Futuro Perigoso

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5. Dois são melhor que um

Keysi trabalhava no vírus encontrado em Sória; estava sendo difícil estudá-lo. O computador tocava A Cavalgada das Valquírias, ópera de Wagner. Carolina, que mostrava sinais claros de sono, tomou notas em um caderno para adicioná-las depois à sua tese. Keysi apertou o botão de pausa e disse em voz alta para a colega:

– É como se fossem dois vírus, mas é só um.

Carolina se aproximou de Keysi e olhou para os dados mostrados pelo computador.

– Keysi, você misturou dois vírus? Esses dados são impossíveis. Aqui tem variantes de dois vírus, claramente é algum erro.

– O pessoal da coleta de vírus deve ter cometido um erro.

– A gente devia reportar.

– Mas Carolina, eles poderiam ser despedidos, um erro tão sério é motivo de demissão.

– Me surpreende que você pense assim, já que você passa mais tempo aqui do que lá fora, de tanta preocupação com as pessoas infectadas.

– Eu sei, mas também me preocupo com meus colegas.

– Tá bom. Vou processar minhas amostras e comprara os resultados com os seus. Talvez tenha sido um erro.

– Brigada, Carolina. Vou ligar pro hospital de Sória para descobrir como o paciente idoso está evoluindo, e aproveito pra pedir que mandem mais amostras, se possível.

Carolina se virou, continuou com o que estava fazendo e, vinte minutos depois, começou a estudar o vírus de Sória. Keysi foi procurar o número de telefone do hospital de Sória.

Jacinto, um belo rapaz de 27 anos da área de coleta de vírus, entrou na Sala 4, onde Keysi e Carolina trabalhavam diariamente, assustando a segunda, que estava concentrada em seu trabalho.

– Você não pode avisar antes? – perguntou Carolina, irritada.

– Desculpa.

– Desculpa? Jacinto, Keysi e eu trabalhamos com material muito delicado, e somos algumas das poucas pessoas no laboratório que não usam roupas de isolamento ou qualquer proteção. Então, por favor, tenha mais cuidado.

– Eu sei, mas você nunca é exposta diretamente. Eu corro mais riscos quando vou coletar os vírus. Meu traje pode rasgar, e eu posso me infectar.

– E sua interrupção poderia ter me feito largar esse frasco que contém esse vírus misterioso que eu tenho nas mãos, e que ainda não achamos uma cura, e infectar nós duas – Carolina não queria dar o braço a torcer.

– Por que você diz que é misterioso?

– Porque todos os vírus têm suas próprias variantes simétricas. Desde que conseguimos "capturar" os vírus, pudemos descobrir que todos eles têm o mesmo padrão simétrico, com suas próprias características.

– Sim, eu já sabia disso. Trabalho aqui, lembra?

Jacinto sempre foi apaixonado por vírus, motivo pelo qual começou a estudar biologia, para depois se especializar em virologia molecular. Mas, depois de perceber que teria que trabalhar trancado em laboratório, mudou de biologia para coleta e tratamento especializado de micro-organismos.

– Ao submeter os vírus à viócula – a viócula era uma máquina que mostrava todas as características observáveis de um vírus, o que seria o ponto de partida no estudo de cada um deles —, entre outros dados, este gráfico nos mostra… – Carolina apontou para tela do computador.

– A tabela característica.

A tabela característica era um gráfico semelhante a uma cadeia de DNA, mostrando as qualidades únicas dos vírus.

– Exato. Aqui podemos ver duas tabelas características interligadas, o que é totalmente impossível. É por isso que acreditamos que esse vírus foi submetido a algum tipo de contaminação que o alterou.

– Carolina, isso é impossível. Eu mesmo coletei esse vírus.

***

Keysi ligou para o hospital onde estava o paciente idoso de Sória, selecionando “chamada holográfica” e colocando o telefone na palma da mão. Apenas os celulares modernos tinham o recurso de ligação holográfica, os outros tinham apenas opões de chamadas de voz ou vídeo. Ao responder do outro lado da linha, apareceu no telefone de Keysi um holograma de uma mulher de meia-idade, com evidências de já ter passado por tratamentos estéticos no rosto.

Keysi explicou à mulher o motivo de sua ligação.

– Lamento dizer, senhorita, mas o paciente morreu ontem à noite. A boa notícia é que, por enquanto, não há mais infectados.

A mulher se comprometeu a enviar mais amostras do vírus no mesmo dia e se despediu.

Keysi voltou à Sala 4, onde encontrou Carolina conversando com Jacinto.

– Eu tenho que ir. Tchau, Keysi – disse Jacinto, que saiu da porta consultando a localização de um vírus de que ele teria que coletar amostras.

– Não diga nada – disse Carolina, apontando o dedo para sua colega.

Keysi tinha a teoria de que Jacinto estava apaixonado por Carolina, o que a deixava nervosa, pois ela só via seu jovem colega como um amigo.

– Eu não ia dizer nada. – Keysi sorriu, deixando seus pensamentos para si mesma. – Tenho más notícias. – anunciou. – O paciente idoso morreu.

– Tem mais infectados?

– No momento não. Eles vão nos enviar mais amostras hoje. – Keysi olhou pela janela; era um dia ensolarado, os turistas estavam passeando tranquilamente, e o mar estava brilhando. – Acho que vou continuar estudando o vírus da Austrália.

– Por que você não descansa um pouco? Você tá entocada aqui há quase 24 horas, precisa descansar.

– O que você acha que os parentes dos infectados pensariam se soubessem que, em vez de procurar uma cura, eu tô descansando? – perguntou Keysi, exaltada.

– Não acho que você vai ajudar em nada cansada.

– Eu não tô cansada! – protestou a inglesa.

Por volta das duas da tarde, as amostras de vírus chegaram através da Rede de Transporte de Mercadorias Altamente Perigosas. Era uma rede de pequenos tubos à prova de fogo, anticongelantes e inquebráveis, de dois metros de diâmetro, muito rápidos, subterrâneos e que conectavam os laboratórios. No caso de ilhas, como em Maiorca, o vírus era transportado ao seu destino por um avião especial. No início, a construção começou como uma rede de transporte de mercadorias, mas, devido aos altos custos, uma rede menor e de uso médico foi construída em seu lugar. A rede foi construída paralelamente à Rede de Transporte Subterrâneo, uma rede que transportava passageiros, e que ligava praticamente todo o mundo, com uma velocidade que beirava os dois mil quilômetros por hora.

Clara se apressou em levar as amostras para a Sala 4.

– Tá aqui. Qualquer coisa, me chame – se ofereceu Clara, que naquele dia usava um penteado retrô, típico de dois séculos atrás, que simulava a figura de um leão feroz.

– Acho que vou sair um pouco.

– Eu também. Eu vou comer lá no meu apartamento. Você poderia vir comigo. Como as meninas que moram comigo tão viajando, eu tô sozinha, e assim você não teria que ver… – Carolina evitou falar o nome de Raúl, ex-namorado de Keysi.

– Não precisa, mas eu agradeço.

Carolina foi embora correndo, derramando uma lata de refrigerante pelo corredor do laboratório. Keysi ficou por mais alguns minutos, verificando o vírus estranho, tentando encontrar um erro. Ao sair do laboratório, Jacinto estava esperando por ela.

– Keysi, espera.

A britânica parou, esperando que Jacinto continuasse falando.

– Você me faz um favor?

– Outro?

– É bem pequeno.

– Vamos ver, diga – concordou a inglesa.

– Você me ajuda a conquistar Carolina?

Keysi fez uma cara de susto.

– Jacinto, eu sei que é difícil, mas aceite, ela não gosta de você.

– Mas vai gostar – disse ele alegremente.

– Você nunca desiste?

– Dela não.

– Há quanto tempo vocês se conhecem?

– Há uns dois anos, quando comecei a trabalhar aqui.

– E desde quando você tá apaixonado por ela?

– Acho que desde dois segundos depois que nos conhecemos.

– Eu não acredito em contos de fadas – disse ela, de forma seca.

– Diz a pessoa que largou a vida inteira e veio morar na Espanha pouco depois de conhecer um cara.

Keysi ficou vermelha.

– Não posso te ajudar.

– Sim, você pode, mas não quer. Vamo lá, não custa nada, você passa o dia todo com ela.

– Não temos esse tipo de relação.

Keysi continuou andando até chegar ao seu apartamento. Ao entrar, ela ficou feliz por estar sozinha. Ligou a máquina de cozinhar, colocou todos os ingredientes nos compartimentos indicados e esperou que a merluza com batatas assadas acompanhada de molho de alho-poró estivesse pronta.

A britânica começou a comer com pressa para terminar o mais rápido possível e poder retornar imediatamente ao laboratório. Sua obsessão por descobrir antígenos crescia rapidamente a cada dia. Quando ela estava terminando de comer, Raúl entrou no apartamento, acompanhado por uma mulher morena muito jovem e atraente.

– Ah, desculpe, Keysi, eu não sabia que você tava aqui.

– Não se desculpe.

A mulher permanecia em silêncio junto à porta, carregando uma pequena mala na mão.

– Essa é minha irmã, Marina, ela veio de Alicante – Raúl e toda a sua família eram dessa cidade – para passar alguns dias aqui de férias.

Keysi limpou as sobras de comida do rosto com um guardanapo com cheiro de baunilha – o tipo favorito da inglesa —, se aproximou de sua ex-cunhada e a cumprimentou.

Marina e Keysi conversaram alegremente por um tempo, até que a primeira saiu com o irmão, que queria mostrar para ela aquela bela cidade à beira-mar.

Keysi mal tinha dormido nos últimos dias, mas, embora tivesse dito à colega que não estava cansada porque não queria admitir, ela estava. Ela se recostou no sofá com a intenção de fechar os olhos por alguns segundos, que se tornaram horas.

***

Carolina se sentiu vazia quando entrou em seu apartamento, na zona norte da cidade. Ela morava com duas estudantes de direito, uma de Valência e outra de Barcelona, que tinham viajado para Nice. Com o tempo, elas tinham se tornado grandes amigas, apesar de não terem muito em comum.

 

Ela abriu a geladeira na esperança de achar algo gostoso para comer, mas tudo o que encontrou foram restos de comida que estavam com um cheiro desagradável. Ela fechou a geladeira e foi até o restaurante que havia embaixo de seu apartamento.

Era um restaurante retrô, a tecnologia mal tinha chegado naquele lugar. Na maioria dos restaurantes, todos eram atendidos por hologramas que reagiam à voz e enviavam pedidos dos clientes para a cozinha, onde equipamentos e máquinas preparavam a comida automaticamente. Na maioria das vezes, o resultado não era agradável para o cliente; em troca, os preços eram extremamente baixos, o que era viável porque não era preciso pagar salários.

Um homem de meia-idade e um pouco acima do peso cumprimentou Carolina calorosamente, saindo de trás do bar e abraçando-a.

– Que bom que você veio me ver – disse Pedro.

– Eu vim pra comer.

– Melhor, melhor – o homem ficou muito satisfeito.

Carolina olhou para as mesas; todas estavam vazias.

– Como vão os negócios?

– Como pode ver, mal. Eu tive que despedir meu cozinheiro, agora faço tudo. Essas máquinas só criam desemprego; se você não sabe como criar robôs, é cientista ou conhece alguma tecnologia de informática, já não serve mais para nada.

– Não diga isso.

– Quantas profissões já foram extintas? Taxistas, entregadores, motoristas de ônibus, tradutores, operadores de linhas de produção, apresentadores de televisão, sem falar dos professores, que só são deixados nas escolas para não assustar as crianças. Sobraram poucos de nós, cozinheiros, vendedores e tal. Inventaram até uma máquina que cria máquinas! Esse mundo tá deixando de nos pertencer. Cuidado pra que não inventem maquininhas que sabem descobrir antígenos.

Carolina ficou pensando no pai, que trabalhou como bibliotecário antes de ser substituído por um holograma, e em seus professores da escola e da faculdade, todos hologramas inteligentes também. A maiorquina pensava que talvez Pedro tivesse razão, e os seres humanos estivessem em perigo de extinção, sendo eles mesmos seus piores inimigos.

Pedro preparou para Carolina um prato de caracóis com molho de tomate, acompanhado de um bife. Em todo o tempo em que ela esteve no restaurante, nenhum cliente entrou, o que lhe deu pena. Ela gostava do homem, o conhecia desde o dia em que se mudou, quando ele se ofereceu para ajudá-la a carregar sua mudança.

Logo depois, Carolina foi ao laboratório com sua bicicleta; odiava os carros, especialmente os engarrafamentos que eles provocavam.

Quando entrou pela porta da Sala 4, ficou surpresa por não ver sua colega trabalhando, mas não se importou.

Carolina iniciou o procedimento do zero com as novas amostras vindas de Sória. Depois de quatro horas muito longas, o processo preliminar foi concluído, faltando apenas comparar os dados e tirar as conclusões. Carolina esperava que os resultados fossem completamente opostos. Depois de comparar os dois resultados, ela não poderia ter ficado mais chocada. O que ela tinha acabado de descobrir poderia mudar a maneira como os biólogos estudavam vírus.

– Não acredito! – disse Carolina em voz alta, e imediatamente ligou para Keysi, que havia chegado alguns minutos antes e conversava com Clara e Norberto.

A britânica chegou correndo.

– O que aconteceu?

– Não houve contaminação, são dois vírus. Os vírus tão evoluindo, ou pode ser que o nosso sistema imunológico continue enfraquecendo.

Naquele momento, Norberto entrou.

– Norberto, você tem que ver isso.

O diretor do Farol da Luz se aproximou e olhou para o que Carolina estava lhe mostrando.

– Impressionante – disse Norberto, surpreso com a descoberta de suas duas funcionárias favoritas, tirando sua filha Titania.

– Você precisa divulgar, é perigoso ter essa informação e não compartilhar – disse Keysi. Seu chefe estava olhando para ela com uma expressão muito séria.

– Houve outro caso – Norberto começou a contar. – há muito tempo. – Norberto aproximou-se da porta, certificou-se de que ninguém estava ouvindo e fechou-a. – Foi há dez anos, no oblast de Irkutsk, na Rússia. Desde que existem as cepas de vírus mortais, produto de nossos avanços médicos, dois ou mais vírus nunca viveram em um mesmo corpo. Sabemos que quando um vírus invade o seu corpo, outro não pode entrar, pois o corpo já está doente. Há dez anos, um homem de oitenta anos foi encontrado morto em sua casa, com um fio de sangue saindo da boca. Imediatamente, ligaram pra uma unidade especializada em coletar cadáveres infectados por vírus. Quando chegaram ao laboratório, começaram o processo de investigação, pura rotina. – Norberto pegou um dos bancos e sentou-se, com Carolina e Keysi observando-o atentamente. – Quando o biólogo que o examinava iniciou o processo, não percebeu nada de peculiar, nada o fez suspeitar que o corpo era portador de dois vírus. O biólogo continuou o procedimento, quase terminado, quando notou as feridas internas do corpo. – Norberto esfregou os olhos. – A primeira coisa que ele pensou foi que o vírus era extremamente perigoso, então ele saiu da sala e foi até o compartimento que serve como uma passagem entre o corredor e as salas altamente perigosas. Ele fechou a porta com o código criptografado e acionou o processo de remoção do vírus para eliminar quaisquer vestígios do vírus que ele carregasse. Ele desabotoou o traje de isolamento e alertou os membros da equipe de coleta para que fossem particularmente cautelosos. Quando voltou pra dentro, viu uma coisa realmente incomum: o cadáver estava se decompondo a uma velocidade espantosa. Nenhum vírus registrado apresentava esses sintomas post-mortem. Mas tinha outra coisa: os ossos tavam ficando pretos. Depois de mais dois dias de pesquisa, o biólogo descobriu algo que julgavam impossível: um corpo podia abrigar dois vírus ao mesmo tempo. O biólogo, fascinado por essa descoberta médica, continuou a estudar os restos do corpo, bem como as amostras de vírus que ele conseguiu extrair dele. – Keysi e Carolina estavam em silêncio, concentradas no relato do chefe. – Uma manhã, quando o biólogo chegou ao seu posto de trabalho, descobriu outra coisa. Não havia mais dois vírus, e sim apenas um. Os dois vírus sofreram mutação, transforman-do-se em um vírus novo e mais poderoso. Isso aconteceu inexplicavelmente e, que a gente saiba, nunca mais aconteceu. Espero que vocês sejam discretas, e com isso quero dizer que essa informação não sai desta sala. Não falem sobre isso em público, entenderam?

Keysi e Carolina concordaram.

– Podemos ver amostras desse vírus ou ler os relatórios?

– Não acho que isso seja relevante, os vírus só devem sair das Câmaras Isoladas de Segurança quando for realmente necessário.

As Câmaras Isoladas de Segurança eram centros de armazenamento ocultas no subsolo ou no fundo do mar que mantinham amostras de vírus e seus antígenos. Cada laboratório tinha uma, e a o do laboratório de Norberto ficava a dois quilômetros ao sul de Maiorca, escondida no fundo do mar. Era acessada através de um submarino, e, para entrar, primeiro era preciso ter uma autorização e, depois, passar por uma série de longos e rígidos controles de segurança.

As únicas Câmaras Isoladas de Segurança que não continham amostras de vírus eram os arquivos com o acervo histórico da China, Austrália, Canadá e França, as hortas de sementes da Islândia, Paraguai e Namíbia e os centros de dados de tecnologia do Japão e da Antártida.

– Você fez um ótimo trabalho, mas infelizmente ninguém vai ficar sabendo. Como vai com os outros vírus? Eu tô especialmente interessado no que foi encontrado na Noruega. O número de infectados aumentou pra aproximadamente doze mil e quinhentos.

– Eu tenho dois possíveis antígenos, mas eles ainda não tão prontos. Com sorte, termino nessa semana – informou Keysi.

– Eu tô quase terminando um antígeno pro da Austrália.

– Perfeito. Assim que tiverem prontos, me informem. Muita gente tá morrendo.

Norberto saiu da sala e as deixou trabalhando. Estava preocupado; sua filha estava em Taiwan, cercada por muitos vírus mortais, e ele nem podia perguntar como ela estava, já que as comunicações tinham sido suspensas.

Enquanto trabalhavam, Clara entrou de repente, quando Carolina carregava amostras do vírus apelidado de areia que voa, fazendo com que ele escorregasse de suas mãos e caísse.

– Ai, meu Deus! – gritou Keysi aterrorizada. Clara também gritou, e depois saiu correndo.

– Calma! Não quebrou. Repito, não quebrou – por sorte, Carolina havia enrolado a esfera em um plástico protetor.

Clara voltou para a sala, ofegante.

– Menos mal. – Clara olhou para o frasco para ter certeza. – Eu tava vindo pra comunicar que a presidente da Espanha vai visitar o laboratório, basicamente pra tirar uma foto – Clara se virou para sair.

– Quando ela vem? – perguntou a maiorquina.

– Ah, sim! – Clara ainda estava ofegante. – Eu tô muito empolgada, acho que devia ir à academia. – Clara sorriu. – Ela vai vir na próxima semana. Vai ter uma grande festa, e ela vai nos entregar o prêmio de melhor laboratório da Espanha.

– Não tenho nada pra vestir – reclamou Carolina, quando elas voltaram a ficar sozinhas.

– Eu posso emprestar algumas roupas pra você.

– Vamos juntas pra uma loja de roupas amanhã?

– A gente tem muito o que fazer – disse ela, com os braços abertos.

– Eu preciso de você, você tem estilo. Não vai te fazer mal tirar uma manhã de folga. Quando foi a última vez que você não trabalhou?

– Carolina, hoje eu dormi a tarde toda.

– Isso é normal, você quase não dorme.

– Tá bom, eu vou com você – concordou Keysi, que se aproximou do computador, colocou o dedo no reprodutor de música e clicou em As Fadas, de Wagner.

***

Elas chegaram a uma loja de roupas, aberta 24 horas por dia, por volta das oito da manhã. Os funcionários da loja eram dois hologramas inteligentes que eram ativados por voz. Keysi e Carolina entraram na loja de roupas, passando suas pulseiras na frente da tela de identificação.

As pulseiras que usavam criavam um avatar personalizado muito realista para todas as lojas, visível pelo celular. Ao aproximar a pulseira do código de identificação de cada peça, o avatar automaticamente colocava a peça, para uma visualização melhor e com mais precisão de como ela se encaixaria, sem a necessidade de experimentá-la. Poucas lojas continuavam mantendo os provadores.

A porta de saída era diferente da de entrada. Se a pessoa quisesse sair, precisava passar por um scanner, que detectava se ela estava usando roupas que não foram pagas; nesse caso, a porta não abria, impedindo que a pessoa saísse. No início da implementação do sistema de scanner nas lojas, houve problemas, e muitas vezes os códigos não eram bem identificados, fazendo com que as pessoas não conseguissem sair.

– Eu não gostei de nada – Carolina olhava para as roupas, pouco convencida.

– Que tal essa? – Keysi mostrou a ela uma camiseta amarela com decote em V e ombros em forma de dodecaedro.

– Eu queria uma coisa mais chamativa.

A inglesa aproveitou o momento para falar sobre Jacinto.

– Por que você não dá uma chance pra Jacinto?

– Ele não me pediu.

– Você sabe o que ele sente por você.

– Eu sei o que você acha.

A britânica começou a olhar um vestido verde em um canto distante. A parte de baixo era mais clara, enfeitada com contas de prata.

– Você devia levar, ia ficar bem em você – disse Carolina, aproximando-se por trás.

– Custa setecentos simeões, é muito.

– Ok, se você não comprar, eu compro pra você.

– Não, Carolina, é muito dinheiro.

– Keysi, é o meu dinheiro, e, se eu quiser te dar um vestido, eu dou. Você passa o dia no laboratório, não faz mal que alguém te dê um presente. Aliás, você já encontrou uma casa? Porque ter que continuar morando com seu ex… enfim, deve ser complicado.

– Não é, a gente tá se dando bem. E não, não encontrei nada que eu goste, são todas casas antigas.

– As casas antigas tão na moda agora, eu mesma moro em uma.

– Eu nunca morei em uma. Em Birmingham, eu morava em uma casa que era tipo um chalé, bem moderna. Na Alemanha, também tinha um Sistema de Controle, assim como aqui.

– Você não quer tentar? Digo isso porque tem um quarto vazio no meu apartamento.

– Eu não me vejo morando com outras pessoas.

– Você acha que sobreviveria sem que as luzes se acendessem sozinhas ou tendo você mesma que dar a descarga?

 

– São avanços, facilitam a nossa vida.

– Também geram desemprego. Debaixo da minha casa tem um restaurante retrô. Ninguém entra. No final, vai acabar fechando.

– Gosto mais dos retrôs do que dos modernos, mas admito que vou muito mais nos modernos porque são mais rápidos.

– Sim, é verdade, mas a comida é uma merda.

– Não em todos.

– Tá, pode ser que em toda Maiorca tenha uns dois ou três que sirvam comida boa, mas em outros lugares também não é tão ruim. Quer dizer, a comida dos robôs pessoais de cozinha é muito boa.

– É verdade. Acho que é porque já existiam há séculos e foram melhorando, e, como nos restaurantes modernos as pessoas não reclamam, e mais e mais pessoas vêm, eles não melhoram.

– Muitas pessoas reclamam, mas da boca pra fora.

– Veja! – Keysi apontou animada para um longo vestido vermelho escuro com mangas compridas. – Leve esse, tenho certeza que vai ficar lindo em você.

Carolina se aproximou e passou o pulso pelo código da peça. Automaticamente, seu avatar pessoal vestiu a roupa, convencendo-a do resultado.

– Adorei, Keysi, muito obrigada por encontrar. Se dependesse de mim, eu não teria visto.

– Não tem de quê. Mas se você me der o vestido verde, eu te dou o vermelho.

– Me parece justo.

***

Dois dias depois, Carolina acreditava ter encontrado um antígeno para o vírus da Austrália.

– Acho que consegui – disse Carolina, depois de pausar a música.

– Deixe eu dar uma olhada – Keysi revisou os dados. – Tomara que funcione.

– Vou chamar Clara.

Antes que a maiorquina saísse da sala, Norberto apareceu.

– Onde você tava indo?

– Avisar pra Clara que eu tenho um possível antígeno pro vírus da Austrália.

– Ótimas notícias, mas lembre que você pode avisar ela daqui – Norberto apontou para o teledor, um instrumento que permitia a comunicação com todo o laboratório por meio de ligações ou videochamadas.

– Eu pensei que, pela importância da notícia, eu deveria contar pessoalmente.

– Tá bom. Tenho que contar uma coisa, e vocês não vão gostar. – Norberto ficou sério. – Na próxima semana, um grupo de virologistas chineses do prestigiado laboratório Árvore Alta vai nos visitar. Não se trata de uma visita de cortesia, eles querem ver como trabalhamos e, é claro, querem trabalhar com vocês enquanto estiverem aqui.

– Mas isso pode atrasar nosso trabalho – reclamou a inglesa.

– De fato, esse é o meu maior receio. Se, em vez de pesquisar, vocês tiverem que ensinar técnicas, como nossos dispositivos funcionam e assim por diante, fico preocupado que vocês demorem muito para encontrar antígenos. Vou fazer o meu melhor pra que eles deixem vocês em paz. Keysi, como tão indo os possíveis antígenos que você me contou?

– Tem uma coisa que eu não entendo. Quando aplico o vírus nas células sintéticas e depois injeto meus antígenos, o vírus cresce, não sei como, mas eu maximizo ele, quando na verdade tento fazer o oposto.

– Claramente, você tem uma ou mais variáveis ao contrário – disse Carolina.

– Eu pensei nisso, fiz outras combinações coerentes, mas ainda não funciona.

– Às vezes, o mais coerente é ser incoerente – disse Norberto.

– E a CoHu do vírus indiano? – perguntou Keysi, preocupada que seu antígeno tivesse falhado.

– Todos em perfeito estado e sem efeitos colaterais, você não precisa se preocupar. O antígeno foi um sucesso.

Duas horas depois, uma CoHu estava pronta para testar o antígeno criado por Carolina. Ele era um jovem de trinta e tantos anos, que estava suando muito deitado em uma maca.

– Relaxe – disse uma das enfermeiras que trabalhava nas Salas de Testes.

– Você tem família? Filhos? – perguntou Carolina para acalmá-lo.

– Dois divórcios, quatro filhos – respondeu o homem, sem olhar para ela.

– Você é muito corajoso, poucas pessoas se arriscam a ser CoHu.

– Faço isso pelos meus filhos.

– Você quer dormir durante o processo? Eu tenho que avisar que isso pode te afetar negativamente – informou a enfermeira.

– Você me perguntou se eu quero morrer dormindo?

– Não diga isso, você não vai morrer.

– Sinceramente, não me importo. Sei lá quem criou esse soro milagroso que vão colocar em mim.

– Esse soro milagroso, como você chama, é o que possivelmente vai evitar que milhares de pessoas morram e muitas outras sejam infectadas e acabem do mesmo jeito. E fui eu que criei – disse Carolina, irritada.

– Desculpe. – disse o homem, olhando para o rosto de Carolina pela primeira vez. – Você é muito nova, eu não sabia que as pessoas que pesquisavam essas coisas eram tão jovens. Você também é muito bonita.

Carolina ficou vermelha com o elogio do homem.

– Vai doer? – perguntou a CoHu.

– Não sei – respondeu a maiorquina.

A enfermeira entrou no módulo de contenção onde a CoHu estava. Vestida em seu traje de isolamento, aproximou-se dele, injetando o vírus, para em seguida injetar o antígeno.

– Vou ficar um tempo observando ele. Se precisar de ajuda, ligo pra um dos médicos.

– Agora só nos resta esperar – disse Carolina à enfermeira.

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