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O Inferno

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II

Se não podem accusar-me de má fé na exposição dos principios que tentei impugnar, não faltará quem me accuse de máo juiz em tudo o mais. Estejam certos que não ficará aqui. O inferno tem seus devotos que não sacrificam ás Graças, mas ás Eumenides. Bem os ouço gritar: impio! incredulo! ignorante! detestavel pensador! monstro! scelerado! por que o não prendem, e mandam ás galés! Ousar descrer das penas eternas! Que faz o ministerio publico? Onde está o carrasco? Em França já não há lenha para uma fogueira? Votamos pelo inferno, queremos que os nossos paes e os nossos filhos sejam condemnados. Ao fogo com os selvagens, idolatras musulmanos, judeus, indianos, herejes! Ao fogo com os peccadores recalcitrantes! fogo eterno com os philosophos impenitentes! Não nos esbulhem d'esta amavel crença. Que havia de ser da moral? Queremos inferno e diabo, a maldição e o mal. Se muita gente se condemna, peior é isso, mas a culpa é d'ella. Que ardam para sempre! É vontade de Deus. O teu debil sopro, ruim pensador, não apagará as chammas salutares que não corrigem os mortos, que pouco emendam os vivos, mas fazem tremer as freiras nas suas cellas e alegrar os santos no paraiso. Viva o inferno! Se se elle apagasse, haviamos de accendêl-o com os teus livros. Queremos o inferno e seus supplicios, embora lá vamos cahir com as nossas mães e com as creancinhas que riem no collo d'ellas. Sem inferno não ha fé, nem Egreja, nem religião, nem lei, nem familia, nem moralidade, não ha nada. Conservemos o inferno! É absurdo? mais um motivo. Crédo quia absurdum. Parece-te isto injusto, incredulo, impio, perverso que não queres acreditar que Deus creasse tantos entes fracos para perdel-os sem missão! Imprudente! que ousas escutar a tua consciencia, quando a tradição falla! Malvado! coração de pedra que não dás dinheiro ao Papa para lhe redourar a thiara e vais dal-o a pobres e proscriptos, e estás ahi a lastimar os billiões de creaturas que povoam o abysmo. Ó sandeu! Ó miseravel! Algum proveito colhes atacando verdades tão uteis. És como os malfeitores que quebram os lampeões. Se assim vais, arrasarás os carceres. É bem de vêr, lá tens as tuas razões para querer destruir o inferno; se fosses de melhor casta havias de crêr n'elle.

III

Advogados do inferno, que sabeis a tal respeito? Sereis acaso mais innocentes do que eu? É verdade que sou peccador. Se todavia as minhas acções e as vossas fossem pezadas, talvez eu podesse estar a respeito do futuro tão tranquillo como vós. Mas Deus não me ha de comparar comvosco para absolver-me ou condemnar-me: será com o modêlo de perfeição que eu tenho no espirito, e que eu devêra ter copiado no decurso de minha vida. Não pratiquei – de mais o sei – todo o bem que podia; condescendi com fraquezas que vós, por ventura, não conhecestes; mas talvez que eu, sem que o soubesseis, me esforçasse e vencesse nos conflictos em que succumbistes. Eu não vos julgo, ó crentes no inferno, que encaraes sem impallidecer; eu, porém, que não creio no vosso inferno, não posso sem pavor meditar no julgamento divino. Não desespero na bondade de Deus, mas creio em sua justiça, e nutro viventissimo sentimento da perfeição evangelica, e por isso mesmo sinto grandissimo pezar de minhas culpas, e não me considero isento de expiação.

Oxalá que eu podesse dar de mim melhor testemunho! Podesse eu chegar mais confiadamente ao tribunal do soberano juiz! Tivesse eu tão socegado o espirito como inculcais o vosso, ou tão puro como vós imaginais que o tendes! Quem me dera ser santo, não aos meus proprios olhos, como dir-se-ha que sois aos vossos, mas aos olhos das pessoas de bem e das multidões. Então impugnaria eu a eternidade das penas, não já com melhores razões, nem com argumentos de mais justiça, mas com a auctoridade que uma vida santa e reconhecida como tal imprime na palavra humana. Ha ahi quem se não renda ao vigor de um discurso, e se docilise á virtude ou ao renome de quem discorre.

Não discutamos, pois, a minha vida, que eu não tenho que entender com a vossa. Em meu soccorro valho-me unicamente do raciocinio; desadoro outro prestigio, e não me dobro a outro poder. Refutai-me, se podeis, com razões tão claras como as minhas; mas deixemo-nos de insinuações calumniosas; nada de injurias. Isso que prova? Quando fosse verdade que todos sois pessoas virtuosas que vão direitas ao paraizo, e que eu sou máo, e o peor dos homens, sêde francos, seria isso prova de que eu argumento mal, e vós argumentais bem? Inferirieis d'ahi o que quer que seja contra a infinita misericordia de Deus? A isto é que é preciso responder, senhores. Eu por mim digo que a dôr, n'este e no outro mundo, é meio de expiação; digo que a dôr, n'este e no outro mundo, acarêa a piedade; digo que o castigo mais justo deve ter fim, e que o perdão é o fim, a corôa, a perfeição e explendor das obras da justiça; que um castigo infindo seria um castigo desarrasoado, sem escopo, sem moralidade, inutil ao culpado, ás testemunhas e ao juiz; – um acto de colera, de odio e furor – um feito sombrio e sinistro como transportes de demencia incuravel. Digo que tal crença é mal cimentada, e assim funesta em este mundo, como odiosa no outro; que nem o mal nem o castigo são eternos; que eterno é só o bem, a omnipotencia, a bondade, a justiça e misericordia de Deus, e que estas coisas, que separais, são inseparaveis em Deus. Digo, conforme a S. Paulo, que ceo e terra hão de passar; que a fé ha de passar tambem, e tambem ha de passar a Esperança, e que tudo ha de acabar, salvante a Caridade.

Que vos parece isto? que redarguís? Ser-vos-ha mister mudar a propriedade das palavras, crear linguagem nova, dirimir as leis da razão, e cuidar em extinguir tanto em vós como nos outros as vivas luzes da consciencia, se quereis impugnar estas proposições.

IV

Mas ninguem póde desluzir de seu espirito o reflexo que ahi lampeja a verdadeira luz, se uma vez a entre-viu. Quando houverdes lido este livro, ser-vos-ha aprasivel fechar os olhos, e injuriar-me; não obstante, sentir-vos-heis alumiados, crentes na verdade a vosso pezar; e, embora o negueis, é a vós mesmos que mentis. Negal-o-heis com a bôcca; mas não com a consciencia.

V

Espero resignadamente as insolencias. Se m'as não disserem alto, dil-as-hão baixinho. Este livro irá ao Index, e tal, que o não tiver lido, se julgará abundantemente auctorisado a prohibil-o aos outros, como livro pernicioso. Vedar-se-ha ao peccador inveterado, contentissimo de sua recente conversão, de buscar aqui motivos para ser mais humilde; vedar-se-ha á viuva lagrimosa de procurar consolar-se n'esta leitura. Divulgar-se-ha que este livro é tição do inferno, que queima os dedos que lhe tocam. E ha de haver muito quem o diga na melhor boa fé.

A Egreja não alenta curiosidades de espirito. Porquê? De que se teme? Profunde-se cada vez mais a moral de Christo; que ella nos irradiará cada vez mais formosa, mais salutar e verdadeira. Por si mesma se justifica; dispensa pregões; nos labios d'um menino inflora-se tão bella como nos discursos d'um sabio.

As leis moraes não são arbitrarias; não são caprichos divinos nem tenebrosos decretos cuja sabedoria se esconde á nossa intelligencia. São perfeitamente adequadas á nossa natureza e necessidades. Não ha uma só, cuja inobservancia não surta graves desordens; uma só que não proteja a dignidade humana, a liberdade, o direito, o debil contra o forte, o innocente contra o cavilloso. São freio de paixões, luz e regras das acções publicas ou clandestinas, particulares ou collectivas, condição que influe no desenvolvimento de nossas faculdades, caução de nosso repouso, e complexamente de todos os nossos actos.

A Egreja, n'este ponto, desconhece a sua força, se a discussão a intimida; mas, por outro lado, cumpre confessar que ella desconheceria sua fraqueza, se tolerasse discussão de certos dogmas, e em particular do dogma das penas eternas. Se quer que haja crença no inferno com fé egual á crença da redempção; se quer a mesma fé para a colera sem fim e para o amor illimitado, imponha silencio a respeito de tudo, que é prudente. Mas d'essa imposição de silencio o resultado é este:

VI

Resulta que os fieis creiam cegamente coisas profundamente contradictorias – a verdade radiosa e o erro inintelligivel, Deus e inferno. Tambem resulta que as multidões sempre a multiplicarem-se rejeitem cegamente o inferno, e com o inferno os mais idoneos dictames da moral, indiscretamente sumidos n'esse abysmo. Imaginam uns que a mesma voz que ensina uma injustiça não póde ensinar uma verdade; imaginam outros que a mesma voz que ensina consoladoras verdades, não póde ensinar erros. A má educação, que, no rodar de muitos seculos, lhes deram, torna-os a todos egualmente incapazes de discernir o que é falso do que é verdadeiro, na mesma idêa: encaram-na a vulto, qual lh'a offerecem, e ou a guardam ou rejeitam á tôa, verdade e mentira de mistura, porque ambas as idêas estão identificadas em uma no espirito d'elles.

Todavia todos os partidos são máos, e nenhum póde, relativamente á questão presente, socegar a alma. Ainda não encontrei fiel que se me confessasse impassivel ao horror das penas eternas, quando pensava n'isso. E tambem não encontrareis incredulo que não haja confusamente sentido a precisão de sobreviver a si proprio, e não haja suspirado pela justiça do céo, vendo as iniquidades da terra. A verdade falla assim ao coração de todo homem, alvoroçando-o até que elle a comprehenda.

O fiel diz de si para comsigo: «Deus é cruel»; mas, reportando-se á Egreja, cuida que as inspirações de sua consciencia são suggestões diabolicas, e vai aterrado rezar diante da cruz um acto de fé em um Deus sem misericordia. Pelo contrario, o incredulo diz entre si: «Deus existe; os máos serão castigados»; e, se em seguida se aturde e apaga no intimo aquelle presentimento lucido da justiça divina, é porque lhe estão sempre figurando o brazido inextinguivel e as atrocidades sem fim que enterneceriam tigres e fariam chorar as pedras sobre o destino dos condemnados.

 

VII

Tal é hoje em dia o estado das almas relativamente a um dos mais importantes dogmas da religião. Fé cega, incredulidade cega, fé que acceita um Deus vingativo e exclue do céo a piedade, incredulidade que busca um Deus compadecido, e, por que não acha piedade no céo, exclue de lá a justiça. E entre estes dois bandos de almas atormentadas, está uma corporação docente, que se inculca infallivel, mas que, no intento de proteger sua infalibilidade, anathematisa a razão humana e excommunga a consciencia.

VIII

Eu tenho tido parte nas angustias da fé que, até de olhos fechados, conhece que a transviam; e, se, mais tarde, abre os olhos afeitos á escuridão, como os de Saul deslumbrado, nada vê, e caminha ás apalpadellas. São passados esses dias de turvação; mas talvez n'este livro negrejem vestigios d'elles.

Não achareis n'esta obra um tratado methodico cujas partes se encadeiam e deduzem logicamente, desde a primeira até á ultima pagina. Em questão, a um tempo, tão complexa e excitante, ser-me-hia custoso sujeitar-me aos vagares do methodo. A tal qual ordem que trava as peças d'este escripto, vem como compendiada no assentamento das reflexões e meditações que a formam. Ninguem melhor do que eu sabe quanta deficiencia desvalia o escripto. Não importa. Eu, por mim, rodeei o alcaçar de Satan; e, se lhe não puz cerco segundo as regras da arte, não lhe deixei parede nem pedra que não soffresse algum abalo. Não se faz mister tempestade para lh'o baquear: um leve sôpro o fará cahir.

FIM