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A agua profunda

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IX
A morte

Valentina não accrescentou uma unica palavra á confissão que lhe escapou, contra sua vontade, e que não fez mais do que antecipar a inevitavel conclusão a que a convergencia de tantos indicios reveladores, arrastariam Chalinhy, mais tarde ou mais cedo. Elle, por sua parte, não fez nenhuma pergunta mais. Seguiu, quasi automaticamente, a mulher desvairada, descendo com ella a grande escadaria e atravessando tambem com ella o perystilo. Quando chegaram á porta do palacio o «coupé» do medico tinha partido já.

– «Meu Deus!» exclamou Valentina. «Deu-se o que eu temia. É muito tarde! Ah! E pensar que talvez morra n'este instante!..» Foram-lhe necessarios alguns minutos para arranjar uma carruagem de praça que levou proximamente meia hora, apezar das reiteradas instancias, em fazer esse longo trajecto, quasi metade de Paris, que a encantadora mulher tinha andado tantas vezes, occultando-se. E, comtudo, agora fazia o mesmo trajecto apertando nas suas as mãos d'aquelle a quem tanto tinha querido encobrir estas visitas. Norberto continuava calado; mas, de tempos a tempos, correspondia á pressão d'esses dedos fieis, e, na dor intima em que se debatia sob o imperio da mais dolorosa das revelações, a presença da mulher que por tanto tempo desconheceu e que via tão carinhosa, tão dedicada, enternecia-lhe o coração. Não ignorava actualmente, nada com respeito ás suas traições. Tinha-o ouvido gemer de dor ao comprehender que suspeitava d'ella, de maneira tão injuriosa, sugestionado por uma amante – e que amante!..

Traições, injurias, humilhações, nada tinha a perdoar-lhe porque tudo havia esquecido na sua piedade pelo marido que soffria, e que ella via soffrer. Porque se não teria evidenciado mais cedo esta alma tão retrahida e tão nobre? Porque não revelou tambem Valentina, para com o homem que amava dedicamente, mais vehemencia n'esse amor, mais expansões, porque lhe não patenteou toda a intensidade do seu affecto?

Ai de mim! A prophetica formula, do poeta antigo será sempre verdadeiro tanto no dominio dos modestos destinos particulares como nos das evoluções sociaes:

«A sciencia em relação á dôr…» a que ás vezes se deve accrescentar e em relação á falta de cumprimento dos deveres! Sem que a generosa Valentina desse per isso, a chamma que brilhava nos seus olhos, n'aquelle momento, provinha da febre que o ciume lhe despertára desde que sabia da infidelidade do marido.

Perante o vivo pesar que a traição lhe produzia sentia bem quanto o amava, de maneira que a tenebrosa intriga da invejosa Joanna produziu um resultado diametralmente opposto ao que ella desejava! E o marido desleal não estabeleceria tambem n'aquella mesma occasião uma comparação esmagadora para os seus indignos amores? Valentina e Chalinhy viviam ha muito tempo já uma vida recondita a par da vida apparente. Havia porém uma differença é que a reserva do marido servia para atraiçoar a mulher e a d'ella para cumprir uma missão de piedade filial da qual quiz, a todo o custo, evitar-lhe a amargura… Experimentariam elles todos estes sentimentos dentro da carruagem que os conduzia áquella scena suprema de tristeza e agonia? Liga-se aos nomes, pae e mãe, um respeito augusto que torna muito penoso termos de associar a elles idéas como as que deviam de futuro e para sempre, levar ao espirito de Norberto a recordação dos dois entes que lhe haviam dado o ser. O adulterio de sua mãe – a condemnação infamante do verdadeiro pae – o seu nome que não era verdadeiramente o que lhe pertencia. Que vergonhas! Que miserias! Como se lesse no pensamento do desventurado, Valentina disse-lhe, rompendo pela primeira vez um tão cruel silencio em frente da pequena casa aonde o antigo amante da mãe de Norberto acabava de morrer:

– «Fiz a tua mãe a promessa de não te dizer a verdade a não ser que elle te chamasse para junto de si nos ultimos momentos da vida. Ameniza-lh'os. É ella que t'o pede, pois é o unico caso em que desejava que tudo te fosse revelado… Tem a certeza que te está vendo n'este momento… É talvez a sua ultima expiação…»

– «Não me peças nada em seu nome,» replicou Chalinhy em voz quasi imperceptivel! «Incutir-me-has menos coragem. Conheço a minha vergonha e que uso um nome roubado.»

– «Soffreram muito,» respondeu ella. «Expiaram bem as suas faltas! Tu o saberás!.. Tu o saberás!..» repetiu estas palavras por tres vezes com uma convicção que mesmo n'aquelle momento de angustia fez aflorar aos labios do filho uma pergunta irritada:

– «Que mais devo ainda saber?»

– «Tudo,» replicou ella em tom grave. «Não são os actos que devemos julgar na vida são os corações. Ah! Cede aos impulsos do teu n'este momento solemne, meu Norberto, arrepender-te-hias mais tarde de não teres perdoado.»

Chegaram á porta da casa defronte da qual se achava o coupé do doutor Salvan. O cocheiro, que tinha descido da almofada achava-se junto da porta e ao reconhecer a marqueza de Chalinhy dirigiu-se para ella assim que desceu da carruagem.

– «O que ha?» perguntou-lhe Valentina percebendo na sua physionomia que se passava alguma cousa muito grave.

– «Morreu», respondeu o homem, muito baixo, indicando com a mão as janellas do primeiro andar da pequena casa, com a voz tão indifferente na sua gravidade fingida que toma a gente do povo para annunciar um acontecimento tragico e de cuja importancia parece participarem tambem, só pelo desempenho d'uma tal missão.

– «Morreu!..» repetiu Valentina e apertou a mão do marido para lhe dizer:

«Não teve tempo de saber a tua resposta e a tua primeira recusa, juro-te…»

«Não é verdade» accrescentou em seguida, dirigindo-se ao cocheiro: «foi emquanto se dirigiu á rua Barbet-de-Jouy que falleceu?»

– «Justamente, na occasião em que parti. Não sei como isso foi, comprehendeis, como cheguei n'este instante, o creado que entrava de chamar o padre é que me contou o accidente». A marqueza de Chalinhy sentiu que o marido ao receber a triste nova, se apoiava ao seu braço para não cahir. Conheceu que a commoção produzida pela noticia da morte, recebida d'aquella fórma, lhe augmentaria os remorsos, por ter perdido a occasião suprema e unica de mostrar alguma piedade por aquelle que sabia era seu pae.

Por esse motivo, e ainda para lhe evitar logo uma tal dôr, é que forçou o cocheiro a precisar um detalhe que devia, era sua convicção, attenuar, pelo menos n'um ponto, a impressão experimentada por Norberto. Viu, porem, que a segunda resposta o deixára mais perturbado ainda. Impallideceu tão horrorosamente que julgou que ia desfallecer. Valentina ignorava ainda que o ataque que victimou o doente se tinha declarado na occasião em que deparou inesperadamente com Norberto, julgando receber a visita do negociante enviado pela marqueza, por isso ella, muito afflicta, impelliu-o para dentro do carro, dizendo:

– «Estás muito commovido. É conveniente não entrarmos… Se queres dizer-lhe adeus, voltaremos cá ámanhã…»

– «Não,» respondeu elle. «Quero vel-o, immediatamente.»

– «Ah! meu amigo, perdoaste-lhe. Ah! Ainda bem!»

– «Perdoar-lhe!..» repetia Chalinhy, concentrando n'esta especie de suspiro todos os sentimentos tão contradictorios que o agitavam: o horror de ter sido a causa, muito involuntaria, mas a causa, em todo o caso, d'esta crise ultima a que o moribundo tinha succumbido, – a revolta sempre fremente da sua honra contra a revelação que lhe fizeram a respeito da mãe; – uma emoção violenta, á idéa de que, ali, dentro d'aquelle pavilhão solitario acabava de morrer aquelle que sua mãe amou e que lhe deu o ser, – um reconhecimento augmentado constantemente pela esposa mal apreciada e trahida, sim, que elle trahiu como sua mãe tinha trahido o velho Chalinhy.

Tinha, porventura, o direito de se indignar, de «perdoar», como dissera Valentina?

Para perdoar não era necessario ter auctoridade para condemnar?

Sentia tambem uma imperiosa necessidade de tornar a vêr, antes da completa desapparição que ia seguir essa morte, o scenario onde se desenrolou essa longa tragedia ultima na qual foi iniciado tão funestamente; – de tornar a vêr as feições do que n'ella foi o heroe, do homem que tão apaixonadamente se apoderou do coração de sua mãe para que ella o não tivesse renegado depois do crime: – de procurar sobre esse rosto immovel o traço d'uma similhança com o seu proprio rosto, a prova da filiação que lhe tornava de futuro tão cruel o ouvir pronunciar o nome que continuaria a usar. Batera a essa pequena porta, algumas horas antes, com uma pungente commoção quando julgava possuir a prova do adulterio da esposa. O que era isso comparado com o confrangimento da alma que sentia agora e que quasi o suffocava? A porta abriu-se como da outra vez. Como da outra vez subiu a estreita escadaria com o seu tapete, os quadros e a graciosa ornamentação á qual certamente presidira sua mãe. Como d'aquella vez entrou na ante-camara e depois na bibliotheca aonde se achava o doutor Salvan, ao qual na perturbação produzida pela catastrophe, não transmittiram a primeira resposta, por isso que acolheu os recemchegados, dizendo-lhes:

– «Esperava-os… Deixou já de soffrer e exhalou o ultimo suspiro, n'uma commoção suave e por sua causa,» accrescentou, dirigindo-se a Norberto. «Recuperou os sentidos, e pude comprehender que desejava tornal-o a vêr. Nas paralysias medullares progressivas está-se sempre á mercê d'uma syncope, e esta deu-se precisamente na occasião em que a minha carruagem partia. Ouvi o ruido produzido pelas rodas e elle tambem e lançou-me um manifesto olhar de reconhecimento!.. Cinco minutos depois deixou de existir… Havia muito já que morrera para o mundo e que entregára a alma a Deus. Não tendo mais nada a fazer aqui, vou presencear outras miserias. Ha-as bem peores e que não teem uma santa para as consolar…»

O medico retirou-se e o rodar da sua carruagem – o ultimo ruido da vida percebido uma hora antes pelo morto – annunciava que esse grande homem de bem ia, como tinha dito, presencear outras miserias; e aquella a cuja dedicação rendeu merecido preito em termos d'uma veneração tão enternecida continuaria na sua missão de caridade cumprida, ha annos, na velha casa do modesto quarteirão, asylo, n'outro tempo, de tantas vocações religiosas.

 

As tilias do jardim, na epocha em que guarneciam a cerca d'um convento, viram passar por sob a sua sombra no verão e as folhas douradas no outomno, muitas mensageiras da consolação, mas nenhuma d'ellas tinha o coração inundado d'uma piedade mais profunda e mais ardente do que essa mulher quando se ajoelhou na camara mortuaria. Tomou de novo entre a sua a mão do marido que, em pé, olhava seu pae, immovel na cadeira. A celeridade dos ataques repetidos não permittiu que transportassem Raynevilhe – demos-lhe o seu verdadeiro nome – para a cama.

Apenas, para prevenir qualquer choque nas convulsões do ataque, foi introduzido um travesseiro por detraz da cabeça, sobre o qual se destacava o seu rosto hirto e cuja extrema magreza attestava o marasmo d'uma physiologia gasta por muitos annos de doença.

Os labios não cobriam completamente os dentes, que brilhavam na bocca livida. As palpebras, mal cerradas, deixavam ver o globo vitreo dos olhos. Mas o doutor Salvan dissera a verdade: apesar dos signaes do soffrimento que deviam tornar o seu aspecto sinistro, denunciava o socego, a tranquilidade de redempção emfim alcançada. O padre, chamado á ultima hora, e que resava a um canto do quarto, tinha já collocado no peito do morto um crucifixo sobre o qual se cruzavam as suas mãos que pareciam de cera, e cujos dedos os espasmos do ultimo ataque tinham como que torcido.

Os cabellos raros e a barba toda branca foram penteados. O jaquetão de cachemira preta estava abotoado até ao pescoço, e tinham-lho deitado sobre as pernas, sem duvida para encobrir a deformação dos pés que as contracções deviam ter produzido. Valentina percebeu, pela violenta pressão dos dedos do marido sobre a sua mão, que os pensamentos que o triste espectaculo lhe suggeria eram muito dolorosos. Levantou-se e conduziu-o á bibliotheca, onde a senhora de Chalinhy, de 1875, sorria na sua moldura oval, e, chegados ali, disse-lhe grave, acariciadora e persuasiva.

– «Volta já para a rua Barbet-de-Jouy, Norberto, peço-t'o. Ficarei aqui mais algum tempo para cumprir um dever; o teu cifra-se apenas em o coração lhes fazer presentemente inteira justiça…» E com a mão indicou-lhe primeiro o retrato da mãe e em seguida a porta do quarto onde repousava o morto. «Entra no meu gabinete e procura na gaveta da secretaria um cofre de couro; abre-o» e desligou d'um bracelete aonde estavam presos alguns berloques, uma pequenina chave d'ouro, que lhe entregou. «Ali encontrarás um sobrescripto que tem por fóra as palavras: «Para meu marido, depois d'eu morrer», escriptas pela minha mão. Toma conhecimento do que contem e se desejares voltar aqui, iremos depois juntos… É ella que assim o quer…»

Achava-se tão esgotado por uma série de acontecimentos qual d'elles mais violento, que obedeceu á esposa, como teria obedecido vinte e cinco annos antes a uma supplica d'aquella cuja effigie inesperadamente apparecida n'aquelle mesmo logar se lhe tinha afigurado como mais compromettidor indicio. Recebeu a chave e deixou-se conduzir por Valentina até á porta, e meia hora depois, tendo encontrado o cofre de couro negro de que lhe falou, e dentro do cofre o sobrescripto com a epigraphe indicada, eis as paginas que começou a ler. Eram todas escriptas por Valentina e datadas de 3 de setembro de 1897, dois dias precisamente antes da mãe fallecer. As palavras traçadas no sobrescripto estavam reproduzidas no principio d'aquellas paginas, cuja primeira linha, por uma recordação do terno appello feito pela senhora de Chalinhy a Valentina, o fez logo chorar. Tinha por ventura culpa de não ter conhecido, então o que era esta mulher! Porque lh'o não teria sua mãe revelado? Ai! As mesmas reservas da sua vida de casado, conheceu n'outro tempo, no seio da familia, como filho.

Tinha a pesarem sobre elle as consequencias sombrias e crueis do seu sêr concebido na mentira e temor. Trazendo tambem o mesmo peso sobre o coração, como teria sua mãe podido viver com elle n'essa communhão que suppõe a inteira sinceridade? É a inevitavel expiação das felicidades prohibidas que pela necessidade do mysterio, não permittem a uma mulher dizer ao seu proprio filho qual o sangue que lhe corre nas veias e o nome d'aquelle que deveria chamar seu pae!

«Para meu marido, depois de eu morrer.»

«3 de setembro de 1867

«A mamã esteve hontem tão mal, que o medico julgou que não vivesse 24 horas. Pediu-me que não a abandonasse, ella que de ordinario deseja sempre que me vá deitar. A enfermeira devia substituir-me depois da meia noute. Comprehendi logo, pela sua terna insistencia que tinha uma ultima recomendação a fazer-me, á qual ligava uma extraordinaria importancia. Não podia suspeitar quanto essa entrevista teria de solemne e que confidencia me ia ser feita, a qual quero transcrever aqui, n'este momento em que todas as suas palavras estão ainda tão precisas na minha memoria. Quer ella, se eu morrer antes de uma certa pessoa, que meu marido seja o depositario d'este segredo, que não teve força para lhe revelar. Assim o quer para que um certo dever seja cumprido, dever que me confiou. Satisfarei os seus desejos deixando depois de mim, se for necessario, este testemunho. É precizo que eu reproduza as suas proprias palavras e que não misture com ellas as minhas emoções. Não poderia expôr d'outra fórma o seu pensamento. Depois d'essa conversa estou exhausta, estonteada. Só a vejo a ella e só a ella ouço.

«Reinava em volta do palacio um profundo silencio.

«Nesta epocha do anno poucas carruagens transitam pelas ruas Varenne e Barbet-de-Jouy. A palha que se fez espalhar pelas duas ruas amorteciam-lhes o ruido.

«Instalei-me á cabeceira da cama, com a minha costura, mas não consegui fazer nada.

«Pousava-a constantemente para olhar o pobre rosto d'essa mulher, que era ainda tão bella quando casei, e onde vejo já pronuncios da morte proxima.

«Fechou os olhos e parecia dormir.

«Rezava mentalmente, pedindo a Deus coragem para me fallar, e quando levantou as palpebras, vi-lhe no olhar um tão intenso ardôr que advinhei logo o seu desejo e antecipando-me, para attenuar um pouco o grande esforço que faria em articular as palavras, disse-lhe:

– «Está muito afflicta, mamã?.. Quer alguma coisa de mim? Estou prompta para lhe fazer o que desejar.»

– «Quero,» respondeu ella. A sua voz tão fraca n'estes ultimos dias tornou-se forte. Senti que ia gastar os ultimos lampejos da vida. «Como isto é penoso», acrescentou ainda.

«A sua enorme perturbação assustou-me tanto que lhe disse: – «querida mamã está muito incommodada. Se tem qualquer pedido a fazer-me sabe que estou sempre prompta. Espere para amanhã, para depois ou para d'aqui a oito dias… Terá então já recuperado as forças…»

– «Não,» respondeu, mostrando-me o rosto terrozo, amarellado, «terei ja morrido. É precizo que te falle agora, Valentina,» continuou, com a sua voz d'outro tempo, readquirida por um milagre de energia, «repito-te, vou morrer. Sei-o perfeitamente. Disse-mo o medico quando lhe declarei que tinha um assumpto extremamente importante a regular. Esse assumpto consiste em confiar á tua honra um segredo que não deve ser conhecido de ninguem, excepto de Norberto, em duas circumstancias que precisarei. Consiste ainda em te encarregar d'uma missão muito delicada, muito penosa. Se vires que não podes cumpril-a, peço-te que m'o digas francamente.»

– «Guardarei o segredo, mamã, e se a missão não é impossivel, cumpri-la-hei. Prometto-lho.»

– «Obrigada,» disse ella, «mas para ter coragem de te fallar, preciso orar primeiro.»

«Fechou os olhos. Na sua triste figura, tão doente, vi uma expressão de intensa dôr.

«Os labios descórados recitavam muito baixo uma oração que eu não ouvia. Tinha medo…

«Quando a oração mental terminou, disse-me:

«Apaga a luz. Não poderei fallar se me vires e eu te vir a ti.» Obedeci-lhe:

«Vem para o pé de mim», repetiu ella, «muito proxima, e dá-me a tua mão.» Obedeci-lhe ainda.

«Os seus dedos ardiam em febre e na obscuridade em que nos achavamos, o som d'essa voz que parecia vir da outra vida, – e não era a confissão d'uma alma que não pertencia já a este mundo?.. – nunca me esquecerá.

– «Minha filha», começou ella, «o que tenho a referir-te deve ser dito sem interrupção.

«Amei um homem que não era meu marido, que vive ainda e é o pae de Norberto. Chama-se, direi antes, chamava-se Filippe de Raynevilhe…

«Estando prestes a entregar a alma ao creador e a ser julgada por uma falta que bastante expiei já e que expio ainda n'este momento, não tentarei desculpar-me.

«Conheci Filippe antes do meu casamento; era filho d'um dos visinhos do solar de meus paes, na provincia. Amámo-nos, sem reserva, com a esperança, com a certeza de um futuro enlace, que um inesperado acontecimento, uma mortal inimisade entre seu pae e o meu, a proposito d'uma questão d'interesse, tornára impossivel.

«As duas familias sabiam dos nossos sentimentos.

«A sua obrigou-o a fazer uma viagem, e a minha occultou-me que havia sido violentado a partir.

«Consenti em casar com o marquez de Chalinhy.

«Repito-te que não procuro justificar-me.

«Precedi mal desposando alguem que não amava, tendo a imagem d'outro no coração. Mal fiz ainda em não occultar de meu marido a minha indifferença para com elle. Peor fiz, porém, affastando-o pela minha frieza, em tomar como pretexto a sua infidelidade para justificar a minha.

«Teve uma amante. Soube-o. Disse comigo que a sua falta de fé conjugal me tornava livre.

«Encontrei Filippe no mundo, a nossa antiga paixão reviveu; lancei-me nos seus braços e fui mãe.»

«Ficou como morta. Apertei-lhe a mão com toda a piedade que, perante a confissão d'uma tragedia tão simples mas tão pungente na sua expressão muito humana, me enchia o coração. Com a outra mão, a que conservava livre, acariciava-lhe as faces, como faço algumas vezes, quando soffre mais e não supporta sequer que lhe toquem. Os meus dedos molharam-se com as suas lagrimas que lhe corriam dos olhos, silenciosamente, promovidas pelas caricias, que n'essa noite lhe prodigalizei.

«Para me provar quanto taes caricias, depois do que acabava de me confiar, lhe eram agradaveis e doces, agarrou-me na mão livre e levou-a aos labios. Nunca chorei tanto como n'esse momento.

– «O peor está ainda para dizer», repetiu depois: «quando Norberto nasceu juro-te que não receberia o nome de Chalinhy se não tivesse tido outro filho. Não tinha tido força para me conservar uma mulher honesta, por causa d'esse filho, e não tive tambem coragem para o abandonar. Illudi a minha consciencia justificando-me com tantos exemplos de eguaes compromissos que via em torno de mim, e tambem porque a grande fortuna era minha. Estes miseraveis sophismas foram bem castigados. Se tivesse fugido com Filippe nada do que aconteceu, e que é medonho, teria acontecido. Era muito rica, bem o sabes. Vivia no mesmo meio em que tu vives hoje, sem ter nunca que me preoccupar com as questões de ordem material. Reynevilhe herdára dos seus uma fortuna muito abalada. Para viver na sociedade e fazer figura n'ella gastava mais do que os rendimentos. A infelicidade, soube-o depois, perseguia-o tambem. A fallencia d'um banco, em que imprudentemente collocára uma parte dos fundos, acabou de o arruinar. Se ao menos me tivesse dito alguma coisa!.. Mas eu ignorava tudo! Vendo-se na necessidade de mudar de vida – o que segundo elle imaginava, o desgraçado, equivalia a perder-me – commetteu um crime. Tinha um tio muito velho e muito rico, sem filhos. Nenhum dos primos necessitava verdadeiramente da herança.

«O tio falleceu de um ataque, na epocha em que Filippe se achava mais atormentado, e, tendo sido chamado para junto d'elle, não resistiu á tentação, destruiu o testamento e fabricou um em que era declarado seu unico herdeiro… Uma manhã, ao despertar, Chalinhy entrou no meu quarto e mostrou-me um jornal onde se relatava a descoberta da falsificação e a prisão de Reynevilhe… Se não enlouqueci repentinamente, foi porque o olhar de meu marido me fez comprehender que suspeitava da nossa ligação. Pensei em Norberto, e tive força para me calar…»

– «Ah! pobre mãe!» exclamei, «tem razão em dizer que tudo expiou. Pagou tudo com a dedicação por seu filho n'esse momento. Tem porventura a culpa de se ter enganado a respeito do senhor de Reynevilhe e d'elle ser um miseravel?»

– «Não lhe chames miseravel, porque o não é», interrompeu logo. Quando classifiquei d'uma maneira tão dura o amante falsario, a minha imaginação ia alem da sua confidencia. Reportava-se á historia sinistra d'uma chantage. Pela energia com que a sua mão se crispou sobre o meu braço, reconheci que os seus sentimentos pelo pae de Norberto não eram de odio e de desprezo. Continuei a escutal-a:

 

– «Tudo o que Filippe havia feito, fel-o simplesmente porque me amava. Posso fazer a mim mesma a justiça de que tive a intuição d'isso, desde o primeiro momento. A certeza d'um horrivel equivoco é que evitou que succumbisse logo, ali mesmo.

«O meu instincto de mulher não me enganou… Mas», e o tom da sua voz denunciou um intimo desespero, «como posso provar o que sei tão bem! Julgam-se os homens pelos seus actos, e este é dos que se não perdoam. Uns matam porque amam, encontram ainda quem os proteja, quem os lamente, quem os estime. Para um falsario é a deshonra, a vergonha eterna, inexplicavel!.. E portanto!.. Escuta, Valentina, conheces-me. Tão verdade como eu vou comparecer deante de Deus, nunca mais na minha vida commetti uma segunda falta, nunca mais. Observaste a minha vida. Vaes presencear a minha morte. O juramento d'uma mulher no estado em que me encontro, poderia ser duvidoso?.. Pois bem! Juro-te que Filippe não foi mais culpado do que o que mata porque ama. Não teve senão o amor a compellil-o ao crime, repito-te, sob juramento, só o amor. A sociedade tinha o direito de o julgar pela maneira porque o fez castigar. Os seus tinham o direito de o desprezar e os amigos de não mais o conhecer. Elle mesmo tinha o direito de se condemnar, como fez tambem… Mas eu, por causa de quem commetteu o crime, para me não deixar, para viver a minha vida, porque me amava, emfim, era a unica que tinha o dever de o não despresar e não o despresei…»

– «Vive ainda?» perguntei-lhe quando terminou. «Sabe que vive e aonde vive?»

«Posto que não comprehendesse ainda muito bem o fim a que tendia esta suprema confidencia, percebia comtudo que queria associar-me d'alguma maneira á sua obra de piedade. Sem duvida tinha continuado a manter uma correspondencia activa com esse infeliz, retirado longe de Paris, e tendo-lhe occultado o seu estado, temia que uma carta d'elle, recebida depois da sua morte, fosse parar ás mãos de Norberto. Ia pedir-me que fosse eu a mensageira de tão triste situação? Estava já resolvida a prometter-lhe que contasse comigo. Não presenti senão uma parte da sua vontade. Podia lá adivinhar a que excesso de dedicação a conduzira a sua piedade por esse criminoso por amor, do qual era a unica consolação, no seu tristissimo estado physico!

«Tinha-a muitas vezes ouvido dizer que o mundo está cheio de romances occultos, mais phantasticos na sua realidade palpitante do que todas as invenções dos livros.

«Mas que uma aventura como essa fosse possivel – que uma mulher da nossa sociedade tivesse levado a exaltação do seu sentimento até consagrar a melhor parte da sua vida a um amante cahido – (e em que desastrosa queda!) – que encontrasse meio de lhe transmittir a esmola da sua ternura, por cartas, que o impediram de se matar, – que tivesse continuado a escrever-lhe durante o tempo do cumprimento da pena – que tornasse a ver esse amante depois de cumprida a mesma pena; que tivesse podido não uma vez, mas cem, mil vezes, escapar a todas as exigencias do seu meio para ir a uma casa perdida ao fundo de um arrabalde, passar uma hora com elle, reconfortal-o na sua angustia, auxilial-o com os seus conselhos na sua tortura moral – que esse homem culpavel d'um tão grande crime, não tivesse mais sob esta influencia, nutrido senão um unico pensamento, mostrar-se digno d'uma tal amiga, resgatar um instante de aberração por uma vida inteira consagrada a boas obras – e que as relações d'esses dois seres se prolongaram assim, de mez para mez, durante annos, sob a ameaça d'um perigo continuo, n'este Paris do fim de seculo 19, tão positivo, tão brutal – não, não teria nunca imaginado um similhante romance e menos ainda que a sua heroina fosse a mãe de meu marido, esta marqueza de Chalinhy, que tanto me seduzio quando lhe fui apresentada, por a sua doçura, e comtudo ouço bramir na sua voz de moribunda todo este martyrio intimo dos seus tragicos amores.

– «… Quando se descobriu tudo», disse ainda, «uma unica idéa o preocupou: fazer-me saber o motivo porque tinha cedido a essa allucinação, obter o meu perdão e morrer. Tenho as suas cartas. Lelal-as-has e saberás então quanto soffri. Ah! o que eu soffri?.. Indicava-me um meio de lhe responder. Obtive d'elle que vivesse. Obtive que se deixasse julgar e condemnar quando se podia eximir a tudo suicidando-se. Mas eu não o queria. Amava e tinha fé. Tenho sempre tido fé, ainda mesmo quando me abandonava a esta felicidade prohibida… Tive logo a evidencia de que esta horrivel prova era o castigo dos dois, que Deus não nos puniria depois, se acceitassemos o castigo d'esta cruz. E que pesada que ella tem sido, para elle até agora, e para mim que devia escutar os commentarios do mundo a seu respeito, sem ter a liberdade de o defender, nem mesmo de o chorar! Abafou-se o mais possivel o crime, por causa da familia, mas não tanto que a noticia do julgamento não chegasse ao dominio publico… E nos annos seguintes, emquanto cumpria a pena eu vivia no luxo, na honestidade e não abraçava nunca o seu filho sem me lembrar: «o pae está na prisão…»; sem o ver, a elle, na sua cella, que muito bem conhecia pela descripção feita nas suas cartas. Teve sempre meio de m'as enviar… E mais tarde, quando foi solto, e que nos tornámos a encontrar em face um do outro, pela primeira vez depois do funesto acontecimento!.. Não padecerei mais ámanhã quando morrer… Emquanto estava na prisão, uma ironia da sorte quiz que herdasse, em consequencia da morte subita de um primo que falleceu sem testamento, uma nova fortuna. Foi então que me foi permittido julgal-o completamente, vendo-o, livre, retirar-se n'um bairro pobre de Paris, com um nome falso, e começar ahi uma existencia de caridade, que não teve durante annos outro cambiante, senão procurar miserias a soccorrer, e as minhas visitas… Até que fiquei detida n'este quarto pela doença não se passou uma unica semana, quando estava em Paris, que não fosse vêl-o duas e tres vezes. Viuva, estas visitas tornavam-se-me faceis; mas n'outros tempos eram em extremo perigosas. Tinha receio principalmente por causa de Norberto. O que então senti pouco importa. O que importa é que vou morrer e desespera-me o que elle soffrerá depois da minha morte…

«Eis o que te desejava pedir, Valentina, que o vás ver quando eu deixar de existir, para lhe entregares as cartas, que não tive coragem de destruir, e que te esforces para lhe tornar o golpe o menos doloroso possivel. É actualmente um velho e um doente. Teve um ataque de paralisia ha mais d'um anno. Conhece-te. Sabe por mim o que és, e o que valem os primores do teu coração, pelo qual tenho tanta estima. É esta a maior prova que te posso dar d'isso!.. A tua presença será o unico lenitivo que poderá receber. E depois, se tenho sido boa para ti, se conservares de mim alguma recordação, voltarás lá algumas vezes para o ajudares a esperar o momento de nos juntarmos…»

– «Prometto que farei o que me pedes mamã,» respondi com os olhos inundados de lagrimas. Só com esta recordação as lagrimas caem ainda sobre este papel, mas não é de mim que se trata. É preciso que refira ainda estas outras phrases, que me disse tambem:

– «Norberto deve ignorar tudo, sempre. Mas se a fatalidade quizer que te achasses muito doente e em perigo de desappareceres do mundo antes de seu pae fallecer, peço-te que falles. Falla tambem se Filippe reclamar o filho á hora da morte… Se não absoluto silencio!».

– «Transcrevi esta conversa sem nada omittir, immediatamente, para que possa, caso qualquer das duas circumstancias se produza, obedecer inteiramente a essa pobre senhora. Depois será á sua supplica e não á minha que deve obedecer. Que a ouça como eu a ouvi! E que me acredite piamente dizendo-lhe que tenho por ella, n'este momento em que os nossos corações acabaram de bater tão proximos um do outro, durante essa hora de agonia moral, tanta veneração como piedade!

«Disse-me ainda que o sr. Reynevilhe mora actualmente na rua Lacépède n.º 11, com o nome de Dumont.

Valentina.»