosse ministra de Estado, e a patente de cirurgião de exército, no caso de chegar a ser general; mas, enfim, fez as pazes, pois lhe prometi que, apenas me formasse, trabalharia para encartar-me na Assembléia Provincial e lá, em lugar das maçadas de pontes, estradas e canais, promoveria a discussão de uma mensagem ao Governo Geral, em prol dos tais direitos das mulheres; além de que... Mas... tu bem vês que ela me está chamando; adeus!...

No entanto d. Carolina continuava a cativar todos os olhares e atenções; tinham notado, é verdade, que ela estivera alguns momentos recostada à efígie da Esperança, triste e pensativa. Fabrício jurava mesmo que a vira enxugar uma lágrima, mas logo depois, lhe desaparecera completamente a menor aparência de tristeza, tornou a brilhar o prazer em ebulição.

Todos tinham tido seu quinhão, maior ou menor, segundo os merecimentos de cada um, nas graças maliciosas da menina. Ninguém havia escapado: Fabrício era a vítima predileta, porque também fora ele o único que se atreveu a travar luta com ela.

Finalmente d. Carolina acabava de entrar outra vez no jardim, depois de ter cantado sua balada. De todos os lados soavam-lhe os parabéns, mas ela escapou a eles, correndo para junto de uma roseira toda corada por suas belas e rubras flores.

Fabrício, que ainda não estava suficientemente castigado e que, além disso, começava a gostar seu tantum da Moreninha, dirigiu-se com d. Joaninha para o lado em que ela se achava.

— É decididamente o que eu pensava, disse Fabrício, quando se viu ao pé de d. Carolina; e dirigindo-se a d. Joaninha: sim... sua bela prima ama as rosas, exclusivamente.

— Conforme as ocasiões e circunstâncias, respondeu a menina.

— Poderia eu merecer a honra de uma explicação? perguntou Fabrício.

Com toda a justiça e, continuou d. Carolina rindo-se, tanto mais que foi a V.S.a que me dirigi. Eu queria dizer que entre um beijo de frade ou um cravo defunto e uma rosa, não hesito em preferir a última.

Fabrício fingiu não entender a alusão e continuou:

— Todavia não é sempre bem pensada semelhante preferência; a rosa é como a beleza: encanta, mas espinha! V.S.a o sabe, não é assim?

— Perfeitamente, mas também não ignoro que a rosa só espinha quando se defende de alguma mão impertinente que vem perturbar a paz de que goza; V. S.a o sabe, não é assim?

— Oh! Então a sra. d. Carolina foi bem imprudente em quebrar o pé dessa rosa com que brinca, expondo assim seus delicados dedos: e bem cruel também em fazê-la murchar de inveja, tendo-a defronte de seu formoso semblante.

— Pela minha vida, meu caro senhor! Nunca vi pedir uma rosa com tanta graça: quer servir-se dela?

— Seria a mais apetecível glória...

— Pois aqui a tem... Querido primo, nada de ciúmes.

E Fabrício, recebendo o belo presente, em vez de olhar para a mão que o dava, atentava em êxtase o rosto moreno e o sorrir malicioso de d. Carolina. Ao momento de se encontrar a mão que dava e a que recebia, Fabrício sentiu que lhe apertavam os dedos; seu primeiro pensamento foi acreditar que era amado, mas logo se lhe apagou esse raio de vaidade, pois que ele retirou vivamente a mão, exclamando involuntariamente:

 

— Ai! Feri-me!...

Era que a travessa lhe havia apertado os dedos contra os espinhos da rosa. Mas a flor tinha caído na relva: Fabrício,já menos desconcertado, a levantou com presteza; e encarando a irmã de Filipe, disse-lhe em tom meio vingativo:

— Foi um combate sanguinolento, mas ganhei o prêmio da vitória!

— Pois feriu-se?... perguntou d. Carolina, chegando-se com fingido cuidado para ele.

— Nada foi, minha senhora: comprei uma rosa por algumas gotas de sangue... Valeu a pena.

— Maldita rosa! exclamou a Moreninha, teatralmente... Maldita rosa! Eu te amaldiçôo!

E dando um piparote na inocente flor, a desfolhou completamente: não ficou na mão de Fabrício mais que o verde cálice. D. Carolina correu para junto de sua digna avó, e o pobre estudante ficou desconcertado.

E esta! murmurou ele enfim.

— Foi muito bem-feito! disse d. Joaninha, cheia de zelos e dando-lhe um beliscão que o fez ir às nuvens.

— Perdão, minha senhora... seja pelo amor de Deus! exclamou Fabrício, que se via batido por todos os lados.

No entanto começava a declinar a tarde. Uma voz reuniu todas as senhoras e senhores em um só ponto; servia-se o café num belo caramanchão, mas como fosse ele pouco espaçoso para conter tão numerosa sociedade, aí só se abrigaram as senhoras, enquanto os homens se conservaram da parte de fora.

Escravas decentemente vestidas ofereciam chávenas de café fora do caramanchão e, apesar disso, d. Carolina se dirigiu com uma para Fabrício, que praticava com Augusto.

— Eu quero fazer as pazes, sr. Fabrício; vejo que deve estar muito agastado comigo e venho trazer-lhe uma chávena de café temperado pela minha mão.

Fabrício recuou um passo e colocou-se à ilharga de Augusto; ele desconfiava das tenções da menina, e sua primeira idéia foi esta: o café não tem açúcar.

Então começou entre os dois um duelo de cerimônias, que durou alguns instantes; finalmente, o homem teve de ceder à mulher, Fabrício ia receber a chávena, quando esta estremeceu no pires... D. Carolina, temendo que sobre ele se entornasse o café, recuou um pouco. Fabrício fez outro tanto, e a chávena, ainda mal tomada, tombou e o café derramou-se inopinadamente. Fabrício recuou ainda mais com vivacidade, mas encontrando a raiz de um chorão, que sombreava o caramanchão, perdeu o equilíbrio e caiu redondamente na relva.

Uma gargalhada geral aplaudiu o sucesso.

— Fabrício espichou-se completamente! exclamou Filipe.

O pobre estudante ergueu-se com ligeireza, mas, na verdade, corrido do que acabava de sobrevir-lhe; as risadas continuavam, as terríveis consolações o atormentavam, todas as senhoras tinham saído do caramanchão e riam-se, por sua vez, desapiedadamente. Fabrício daria muito para livrar-se dos apuros em que se achava, quando de repente soltou também a sua risada e exclamou:

— Vivam as calças de Augusto!

Todos olharam. Com efeito, Fabrício tinha encontrado um companheiro na desgraça. Augusto estava de calças brancas, e a maior porção do café entornado haviacaído nelas.

Capítulo XII: Meia hora embaixo da cama

Não tardou que Filipe, como bom amigo e hóspede, viesse em auxílio de Augusto. Em verdade que era impossível passar o resto da tarde e a noite inteira com aquela calça, manchada pelo café; e, portanto, os dois estudantes voaram à casa. Augusto, entrando no gabinete destinado aos homens, ia tratar de despir-se, quando foi por Filipe interrompido.

— Augusto, uma idéia feliz! Vai vestir-te no gabinete das moças.

— Mas que espécie de felicidade achas tu nisso?

— Ora! Pois tu deixas passar uma tão bela ocasião de te mirares no mesmo espelho em que elas se miram?... De te aproveitares das mil comodidades e das mil superfluidades que formigam no toucador de uma moça?... Vai!... Sou eu que to digo; ali acharás banhas e pomadas naturais de todos os países; óleos aromáticos essências de formosura e de todas as qualidades; águas cheirosas, pós vermelhos para as faces e para os lábios, baeta fina para esfregar o rosto e enrubescer as pálidas; escovas e escovinhas, flores murchas e outras viçosas...

— Basta, basta; eu vou, mas lembra-te que és tu quem me fazes ir e que o meu coração adivinha...

— Anda, que o teu coração sempre foi um pedaço d’asno.

E isto dizendo, Filipe empurrou Augusto para o gabinete das moças e se foi reunir ao rancho delas.

Ai do pobre Augusto!... Mal tinha acabado de tirar as calças e a camisa, que também se achava manchada, sentiu o rumor que faziam algumas pessoas que entravam na sala.

Augusto conheceu logo que eram moças, porque estes anjinhos, quando se ajuntam, fazem, conversando, matinada tal, que a um quarto de légua se deixam adivinhar; se é sediço e mesmo insólito compará-las a um bando de lindas maitacas, não há remédio senão dizer que muito se assemelham a uma orquestra de peritos instrumentistas, na hora da afinação.

Ora, o nosso estudante estava, por sua esdrúxula figura, incapaz de aparecer a pessoa alguma: em ceroulas e nu da cinta para cima, faria recuar de espanto, horror, vergonha e não sei que mais, ao belo povinho que acabava de entrar em casa e que, certamente, se assim o encontrasse, teria de cobrir o rosto com as mãos; e portanto, o pobre rapaz seguiu o primeiro pensamento que lhe veio à mente: ajuntou toda a roupa, enrolou-a, e com ela embaixo do braço escondeu-se atrás de uma linda cama que se achava no fundo do gabinete, cuidando que cedo se veria livre de tão intempestiva visita; mas, ainda outra vez, pobre estudante! Teve logo de agachar-se e espremer-se para baixo da cama, pois quatro moças entraram no quarto. E eram elas d. Joaninha, d. Quinquina, d. Clementina e uma outra por nome Gabriela, muito adocicada, muito espartilhada, muito estufada, e que seria tudo quanto tivesse vontade de ser, menos o que mais acreditava que era, isto é... bonita.

Depois que todas quatro se miraram, compuseram cabelos, enfeites e mil outras coisas que estavam muito em ordem, mas que as mãozinhas destas quatro demoiselles não puderam resistir ao prazer, muito habitual nas moças, de desarranjar para outra vez arranjar, foram, por mal dos pecados de Augusto, sentar-se da maneira seguinte: d. Clementina e d. Joaninha na cama, embaixo da qual estava ele; d. Quinquina de um lado, em uma cadeira; e d. Gabriela exatamente defronte do espelho, do qual não tirava os olhos, em outra cadeira que, apesar de ser de braços e larga, pequena era para lhe caber sem incômodo toda a coleção de saias, saiotes, vestidos de baixo e enorme variedade de enchimentos que lhe faziam de suplemento à natureza, que com d. Gabriela, segundo suas próprias camaradas, tinha sido um pouco mesquinha a certos respeitos.

Depois de respirarem um momento, as meninas, julgando-se sós, começaram a conversar livremente, enquanto Augusto, com sua roupa embaixo do braço, coberto de teias de aranha e suores frios, comprimia a respiração e conservava-se mudo e quedo, medroso de que o mais pequeno ruído o pudesse descobrir: para seu maior infortúnio, a barra da cama era incompleta e havia seguramente dois palmos e meio de altura descobertos por onde, se alguma das moças olhasse, seria ele impreterivelmente visto. A posição do estudante era penosa, certamente; por último saltou-lhe uma pulga á ponta do nariz, e por mais que o infeliz a soprasse, a teimosa continuou a chuchá-lo com a mais descarada impunidade.

— Antes mil vezes cinco sabatinas seguidas, em tempo de barracas no campo! ... dizia ele consigo.

Mas as moças falavam já há cinco minutos; façamos por colher algumas belezas, o que é na verdade um pouco difícil, pois segundo o antigo costume, falam todas quatro ao mesmo tempo. Todavia, alguma coisa se aproveitará.

— Que calor!... exclamou d. Gabriela, afetando no abanar de seu leque todo o donaire de uma espanhola; oh! não parece que estamos no mês de julho; mas, por minha vida, vale bem o incômodo que sofremos o regalo que têm tido nossos olhos.

— Bravo, d. Gabriela!... Então seus olhos...

— Têm visto muita coisa boa. Olhe, não é por falar, mas, por exemplo, há objeto mais interessante do que d. Luisa mostrar-se gorda, esbelta, bem feita?

— É um saco!

— E como é feia!...

— E horrenda!

— É um bicho!

— E não vimos a filha do capitão com sua dentadura postiça?... Agora não faz senão rir!...

— Coitadinha! Aperta tanto os olhos!

— Se ela pudesse arranjar também um postiço para o queixo!

— Ora, d. Clementina, não me obrigue a rir!...

— D. Joaninha, você reparou no vestido de chalim de d. Carlota?... Quanto a mim, está absolutamente fora da moda.

— Ainda que estivesse na moda, não há nada que nela assente bem.

— Ora... é um pau vestido!... Tem urna testa maior que a rampa do largo do Paço!...

— Um nariz com tal cavalete, que parece o morro do Corcovado!

— E a boca?... Ah! Ah! Ah!

— Parece que anda sempre pedindo boquinhas...

— E que língua ela tem!

— É uma víbora!

— Eu não sei por que as outras mulheres não hão de ser como nós, que não dizemos mal de nenhuma delas.

— E verdade, porque se eu quisesse falar...

— Diga sempre, d. Quinquina.

— Não... não quero. Mas, passando a outra coisa... D. Josefina aplaude com prazer a moda dos vestidos compridos!

— Ora... porque tem pernas de caniço de sacristão.

— Pernas finas também é moda, presentemente.

— Deus me livre!...acudiu d. Clementina; pelo menos para mim nunca deve ser, pois não posso emendar a natureza, que me deu pernas grossas.

— Não lhe fico atrás, juro-lhe eu! exclamou d. Quinquina. Nem eu! Nem eu! disseram as outras duas.

— Isso é bom de se dizer, tornou a primeira; mas, felizmente, podemos tirar as dúvidas.

— Como?

— Facilmente: vamos medir as nossas pernas.

Ouvindo tal proposição, o nosso estudante, apesar de se ver em apuros embaixo da cama, arregalou os olhos de maneira que lhe pareciam querer saltar das órbitas; porém, d. Gabriela, que não parecia estar consigo e que só por honra da firma dissera o seu ‘‘nem eu", veio deixá-lo com água na boca.

Havia de ser engraçado, disse ela, arregaçarmos agora os nossos vestidos!

— Que tinha isso?... acudiu d. Quinquina; não somos todas moças?... Dir-se-ia que não temos dormido juntas.

— E verdade, acrescentou d. Clementina e, além do que, não se veria demais senão quatro ou cinco saias por baixo do segundo vestido.

— E talvez algum saiote... vamos a isto!

— Não... não... disse, por sua vez, d. Joaninha.

— Pois por mim não era a dúvida, tornou d. Clementina, com ar de triunfo, recostando-se mole e voluptuosamente nas almofadas, e deixando escorregar de propósito uma das pernas para fora do leito, até tocar com o pé no chão, de modo que ficou à mostra até o joelho.

— Quem me dera já casar! ... suspirou ela.

Pobre Augusto! ... Não te chamarei eu feliz?... Ele vê a um palmo dos olhos a perna mais bem torneada que é possível imaginar!...Através da finíssima meia aparecia uma mistura de cor de leite com a cor-de-rosa e, rematando este interessante painel róseo, um pezinho que só se poderia medir a polegadas, apertado em um sapatinho de cetim, e que estava mesmo pedindo um... dez... cem... mil beijos; mas quem o pensaria? Não foram beijos o que desejou o estudante outorgado àquele precioso objeto: veio-lhe ao pensamento o prazer que sentiria dando-lhe uma dentada... Quase que já não se podia suster... já estava de boca aberta e para saltar... Porém, lembrando-se da exótica figura em que se via, meteu a roupa que tinha enrolada entre os dentes e, apertando-os com força procurava iludir a sua imaginação.

— Quem me dera já casar!... repetiu d. Clementina.

— Isto é fácil, disse d. Gabriela; principalmente se devemos dar crédito aos que tanto nos perseguem com finezas. Olhem, eu vejo-me doida!... Mais de vinte me atormentam! Querem saber o que me sucedeu ultimamente?... Eu confesso que me correspondo com cinco... isto é só para ver qual dos cinco quer casar primeiro; pois bem, ontem, uma preta que vende empadas e que se encarrega das minhas cartas recebeu das minhas mãos duas...

 

— Logo duas?...

— Ora, pois, apesar de todas as minhas explicações, a maldita estava de mona: mesmo dizendo-lhe eu dez vezes: a de lacre azul é a do sr. Joãozinho e a de verde é do sr. Juca, sabem o que fez?...trocou as cartas!

— E o resultado?...

— Ei-lo aqui, respondeu d. Gabriela, tirando um papel do seio; ao vir embarcar, e quando descia, a tal preta, com a destreza precisa, entregou-me este escrito do sr. Joãozinho: "Ingrata! ainda tremem minhas mãos, pegando no corpo de delito da tua perfïdia! Escreves a outro!? Compareces por tão horrível crime perante o júri do meu coração; e, bem que tenhas nesse tribunal a tua beleza por advogado, o meu ciúme e justo ressentimento, que são os juízes, te condenam às perpétuas galés do desprezo; e só te poderás livrar se apelares dessa sentença para o poder moderador de minha cega paixão."

— Bravo, d. Gabriela! O sr. Joãozinho é sem dúvida estudante de jurisprudência?

— Não, é doutor.

Bem mostra pelo bem que escreve.

— Mas eu sou bem tola! Conto tudo o que me sucede e ninguém me confia nada!

— Isso é razoável, disse d. Clementina; nós devemos pagar com gratidão a confiança de d. Gabriela. Eu começo declarando que estou comprometida com o sr. Filipe a deixar esta noite, embaixo da quarta roseira da rua do jardim, que vai direta ao caramanchão, um embrulhozinho com uma madeixa de meus cabelos.

Que asneira!... Por que lho não entrega ou não lho manda entregar?

— Ora... eu tenho muita vergonha...antes quero assim; até parece mais romântico.

— São caprichos de namorados! falou d. Quinquina; havia tempo para isso! Mas, enfim, de futilidades é que o amor se alimenta. Querem ver uma dessas? O meu predileto está de luto e por isso exige que eu vá á festa de... com uma fita preta no cabelo, em sinal de sentimento; exige ainda que eu não valse mais, que não tome sorvetes, para não constipar, que não dê dorninus tecum a moço nenhum que espirrar ao pé de mim, e que jamais me ria quando ele estiver sério; e a tudo isso julga ele ter direito, por ser tenente da Guarda Nacional! Pois, por isso mesmo, ando agora de fita branca no cabelo, valso todas as vezes que posso, tomo sorvetes até não poder mais, dou dominus tecum aos moços mesmo quando não espirram e na() posso ver o sr. tenente Gusmão sério sem soltar uma gargalhada.

— Olhem lá o diabinho da sonsa! murmurou consigo mesmo Augusto, embaixo da cama.

— E você, mana, não diz nada?... perguntou ainda a d. Joaninha.

— Eu?... O que hei de dizer? respondeu esta; digo que ainda não amo.

— E a única que ama deveras! pensou o estudante, a quem já doíam as cadeiras de tanto agachar-se.

— E o sr. Fabrício?... E o sr. Fabrício?... exclamaram as três.

— Pois bem, tornou d. Joaninha, é o único de quem gosto.

— Mas que temos nós hoje feito nesta ilha?... Que triunfo havemos conseguido?... Vaidade para o lado: moças bonitas, como somos, devemos ter conquistado alguns corações!

— Juro que estou completamente aturdida com os protestos de eterna paixão do sr. Leopoldo, disse d. Quinquina; mas é uma verdadeira desgraça ser hoje moda ouvir com paciência quanta frivolidade vem, não direi à cabeça, porque parece que os tolos como que não a têm, porém aos lábios de um desenxabido namorado. O tal sr. Leopoldo... não é graça, eu ainda não vi estudante mais desestudável!...

— Você, d. Joaninha, acudiu d. Clementina, tem-se regalado hoje com o incomparável Fabrício. Não lhe gabo o gosto... só as perninhas que ele tem!...

— Ora, respondeu aquela; ainda não tive tempo de lhe olhar para as pernas... mas também você parece que não se arrepia muito com a corcova do nariz de meu primo; confessemos, minha amiga, todas nós gostamos de ser conquistadoras.

— Pois confessamos... isso é verdade.

— Pela minha parte não diga nada, assobiou d. Gabriela mirando-se no espelho; mas enfim... eu não sei se sou bonita, mas, onde quer que eu esteja, vejo-me sempre cercada de adoradores: hoje, por exemplo, tenho-me visto doida... perseguiram-me constantemente seis... era impossível ter tempo de mangar com todos a preceito.

— Mas, d. Gabriela, onde está o seu talento?...

— Pois bem, que se ponha outra no meu lugar.

— Alguns homens zombariam de doze de nós outras a um tempo... Houve já um que não teve vergonha de escrever isto em um papel:

Num dia, numa hora,

No mesmo lugar

Eu gosto de amar

Quarenta,

Cinqüenta,

Sessenta:

Se mil forem belas,

Amo a todas elas.

— Que pateta!

— Que tolo!...

— Que vaidoso!

— Essa opinião segue também o Augusto!

— Qh!... e esse paspalhão!...

Ei-las comigo... murmurou entre os dentes o nosso estudante, estendendo o pescoço a modo de cágado.

— Como lhe fica mal aquela cabeleira!... Assemelha-se muito a uma preguiça.

— Tem as pernas tortas.

— Eu creio que ele é corcunda.

— Não aquilo é magreza.

— Forte impertinente! Falando, é um Lucas...

— Há de ser interessante dançando!

— Vamos nós tomá-lo à nossa conta?

— Vamos; pensemos nos meios de zombar dele crue lmente... Pois pensemos...

Mas elas não tiveram tempo de pensar, porque, nesse momento, ouviu-se um grito de dor, ao qual seguiu-se viva agitação no interior daquela casa, onde ainda há pouco só se respirava prazer e delícias. As quatro moças levantaram-se espantadas.

— Pareceu-me a voz de minha prima Carolina, exclamou d. Joaninha.

— Coitada! Que lhe sucederia?...

— Vamos ver.

As quatro moças correram precipitadamente para fora do quarto.

Augusto, que não estava menos assustado, saiu do seu esconderijo, vestiu-se apressadamente e ia, por sua vez, deixar aquele lugar, em que se vira em tantos apuros, quando deu com os olhos na carta do sr. Joãozinho, que, com a pressa e agitação, havia d. Gabriela deixado cair.

O estudante apanhou e guardou aquele interessante papel, e com prontidão e cuidado pôde, sem ser visto, escapar-se do gabinete.

Um instante depois foi cuidadoso procurar saber a causa do rumor que ouvira.

O grito de dor tinha sido, com efeito, soltado por d. Carolina.