Romancistas Essenciais - Joaquim Manuel de Macedo

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Capítulo XIII: Os quatro em conferência

Ninguém se arreceie pela nossa travessa, O grito de dor foi, na verdade, seu; mas, se alguém corre perigo, não é certamente ela. O caso é simples.

Morava com a sra. d. Ana uma pobre mulher, por nome Paula muito estimada de todos, porque o era da despotazinha daquela ilha, de d. Carolina, a quem tinha servido de ama. Os desvelos e incômodos que tivera na criação da menina lhe eram sobejamente pagos pela gratidão e ternura da moça.

Ora, todos se tinham ido para o jardim logo depois do jantar mas o nosso amigo Keblerc achara justo e prudente deixar-se ficar fazendo honra à meia dúzia de lindas garrafas das quais se achava ternamente enamorado: contudo ele pensava que seria mais feliz se deparasse com um companheiro que o ajudasse a requestar aquelas belezas: era um amante sem zelos. Por infelicidade de Paula, o alemão a lobrigou a entrar num quarto. Chamou-a, obrigou-a a sentar-se junto de si, mostrou por ela o mais vivo interesse e depois convidou-a a beber à saúde de seu pai e sua mãe e sua família.

Não havia remédio senão corresponder a brindes tão obrigativos. Depois não houve ninguém no mundo a quem Keblerc não julgasse dever com a sua meiga língua dirigir uma saúde, e, como já estivesse um pouco impertinente, forçava Paula a virar copos cheios. Passado algum tempo, e muito naturalmente, Paula se foi tornando alegrezinha e por sua vez desafiava Keblerc a fazer novos brindes: em resultado, as suas garrafas foram-se. Paula deixou-se ficar sentada risonha e imóvel, junto à mesa, enquanto o alemão, rubicundo e reluzente se dirigiu para a sala.

Quando daí a pouco a ama de d. Carolina quis levantar-se, pareceu-lhe que estava uma nuvem diante dos olhos, que os copos dançavam, que havia duas mesas, duas salas e tudo em dobro; ergueu-se e sentiu que as paredes andavam-lhe à roda, que o assoalho abaixava-se e levantava-se debaixo dos seus pés; depois... não pôde dar mais que dois passos, cambaleou e, acreditando sentar-se numa cadeira, caiu com estrondo contra uma porta. Logo confusão e movimento... Ninguém ousou pensar que Paula, sempre sóbria e inimiga de espíritos, se tivesse deixado embriagar, e, por isso, correram alguns escravos para o jardim, gritando que Paula acabava de ter um ataque.

A primeira pessoa que entrou em casa foi d. Carolina que, vendo a infeliz mulher estirada no assoalho, caiu sobre ela, exclamando com força:

— Oh, minha mãe!... Foi este o seu grito de dor.

Momentos depois, Paula se achava deitada numa boa cama e rodeada por toda a família; porém havia algazarra tal, que mal se entendia uma palavra.

— Isto foi o jantar que lhe deu na fraqueza, gritou uma avelhantada matrona, que se supunha com muito jeito para medicina; é fraqueza complicada com o tempo frio... não vale nada... venha um copo de vinho!

E dizendo isto, foi despejando meia garrafa de vinho na boca da pobre Paula que, por mais lépida e risonha que fosse engolindo a largos tragos, não pôde livrar-se de que a interessante Esculápia lhe entornasse boa porção pelos vestidos.

— São maleitas! exclamava d. Violante, com toda a força de seus pulmões... São maleitas! ... Quem lhe olha para o nariz diz logo que são maleitas! Eu já vi curar-se uma mulher, que teve o mesmo mal, com cauda de cobra moída, torrada e depois desfeita num copo d’água tirada do pote velho com um coco novo e com a mão esquerda, pelo lado da parede. E fazer isto já.

— São lombrigas! gritava uma terceira.

— É ataque de estupor! bradava a quarta senhora.

— É espírito maligno! acudiu outra, que foi mais ouvida que as primeiras... E espírito maligno que lhe entrou no corpo... Venha quanto antes um padre com água benta e seu breviário.

— Ora, para que estão com tal azáfama?... disse uma senhora que acabava de entrar no quarto; não se vê logo que isto não passa de uma mona, que a boa da Paula tomou? Olhem; até tem o vestido cheio de vinho.

— Mona, não senhora! acudiu d. Carolina; a minha Paula nunca teve tão feio costume, e, se está molhada com vinho, a culpa é desta senhora, que há pouco lhe despejou meia garrafa por cima. Oh! é bem cruel que, mesmo vendo-se a minha dor, digam semelhantes coisas!

No meio de toda esta balbúrdia era de ver-se o zelo e a solicitude da menina travessa! ... Observava-se aquela Moreninha de quinze anos, que parecera somente capaz de brincar e ser estouvada, correndo de uma para outra parte, prevenindo tudo e aparecendo sempre onde se precisava apressar um serviço ou acudir a um reclamo. Só cuidava de si quando devia enxugar as lágrimas.

Junto do leito apareceram os quatro estudantes.

Curto foi o exame. O rosto e o bafo da doente bastaram para denunciar-lhes com evidência a natureza da moléstia.

— Isto não vale a pena, disse Filipe em tom baixo a seus colegas; é uma mona de primeira ordem.

— Está claro, vamos sossegar estas senhoras.

— Não, tornou Filipe, sempre em voz baixa; aturdidas pelo caso repentino e preocupadas pela sobriedade desta mulher, nenhuma delas quer ver o que está diante de seus olhos, nem sentir o cheiro que lhes está entrando pelo nariz; minha irmã ficaria inconsolável, brigaria conosco e não nos acreditaria, se lhe disséssemos que sua ama se embebedou; e portanto, podemos aproveitar as circunstâncias para zombar de todas elas e divertir-nos fazendo uma conferência.

— Oh, diabo! ... isso é catecismo dos charlatões!

— Ora, não sejas tolo... não pareces estudante; devemos lançar mão de tudo o que nos possa dar prazer e não ofenda os outros.

— Mas que iremos dizer nesta conferência, senão que ela está espirituosa demais? perguntou Augusto.

— Diremos tudo o que nos vier à cabeça, ficando entendido que as honras pertencerão ao que maior número de asneiras produzir; o caso é que nos não entendam, ainda que também nos não entendamos.

— Há de ser bonito, tornou Augusto, à vista de tanta gente, que por força conhecerá esta patacoada.

— Qual conhecer?... Aqui ninguém nos entende, tornou Filipe, que, voltando-se para os circunstantes, disse com voz teatralmente solene:

— Meus senhores, rogamos breves momentos de atenção; queremos conferenciar.

Movimento de curiosidade.

Seguiu-se novo exame da enferma, no qual os quatro estudantes fingiram observar o pulso, a língua e os olhos da doente; auscultaram e percutiram-lhe o peito e fizeram todas as outras pesquisas do costume.

Depois eles se colocaram em um dos ângulos do quarto; Filipe teve a palavra. Profundo silêncio.

— Acabastes, senhores, de fazer-me observar uma enfermidade que não nos deixa de pedir sérias atenções e sobre a qual eu vou respeitosamente submeter o meu juízo. Poucas palavras bastam. A moléstia de que nos vamos ocupar não é nova para nós; creio mesmo, senhores, que qualquer de vós já a tem padecido muitas vezes...

— Está enganado.

— Não respondo aos apartes. Eu diagnostico uma baquites. Concebe-se perfeitamente que as etesias desenvolvidas pela decomposição dos éteres espasmódicos e engendrados no alambique intestinal, uma vez que a compressão do diafragma lhes causa vibrações simpáticas que os façam caminhar pelo canal colédoco até o periostio dos pulmões...

— C’est trop fort!...

— Daí, passando à garganta, perturbam a quimificação da hematose, que por isso se tornando em linfa hemostática, vá de um jato causar um tricocéfalo no esfenóide, podendo mesmo produzir uma proctorragia nas glândulas de Meyer, até que, penetrando pelas câmaras ópticas, no esfíncter do cerebelo, causa um retrocesso prostático, como pensam os modernos autores, e promovem uma rebelião entre os indivíduos cerebrais: por conseqüência isto é nervoso.

— Muito bem concluído.

— O tratamento que proponho é concludente: algumas gotas de éter sulfúrico numa taça do líquido fontâneo açucarado; o cozimento dos frutos do coffea arabica torrados, ou mesmo o thea sinensis; e quando isto não baste, o que julgo impossível, as nossas lancetas estão bem afiadas e duas libras de sangue de menos não farão falta à doente: disse.

— Como ele fala bem, murmurou uma das moças.

Fabrício tomou a palavra.

— Sangue! Sempre sangue! Eis a medicina romântica do insignificante Broussais! Mas eu detesto tanto a medicina sanguinária, como a estercorária, herbária, sudorária e todas as que acabam em ária. Desde Hipócrates, que foi o maior charlatão do seu tempo, até os nossos dias, tem triunfado a ignorância, mas já, enfim, brilhou o sol da sabedoria... Hahnemann... Ah! Quebrai vossas lancetas, senhores; para curar o mundo inteiro basta-vos uma botica homeopática com o Amazonas ao pé!... Queimai todos os vossos livros, porque a verdade está só, exclusivamente, no alcorão de nosso Mafoma, no Organon do grande homem! Ah! Se depois do divino sistema morre por acaso alguém, é por não se ter ainda descoberto o meio de dividir cm um milhão de partes cada simples átomo da matéria! Senhores, eu concordo com o diagnóstico de meu colega, mas devo combater o tratamento por ele oferecido. Uma taça de líquido fontâneo açucarado, e acidulado com algumas gotas de éter sulfúrico, é, em minha opinião, capaz de envenenar a todos os habitantes da China! O mesmo direi do cozimento do coffea arabica...

— Mas por que não têm morrido envenenados os que por vezes os têm tomado?...

— Eis aí a consideração que os leva ao erro! ... Senhor meu colega, é porque a ação maléfica desses medicamentos não se faz sentir logo... às vezes só aparece depois de cem, duzentos e mais anos: eis a grande verdade! ... Mas eu tenho observações de moléstias de natureza da que nos ocupamos e que vão mostrar a superioridade do meu sistema. Ouçam-me. Uma mulher padecia este mesmo mal, já tinha sofrido trinta sangrias; haviam-lhe mandado aplicar mais de trezentas bichas, purgantes sem conta, vomitórios às dúzias e tisanas aos milheiros; quis o seu bom gênio que ela recorresse a um homeopata, que, com três doses, das quais cada uma continha apenas a trimilionésima parte de um quarto de grão de nihilitas nihilitatis, a pôs completamente restabelecida; e quem quiser pode ir vê-ia na rua... E certo que não me lembro agora onde, mas posso afirmar que ela mora em uma casa e que hoje está nédia, gorda, com cores e até remoçou e ficou mais bonita... Outro fato.

 

— Basta! Basta!

— Pois bem, basta; e propondo a aplicação das nihilitas nihilitatis na dose da trimilionésima parte de um grão, dou por terminado o meu discurso.

— O sr. Leopoldo tem a palavra.

— Senhores, eu devo confessar que restam-me muitas dúvidas a respeito do diagnóstico e, portanto, julgo útil recorrermos ao magnetismo animal, para vermos se a enferma, levada ao sonambulismo, nos aclara sua enfermidade. Além disto, eu tenho fé de que não há moléstia alguma que possa resistir à maravilhosa aplicação dos passes, que tanto abismaram Paracelso e Kisker. Ainda mais: se o diagnóstico do colega que falou em primeiro lugar é exato, dobrada razão acho para sustentar o meu parecer; porque, enfim, se simula similibus curantur, necessariamente o magnetismo tem de curar a baquites. Voto, pois, para que comecemos já a aplicar-lhe os passes.

Seguiu-se o discurso de Augusto que, por longo demais, parece prudente omitir. Em resumo basta dizer que ele combateu as raras teorias de Filipe, mas concordou com o tratamento por ele proposto e falou com arte tal, que d. Carolina o escolheu para assistência de sua ama.

Augusto determinou as aplicações equivalentes ao caso, mas, não tendo entrado no número delas a essencial lembrança de um escalda-pés, caiu a tropa das mezinheiras sobre o desgraçado estudante, que se viu quase doido com a balbúrdia de novo levantada no quarto.

— Menos ruído, minhas senhoras, dizia o rapaz; isto pode ser fatal à doente!

— Ora... eu nunca vi negar-se um escalda-pés!

— Ainda em cima de não lhe mandar aplicar uma ajuda, esquece-se também de escalda-pés!

— Se não lhe derem um escalda-pés, eu não respondo pelo resultado!

— Olhem como a doente está risonha, só por ouvir falar em escalda-pés!

— Aquilo é pressentimento!

— Sr. doutor, um escalda-pés! .

— Pois bem, minha senhoras, disse Augusto para se ver livre delas, dêem-lhe o preconizado escalda-pés!

E fugindo logo do quarto, foi pensando consigo mesmo que as coisas que mais contrariam o médico são: primeiro, a saúde alheia, segundo, um mau enfermeiro e, por último, as senhoras mezinheiras.

Capítulo XIV: Pedilúvio sentimental

Ria-se, jogava-se, brincava-se: todos se haviam já esquecido da pobre Paula. Na verdade também que, por ter a ama de d. Carolina tomado seu copo de vinho a mais, não era justo que tantas moças e moços, em boa disposição de brincar, e umas poucas velhas determinadas a maçar meio mundo, ficassem a noite inteira pensando na carraspana da rapariga. E, além disso, quatro semidoutores já haviam pronunciado favorável prognóstico; como, pois, se arrojaria Paula a morrer contra a ordem expressa dos quatro hipocratíssimos senhores?...

Era por isso que todos brincavam alegremente, menos o sr. Keblerc que, diante de meia dúzia de garrafas vazias, roncava prodigiosamente: grande alemão para roncar!... Era uma escala inteira que ele solfejava com bemóis, bequadros e sustenidos!

Dir-se-ia que entoava um hino... a Baco.

Os rapazes estavam nos seus gerais; a princípio, como era seu velho costume haviam festejado, cumprimentado e aplaudido as senhoras idosas que se achavam na sala, principalmente aquelas que tinham trazido consigo moças; mas, passada meia hora, adeus etiquetas e cerimônias!... Estabeleceu-se um cordão sanitário entre a velhice e a mocidade; a sra. d. Ana achou a ocasião oportuna para ir dar ordens para o chá; d. Violante ocupou-se em desenvolver a um velho roceiro os meios mais adequados para se preencher o deficit provável do Brasil para o ano financeiro de 44 a 45, sem aumentar os direitos de importação, nem criar impostos, abolindo-se, pelo contrário, a décima urbana. Já se vê que d. Violante tinha casas na cidade. Restavam quatro senhoras, que julgaram a propósito jogar o embarque, que na verdade as divertia muito, com o episódio do ás galar o sete; havia, enfim, outra mesa em que alguns senhores, viúvos, casados e velhos pais perdiam ou ganhavam dinheiro no écarté, jogo muito bonito e muito variado, que nos vieram ensinar os senhores franceses, grandes inventores, sem dúvida!...

A rapaziada empregava melhor o seu tempo: também jogava, mas na sua roda não havia nem mesa, nem cartas, nem dados. O seu jogo tinha um diretor que, exceção de regra entre os mais, não podia ter menos de cinqüenta anos: era um homem de estatura muito menos que a ordinária, tinha o rosto muito vermelho, cabelos e barbas ruivos, gordo, de pernas arqueadas, ajuntando ao ridículo de sua figura muito espírito; não estava bem senão entre rapazes. por felicidade deles sempre se encontra desses. Tal o diretor da roda dos moços. O sr. Batista (este o seu nome) era fértil em jogos; quando um aborrecia, vinha logo outro melhor. Já se havia jogado o do toucador e o do enfermo. O terceiro agradou tanto, que se repetia pela duodécima vez, com aplauso geral, principalmente das moças: era, sem mais nem menos, o jogo da palhinha.

Caso célebre!... Já se viu que coincidência!... Ora expliquem. se são capazes... Tem-se jogado a palhinha doze vezes e em todas elas tem a sorte feito com que Filipe abrace d. Clementina e Fabrício d. Joaninha! E sempre, no fim de cada jogo, qualquer das duas recua um passo, como se pouca vontade houvesse nelas de dar o abraço, e fazendo-se coradinha, exclama:

— Quantos abraços!... Pois outra vez?...

— Eu já não dei ainda agora?... Ora isto!...

Entre os rapazes, porém, há um que não está absolutamente satisfeito: é Augusto. Será porque no tal jogo da palhinha tem por vezes ficado viúvo?... Não! Ele esperava isso como castigo da sua inconstância. A causa é outra: a alma da ilha de... não está na sala! Augusto vê o jogo ir indo o seu caminho muito sem ordem; não se rasgou ainda nenhum lenço, Filipe ainda não gritou com a dor de nenhum beliscão, tudo se faz em regra e muito direito; a travessa, a inquieta, a buliçosa, a tentaçãozinha não está aí: d. Carolina está ausente!...

Com efeito, Augusto, sem amar d. Carolina (ele assim o pensa) já faz dela idéia absolutamente diversa da que fazia ainda há poucas horas: agora, segundo ele, a interessante Moreninha é, na verdade, travessa, mas a cada travessura ajunta tanta graça, que tudo se lhe perdoa. D. Carolina é o prazer em ebulição; se é inquieta e buliçosa, está em sê-lo a sua maior graça: aquele rosto moreno, vivo e delicado, aquele corpinho, ligeiro como a abelha, perderia metade do que vale se não estivesse em contínua agitação. O beija-flor nunca se mostra tão belo como quando se pendura na mais tênue flor e voeja nos ares; d. Carolina é como um beija-flor completo.

Neste momento a sra. d. Ana entrou na sala, e depois dirigindo-se à grande varanda da frente, sentou-se defronte do jardim. Batista acabava de dar fim ao jogo da palhinha e começava novo: Augusto pediu que o dispensassem e foi ter com a dona da casa.

— Não joga mais, sr. Augusto? disse ela.

— Por ora não, minha senhora.

— Parece-me pouco alegre.

— Ao contrário... estou satisfeitíssimo.

— Oh! O seu rosto mostra não sentir o que dizem seus lábios; se aqui lhe falta alguma coisa...

— Na verdade que aqui não está tudo, minha senhora.

— Então que falta?

— A sra. d. Carolina!

A boa senhora riu-se com satisfação. Seu orgulho de avó acabava de ser incensado: era tocar-lhe no fraco.

— Gosta de minha neta, sr. Augusto?

— É a delicada borboleta deste jardim, respondeu ele, mostrando as flores.

— Vá buscá-la, disse a sra. d. Ana, apontando para dentro.

— Minha senhora, tanta honra!

— O amigo de meu neto deve merecer minha confiança: esta casa é dos meus amigos e também dos dele. Carolina está, sem dúvida, no quarto de Paula; vá vê-la e consiga arrancá-la de junto da sua ama.

A sra. d. Ana levou Augusto pela mão até o corredor e depois o empurrou brandamente.

— Vá, disse ela, e receba isso como a mais franca prova de minha estima para com o amigo de meu neto.

Augusto não esperou ouvir nova ordem: endireitou para o quarto de Paula, com presteza e alegria. A porta estava cerrada; abriu sem ruído e parou no limiar.

Três pessoas havia nesse quarto: Paula, deitada e abatida sob o peso de sua sofrível mona, era um objeto triste e talvez ridículo, se não padecesse; a segunda era uma escrava que acabava de depor junto do leito a bacia em que Paula deveria tomar o pedilúvio recomendado, objeto indiferente; a terceira era uma menina de quinze anos, que desprezava a sala, em que borbulhava o prazer, pelo quarto em que padecia uma pobre mulher; este objetivo era nobre...

D. Carolina e a escrava tinham as costas voltadas para a porta e por isso não viam Augusto: Paula olhava, mas não via, ou antes não sabia o que via.

— Anda, Tomásia, dá-lhe o escalda-pés! disse d. Carolina.

Pela sua voz conhecia-se que tinha chorado.

A escrava abaixou-se e puxou os pés da pobre Paula; depois, pondo a mão n’água, tirou~a de repente, e sacudindo-a:

— Está fervendo!... disse.

— Não está fervendo, respondeu a menina; deve ser bem quente, assim disseram os moços.

A escrava tornou a pôr a mão e de novo retirou-a com presteza tal, que bateu com os pés de Paula contra a bacia.

— Estonteada!... Sai... Afasta-te, exclamou d. Carolina, arregaçando as mangas de seu lindo vestido.

A escrava não obedeceu.

— Afasta-te daí, disse a menina em tom imperioso; e depois abaixou-se no lugar da escrava, tomou os pés de sua ama, apertou-os contra o peito, chorando, e começou a banhá-los.

Belo espetáculo era o ver essa menina delicada, curvada aos pés de uma rude mulher, banhando-os com sossego, mergulhando suas mãos tão finas, tão lindas, nessa mesma água que fizera lançar um grito de dor à escrava,

quando aí tocara de leve com as suas, tão grosseiras e calejadas!... Os últimos vislumbres das impressões desagradáveis que ela causara a Augusto, de todo se esvaíram. Acabou-se a criança estouvada... ficou em seu lugar o anjo de candura.

O sensível estudante viu as mãozinhas tão delicadas da piedosa menina já roxas, e adivinhou que ela estava engolindo suas dores para não gemer; por isso não pôde suster-se e, adiantando-se, disse:

— Perdoe, minha senhora.

— Oh!... O senhor estava aí?

E tenho testemunhado tudo!

A menina abaixou os olhos, confusa, e apontando para a doente, disse:

— Ela me deu de mamar.

— Mas nem por isso deve a senhora condenar suas lindas mãos a serem queimadas, quando algum dos muitos escravos que a cercam poderia encarregar-se do trabalho em que a vi tão piedosamente ocupada.

— Nenhum o fará com jeito.

— Experimente.

— Mas a quem encarregarei?

— A mim, minha senhora.

— O senhor falava de meus escravos...

— Pois nem para escravo eu presto?

— Senhor!

E nisto o estudante abaixou-se e tomou os pés de Paula, enquanto d. Carolina, junto dele, o olhava com ternura.

Quando Augusto julgou que era tempo de terminar, a jovenzinha recebeu os pés de sua ama e os envolveu na toalha que tinha nos braços.

— Agora deixemo-la descansar, disse o moço.

— Ela corre algum risco?...perguntou a menina.

— Afirmo que acordará amanhã perfeitamente boa.

— Obrigada!

— Quer dar-me a honra de acompanhá-la até à sala? disse Augusto, oferecendo a sua mão direita à bela Moreninha.

Ela não respondeu, mas olhou. com gratidão, aceitando o braço do mancebo, deixou o quarto de Paula.