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O Inferno

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Que jactancia é essa então d'um desprendimento de affectos e vontades? Para que querem insinuar em nossos lares taes inquietações, terrores e escrupulos, unicas occupações do claustro? E para que é, em nome do ceo, sobrecarregar de jejuns e abstinencias a jornaleira, a camponeza, a mãe, que já vacillam sob o fardo do padecer e trabalhar?

Vê-se que theologia e bom siso são coisas infelizmente contradictorias. Vê-se que seria preciso abolir o inferno para que depois viesse a renuncia das macerações, terrores e falso ideal que um claro entendimento reprova.

Mas porque não se apaga o inferno? Extincto elle, brilharia o purgatorio com luz mais viva e salutar. O inferno é que faz odiosa a liberdade, rebaixando-a e vilecendo-a; o purgatorio volve-a estimavel, realçando-lhe bellezas, dignidade e grandeza, sem lhe dissimular os perigos e as penas. Quem crê no castigo eterno, enterra o talento para que o Senhor lhe não toque. Quem melhor conhece o Senhor e sua justiça faz render cinco talentos em casa do banqueiro, arriscando-se a perdel-os. O purgatorio actualmente de que vos serve? Dizem que a pobre carmelita se abalança a lá arder milhares de annos, por causa de algum secreto estremecimento do seu corpo que ella tanto disciplinou; por causa do captivo espirito que tão enfreado trazia, ou, emfim, á conta do coração generoso, cujas pulsações tantas vezes abafára.

O purgatorio deve aterrar principalmente a freira e os que vivem como ella; ora os mundanos não tem razão de se affligirem, antes devem consolar-se, pensando n'aquelle logar de supplicio. A nós, filhos do seculo, não nos é racionalmente permittido aspirar áquella dolorosa felicidade, que é castigo dos sanctos e o seu primeiro galardão ao mesmo tempo. Em vez, porém, de o desejar, e desejar em vão, como nós o temeriamos, se elle fosse a unica estancia em que se cumprisse a justiça de Deus! Que mudança se faria em tudo d'este mundo! A perfeição e a salvação não estaria na ociosidade em joelhos, no terror em oração, no fugir ao proximo, no entregarmo-nos a algumas privações e dôres corporaes, arbitrariamente substituidas ás dôres e sacrificios de uma vida proveitosa. Então se entenderia que ha dous modos de abusar de nossas faculdades, uma que está no desprezo d'ellas, com receio de as usar inconvenientemente; outra que consiste em nos servirmos d'ellas indiscretamente e ao avesso das intenções da Providencia que nol-as deu.

A doutrina do Evangelho não é doutrina de abstenção; é doutrina de acção: causa porque o purgatorio lhe quadra melhor que o Evangelho. Carecemos menos de frades que de christãos. Se o inferno refreia o mal, tambem impede o bem. A ameaça seria salutar; mas ella faz mais que ameaçar, empedra como a cabeça de Meduza quem a encara a fito. Tende a supprir com uma especie de passibilidade estupida a livre e intelligente actividade da alma. Não derime o egoismo, exalta-o a mais não poder, e tal exaltação devidamente localisada no deserto, n'uma gruta, no claustro, é medonha de vêr-se no seio das familias.

III
Discurso de uma mulher de sociedade que havia tocado a perfectibilidade theologica

De que serve amar-se a gente n'este mundo? Acaso nascemos uns para os outros?

Somos apenas companheiros de viagem que uma eventualidade ajuntou por momentos, mas que breve se hão de apartar, e talvez para sempre. Prestemo-nos de passagem alguns serviços, mas por amor de Deus, sem nos ligarmos reciprocamente. Por que ha de a gente amar-se? Vós que me ouvis, sabeis quem sou? E eu que vos fallo sei quem vós sois? Tendes um ar angelical, ó meu irmão, mas o interior de vossa alma não o vejo; o semblante do homem é enganador; a sua lingua é atraiçoada, as suas proprias virtudes são perfidas.

N'este mundo é tudo armadilha e mentira. Que demencia o amar, quando, com certeza, ninguem póde fiar-se d'outrem! Que injustiça querer um que o amem, quando nem a si mesmo se conhece alguem, e a cada hora se altera o genio, e ninguem póde fiar mais da duração de seus sentimentos que da duração de sua vida! Viajamos mascarados, só conhecidos de Deus, mas tão occultos a nós mesmos quanto aos outros. A que propendemos? Mal o sabemos, tão fluctuante é a nossa razão. Se melhor nos conhecessemos, a maior parte de nós se mutuaria rancores; em vez, porém, de se odiarem, os homens se entre-buscam no seio das trevas, attrahidos pelo mysterio que os innubla, e que devêra, se elles fossem discretos, afugental-os uns dos outros.

Ah! não nos amemos, não nos amemos! Ai d'aquelle que dá seus amores á creatura! Ai dos que se amam sobre a terra! É sombra que abraça a sombra, é o nada que se une ao nada. Amavel é só o bem: o restante é detestavel. Meu pai, honro-te e sirvo-te, por que vai n'isso um dever meu, e porque podes ser, sem que eu o saiba, um santo; amar-te, porém, não posso, porque, se n'este instante morresses, ninguem me certificaria de que Deus te perdoára. Eu devo amar em ti, sómente o bem occulto que ahi póde estar, e o amo em ti como nas outras creaturas, sem predilecção por alguma; porque esse bem occulto não provém d'ellas; e, se em ti existe – o que eu não sei, mas muito desejo – não procede de ti. Não te julgo, meu pai. Se eu escutasse o sangue, creio que te amaria até culpado, unicamente porque és meu pai, e eu me lembro de ter dormido em teus braços. Mas estes momentos da natureza corrompida já eu venci. Nada me és. Tracto da minha salvação servindo-te e honorificando-te; mas amar-te seria perder-me, por que amar o homem em si mesmo é amar o peccado. Na outra vida não ha maridos, nem esposas, nem paes, nem filhos, nem familia. Pais e filhos, mães e filhas, irmãos e irmãs serão separados no dia do juizo, desatados todos os vinculos. Não amemos ninguem, ninguem! Já póde ser que o inferno se esteja escancarando para aquelle que amarmos, e quem sabe se nós não cahiremos lá tambem empurrados pelo nosso amor? Nada de sentimentos cegos; nada de sentimentos corruptores. A ternura do homem é um disfarce de odio; e mais valera que elle nos odiasse francamente. Não amemos ninguem! ninguem! Póde ser que por ao pé de nós andem condemnados, cujos nomes ignoramos. Não amemos alguem, que nos não vá sahir algum reprobo.

Sou tua serva, ó meu esposo; servir-te-hei, obedecer-te-hei; e para te agradar o dever me forçará a cumprir o que me pedires do coração, que não é teu.

São doentes os nossos filhos? Por que te assustas? São hospedes que te foram confiados, e que tu deves esperar vêr irem-se ao primeiro aceno de quem t'os mandou. Eu que os trouxe no seio e os criei, vel-os-hei ir, sem lagrimas. Quem sabe onde irão quando nos deixarem? Cumpria que lhes vissemos o fundo d'alma para os amarmos. Praza a Deus que elles morram na sua divina graça! É o meu mais ardente voto; e, se mais além eu fosse, a minha ternura seria fraqueza. Se elles vão ao céo, hei de eu chorar-lhe tamanha dita! E se são condemnados… Não amemos ninguem, ninguem, nem os nossos filhos sequer! Familia temos só uma: é Deus com os seus anjos, e confessores e santos. Tudo mais não merece uma lagrima nem um sorriso. Roguemos, por tanto, uns pelos outros, filhos do peccado, mas nada de nos amarmos.

IV
Discurso de um mundano, após bastos estudos ácerca da perfeição theologica

Em continuo pavor do inferno viveram os santos: orações, jejuns, cilicios, meditar nas escripturas, vigilias ao pé da cruz, bençãos de pobres soccorridos por elles, perpetua immolação, indigencia de cella, ninhos de palha, alimento a pão e agua, nem com tudo isto socegavam. Viviam como anjos, e temiam. Tremiam guerreiros, padres, doutores, pontifices – Mauricio á frente da sua legião; Gregorio, o Grande, sob a tiara; Agostinho, no pulpito; Jeronymo, em suas estudiosas viagens; Antonio e Pacomio no reconcavo das penedias. Noites alvoroçadas de pavor passava Thereza no claustro. Nem a innocencia da vida, nem a adoravel castidade das almas, nem a tunica immaculada, nem as mãos impollutas, nem o acerbo arrependimento dos penitentes, com o rosto sulcado de lagrimas, nada, nada lhes aquietava o medo da colera divina. Redobravam cada dia austeridades e sacrificios, persuadidos de que não mereciam a misericordia que tão precisa lhes era.

Ah! se a alma só assim se salva, perdidos estamos todos, ó meus amigos!

Bem ouço o theologo que nos diz: Não é assim; a salvação ganha-se com menores trabalhos. Deus não exige que todos os seus filhos sejam egualmente perfeitos. Mas ao theologo respondo: Estás perdido como nós, tu e tambem os teus mestres, e os teus discipulos, estaes perdidos todos. Os exemplos que nos cumpre seguir são os dos santos, não são os vossos. Mostrae-nos na Legenda um só santo que subisse ao céo pelo caminho commodo que descobristes. Debalde hei buscado, com fim de o imitar, um homem meio santo e meio peccador, servindo Deus e o mundo, temendo, como eu, a miseria, a dôr, as humilhações, condescendente comsigo proprio, almejando viver no coração de outra creatura, chorando sobre as illusões esmaecidas como Pedro sobre o seu peccado. Não encontrei tal homem. O mais que vi foi milagres de stoicismo, maridos que deixavam as mulheres, mulheres que deixavam os maridos, filhos que fugiam ao abrigo dos paes, ricos que todos seus haveres dispendiam, bispos que fallavam verdade aos reis da terra, á custa da vida até; ninguem que se contentasse de cumprir no rigor da palavra os preceitos de Deus e da Egreja; por toda a parte almas ardentes de zelo super-natural, tendo apenas de humanas os incançaveis escrupulos, os inquietos terrores; justos sem socego, penitentes sem repouso, virgens lagrimosas e anachoretas angustiados.

Vós, porém, que vos quereis salvar e salvar-nos com menos custo; vós, que viveis regalados em quanto o Christo mendiga á vossa porta; vós que tendes riquezas ao sol e riquezas á sombra, quando na vossa parochia tantas familias laboriosas carecem do mais urgente; vós, que cubiçaes a estola, a murça ou mitra; e achaes nas Escripturas louvores para outrem, além de Deus, oh! quanto differentes sois d'aquelles heroes christãos cujas imagens campêam nos nossos altares! Sois o que somos: haveis mais pavor das praticas dos santos que do proprio inferno; espanta-vos e desespera-vos a perfeição d'elles; a pesar vosso, amaes o que elles aborreciam, e aborreceis o que elles amavam; as vossas virtudes são mesmamente humanas, taes quaes as nossas, que não vem do alto, que se enroscam nos nossos vicios e nos acorrentam ao demonio.

 

Ai! que perdidos estamos, ó meus amigos! Que lucramos em fechar os olhos? Estamos todos condemnados! Que monta o desprezo proprio pregoado pelos labios, se no intimo do coração tendes a propria estima sempre desvelada? Que aproveitam as momentaneas conversões, seguidas de quedas mais desastrosas? Que vos fazem certas privações associadas a tanto regalos? Em verdade vos digo que estamos perdidos!

Ora pois, se assim é, se o abysmo está aberto e o cahir é irremediavel, cerremos os olhos e não cogitemos mais em tal. Entre o céo inacessivel e o inferno d'onde não ha mais sahir, resta-nos um momento só: gozemol-o, ó meus amigos. Que é isto de estar a gente a empeçonhar, com terrores vãos, prazeres, tão raros quão fugitivos? Não pensemos no que será; pensar n'isso e desesperar é a mesma coisa: desesperar de entrar no céo, e desesperar de sahir do inferno. Saboreemos o presente. Vivamos terrenamente: aqui ha creaturas ridentes que nos alegram, fragrancias que nos deliciam, e licores que atrophiam a memoria.

Quem é ahi o sandeu que falla em inferno? Não ha inferno, minha mãe! Conclue em paz os teus dias extremos. Não contristes com visões pavorosas essas creancinhas que te escutam, e que talvez falleçam antes de nós. Ride, ó meus filhinhos: a vida vos será breve e repleta de miserias, quando crescerdes.

Eu desejo, senhora, que a minha casa seja mansão de jubilos e não de tedios: quero ser amado pelo que sou e não por caridade; quero ser obedecido amorosamente e não com submissão de escrava; aliás, buscarei quem me ame, e me corresponda. Engrinalda-te de rosas, minha bella! Não ha inferno, e o paraizo tem-l'o ahi á mão. Enche-me o copo, e dorme placidamente nos meus joelhos. Amar! amemo'-nos, até á morte; que da morte para além começa o odio!

Ah! que bizarra invenção não foi esta do inferno! Um abysmo para onde naturalmente nos inclinamos, attrahidos, impellidos por quanto ha, cahidos em fim, e depois, o abysmo… fechado para sempre! Oh! primorosa perspectiva para que façamos da terra uma estancia de delicias peccaminosas!

V
O rebanho

Se não fosse preciso crêr na eternidade do inferno, e no pequeno numero dos escolhidos, e na inevitavel condemnação da maior parte dos homens, eu odiaria como vós os prazeres da vida; o sermão de Jesus na montanha se me figuraria mais bello e intelligivel; eu entenderia a felicidade das lagrimas, as delicias da pobreza e a doçura de todos os sacrificios.

Quando, porém, se me diz que não é bastante haver chorado e soffrido muito n'este mundo para ganhar o perdão divino; quando se me diz que nada vale affrontar a ira dos tyrannos, defendendo, a verdade que os fere, ou o direito que elles avexam; quando me dizem que nada monta morrer no patibulo pela liberdade da patria ou no campo da batalha pela sua independencia; quando me dizem não importa nada envelhecer na miseria por haver preferido a honra ás honras, o estudo á opulencia, o trabalho aos prazeres; quando me dizem que tudo isto é fumo, que estas dores, esta coragem, privações, heroica vida, heroica morte, não podem resgatar minha alma d'um peccado mortal, e aos olhos de Deus não valem o cilicio d'um frade, ou a confissão de um salteador agonisante; ah! confesso que, ao dizerem-me estas cousas em todos os pulpitos christãos, não entendo o sermão da montanha, e pelo contrario começo a comprehender os prazeres d'esta vida.

Vêdes aquelles pescadores que em fragil barquinha vão arrostar as ondas do oceano, e vogar, por dias, semanas e mezes, longe da praia, á mercê das tempestades para ganharem, á custa de mil perigos, o pão de seus filhos?

Vêdes aquelles telhadores na aresta do vigamento? aquelles mineiros sepultados nas entranhas da terra, longe dos raios beneficos do sol? Vêdes o lavrador curvado sobre o sulco? o pallido tecelão diante das machinas devoradoras? tanto operario sem nome avergado ao pezo de um trabalho ingrato e sem descanço? Pois a maior parte d'aquelles é condemnada, por modo que os seus soffrimentos n'esta vida são preludios dos que lá os esperam na outra. Aquella mãe que não póde vestir seus filhos, e que relança olhares invejosos ao palacio visinho, onde os cavallos medram mais fartos que os filhinhos d'ella; – aquelles mendigos que vagamundêam nos campos; os orphãos que se recolhem aos hospitaes; os soldados que marcham para as fronteiras; os proscriptos esquecidos no solo estrangeiro, condemnados, quasi todos condemnados, meu Deus! Um repleto conego, risonho e bochechudo, sem familia nem cuidados, repastando-se quatro vezes por dia, mas sem escandalisar ninguem, baixando a vista em presença das mulheres, pontual nos officios, está mais visinho do céo que todos aquelles desgraçados; e mais perto ainda do céo está um sancto anachoreta. Chorar, soffrer, trabalhar não é nada. Se choram, não choram as suas culpas, é a miseria dos filhos; se trabalham não é por penitencia, mas sim para grangear commodidades. Lagrimas de Babylonia, diz S. Agostinho. Avidos suores, vãs angustias! Muitos seculos ha que d'est'arte se lhes explica o sermão da montanha, e elles nem o comprehendem nem jámais o entenderão. É bem de ver que não vivem á maneira dos santos legendarios, nem dos conegos prebendados. Os que sabem lêr pouco lêem, á falta de tempo. Muitos não vão á egreja, e os que lá vão sahem como entraram. São profundamente ignorantes. A dura necessidade dobrou-lhes a cabeça sobre o torrão que regam com o seu suor; e a natureza, que lhes brada das entranhas da terra, diz-lhes cousas que elles percebem mais a preceito que os sermões. O estridor e o vapor das materias da sua obragem cega-os e ensurdece-os. Não sentem fome nem sêde da palavra divina, qual lh'a ensinavam algum dia. Digam-lhes que um eremita vae melhor do que elles, por que abandonou officio, casa e parentes, e todo se vagou á salvação da alma, e que ha vinte ou trinta annos resa, jejua e se disciplina, dizei-lhes isto que elles vos desfecharão uma gargalhada; mas, se ao mesmo tempo passar um soldado de bigodes brancos, ou algum recruta aleijado em Africa ou Italia, ou algum repatriado do desterro, em vesperas de para lá voltar, se a occasião o exigir, elles o saudarão respeitosamente. Que appareça um velho sem occupação, uma viuva com filhos maltrapidos, e elles se fintarão para soccorrêl-os. Contae-lhes casos de bemfazer e lanços de gratidão, vêl-os-heis commovidos. As virtudes d'esses infelizes são, para assim dizer, selvaticas, probidade orgulhosa, amizades humanas, mas apuradas até á abnegação, instinctos lucidos do que é grande e formoso, mas formoso e grande pela craveira das coisas d'este mundo. De par com isto ha falhas, e até crimes. Impacientam-se, praguejam, largam a redea aos desejos, porque, no seu modo de pensar, se não ganham, tambem não perdem. Vivem á beira das charruas, das córtes, das forjas, e nas abegoarias. Este viver influe-lhes na linguagem e nos costumes. Não têm alma que se ale longo tempo e ao alto sem que as azas lhe falleçam: é que pezam n'ella os cuidados terrestres. Ventilam problemas que não podem resolver. Desconsolados do seu destino, perguntam porque ha ricos e pobres, e porque, no outro mundo, serão condemnados, depois de tanto haverem trabalhado e gemido n'este?

O inferno não os apavora muito mais que a morte. Affizeram-se desde a infancia á vaga idêa de que hão de ser condemnados, seguindo a trilha commum da vida; todavia, apezar do proposito feito, nem por isso um terrivel pezo deixa de lhes aggravar o fardo das dôres quotidianas. O sino que dobra, o sahimento que passa, o doente que vae para o hospital, o pedreiro que cae da parede, o obreiro apertado entre o encaixe de uma roda e triturado nos dentes d'ella, os terraplenadores sotterrados nas saibreiras aluidas, os marinheiros comidos pelas vagas, o typho que devasta um bairro inteiro de operarios, mulheres sem maridos, paes sem filhos, filhos sem mães, tudo isto por vezes lhes relembra o Deus rancoroso que lhes prégam, e as surprezas da morte, e os perigos de sua precaria existencia, e com as miserias que findam outras que principiam, para nunca mais acabarem. Este povo assim é como um rebanho que se leva ao matadouro, aguilhoado pelos pastores, lacerado pelos cães, atormentado pelas moscas, cançado, sanguento, sequioso, abatido, estupido.

Compadecei-vos, pois, d'esses que nunca vos darão bons ermitões. Não ha, por ventura, um ideal mais aceitavel e ao mesmo tempo mais puro que lhe mostreis? Não ha senão esse a que aspira o ente sem familia, sem ligações e cuidados d'este mundo? Se, ao menos, podesseis annunciar-lhes a justiça de Deus sem os assombrar! Não são já de si que farte mysteriosas e raladoras as dôres d'esta vida? Não será de mais rematal-as com o terribilissimo mysterio do inferno? Pois se tendes a certeza que serão condemnados no trem de vida que levam, deixae-os respirar, e beber, e rir e dançar, em quanto o animo e tempo lhes não faltam; que a desesperação poderá leval-os a peores excessos.

Ó pobre genero humano! Será preciso que o Christo desça segunda vez do céo para te instruir, e que outra vez seja vindo e crucificado para salvar-te?

CAPITULO QUARTO
OUTROS FRUCTOS DO INFERNO

I
O mal que produz o inferno. – Incredulidade, desalento, desesperação

Esquadrinhando o bem que procede do inferno, já divisamos o mal que produz. Bem negativo e limitadissimo; mal positivo mas profundo, extensissimo, apenas por em quanto entre-vimos. Faz-se mister examinal-o mais pelo miudo. Não perderemos o tempo.

É facto incontestavel que a maior parte dos homens se occupa menos de céo e inferno que das precisões, interesses, prazeres e dôres da terra. A Egreja o confessa admirada e lacrimosa. Por que se admira? Que remedio senão ser assim? Pois acaso póde toda a gente retirar-se ao deserto? Pois todo o encanto da vida se apagou? Os direitos da natureza foram abolidos?

Na sociedade cuja moral se funda sobre o medo das penas eternas, todo movimento paralysaria, se instinctivamente, e por necessidade de viver, não viesse o esquecimento d'esse tremendo futuro. A esperança do ceo não bastaria a contrabalançar os effeitos de tal susto, mormente quando nos affiançam que a porta do ceo é estreita, e que o inferno tem milhares de portas sempre abertas. Á medida que esta crença se incutir nas turbas, assim ellas hão de lidar por esquecel-a, abafando-a no seio, sem querer sequer meditar n'isso. Quanto mais pura, exigente, austera e angelica fôr a vossa moral, tanto mais impraticavel vol-a hão de considerar; e, se a fundamentaes no inferno, fechar-se-hão os ouvidos ao vosso apostolado, e ninguem quererá sequer aproximar-se d'aquella perfeição immaculada, que sómente florece em estufas claustraes, que se desbota ao leve bafejo do homem, e só está ao alcance de ociosos.

Se no inferno tão sómente fossem castigados certos crimes monstruosos e excepcionaes, mas claramente definidos, taes como o assassinio, o incesto, o estupro, poder-se-hia ainda examinar a justiça de tão exorbitante penalidade: ao menos cada qual sabia quando lhe era applicada a pena. Porém, se vão ás chammas eternas o aváro, o glotão, o preguiçoso, o prodigo, o orgulhoso, o invejoso, o impaciente, o maledico, o voluptuoso, o incontinente, o ambicioso, o calumniador, o usurario, o mentiroso, o hypocrita, o lisongeiro, o ingrato, o philosophante, o rebelde, etc., etc., etc., congela-se o sangue nas veias; ninguem ousa vender, comprar, emprestar, traficar, fallar, pensar, beber, comer, respirar; por quanto, quem sabe onde começa a avareza? o orgulho? e a lisonja, reverendissimos senhores, onde começa a lisonja? e a usura? e os limites da temperança quem os abalisou? Occasiões, tentações e perigos em tudo!

A questão não é saber se ahi ha crimes hediondos e puniveis: ninguem nega que os haja; – o que se tracta é de saber se é racional e discreto, e se os bons costumes lucram, que nos ameacem com eternos castigos, por peccados que mal podem definir-se. Quem ha ahi isempto de seu tanto ou quê de orgulho? Quem se presume bastante sobrio, bastante comedido nos prazeres licitos, menos egoista em suas legitimas affeições, menos desinteressado em seus lavores e mercantilismo, bastante paciente nos revezes e resignado nas desgraças? Quem se crê assaz justo, caritativo e perfeito? Ao parecer dos theologos, uma tal presumpção seria peccado capital, até nos conventos, até para os anachoretas envelhecidos em abstinencias e orações. Ninguem sabe ao certo o momento, o ponto em que um acto licito descahe no illicito; que dóse de alimento quadra á sua saude, e onde no rico principia o superfluo, que é o necessario do pobre. Para que vem seis pratos á meza? Se um basta, para que são dois? A regra onde está?

 

Cautela! esse copo que chegaes aos beiços risonhos, em vez de vos apagar a sêde, vae abrazar-vos em sêde eterna. Cautela! Theologo nenhum poderá dizer-vos exactamente o que vos cumpre dar, o que vos cumpre não dar; e o caso é que, se vos enganaes com tal incerteza, folga o diabo. Um padre da Egreja, um papa, um santo, Gregorio o Grande, não disse que Deus nos arguiria de peccados que antes de morrer não conhecemos?

Estas e outras mais terriveis cousas podeis lêr no Quotidiano do Christão, livro approvado e recommendado por todos os bispos, e que anda em mãos de creancinhas. Portanto, verdadeiras ha só duas cousas: a condemnação, se nos enganamos, e a abstenção para nos não enganarmos.

Mas a abstenção não é viver. Viver é a actividade inteira, incessante, e arriscada a peccar. É lei do genero humano viver e perpetuar-se. Não nega, mas esquece os dogmas oppressores que lhe pesam na alma, e a cada passo lhe apontam aberto um alçapão do inferno. Vivem os homens n'uma especie de indifferença religiosa que os avilta, movidos unicamente por suas paixões, e apenas enfreados pela justiça temporal. Fóra com isso do futuro! fóra com remorsos! Fechemos olhos a todos os clarões, e os ouvidos a todos os rumores do outro mundo, e concentremos n'este a nossa inteira vida, todos os desejos e pensamentos.

É effeito imprevisto, porém real, d'esta medonha crença induzir ao materialismo, não theorico, mas pratico, a maior parte dos que não leva ao ascetismo: attasca na lama os que não transvia nas nuvens; faz que se rojem durante o dia breve da existencia, grandes e pequenos. Os philosophos accusados d'este miseravel estado das almas, estão innocentissimos: não ha em tudo isso faisca de philosophia; raciocinio é coisa que ahi não vislumbra. O instincto é que desde tempos esquecidos, e não de ha pouco, nos propendeu áquelle cego materialismo: é a necessidade de arrostarmos com uma crença mortifera; é a vida que resalta d'entre as mãos desvairadas que intentam comprimil-a, e d'este desbordar de toda a fórma surdem os excessos.

Já não lhes abasta esquecerem o inferno. Quem o esquece são os fracos; os fortes vão mais além: escarnecem-no. Anda já por ahi o diabo cantado, e do mesmo feitio o inferno, e o céo com os seus moradores. E de taes canções vendem-se tantos exemplares como dos Canticos de S. Sulpicio: antiquissima impiedade, de que ha vestigios, não só na Grecia pagã, mas tambem nas fabulas da edade média, e até nas paredes das vetustas cathedraes onde os artistas zombeteiros esculpiram, ha mais de seiscentos annos, o Inferno de Béranger. A ironia mascarava-se então com tregeitos beatificos; o impudor, porém, não se disfarçava nem se constrangia.

Os lamuriantes da edade média talvez digam que, apezar das galhofas audazmente esculpidas nos portaes e córos das egrejas, esses antigos imaginarios criam no inferno, e que, no leito da morte, não foliavam, tremiam; que os fabulistas tambem tremiam, e que os castellãos e castellãs, plebe e burguezia, quantos se haviam regalado com as taes caricaturas, tremiam tambem. Sim, meu Deus, é verdade. Mas circumvagae a vista, e dizei-nos se, a tal respeito, a sociedade mudou. A mesma educação religiosa não produz continuamente identicos phenomenos? Acreditam no inferno os epicuristas, os trampolineiros, os usurarios, os prodigos e os ladrões, os famintos e os repletos, os invejosos e os ingratos, os indifferentes e os chasqueadores? No intimo da alma guardam elles as superstições das amas: que farte o denotam na vida, e principalmente na morte. Em quanto são moços, ageis, febris de saude e esperança, repulsam uma crença que lhes tornaria maldita a mocidade, a saude, a força, a razão de todas as dadivas do céo. Quando caducam, infermam e agonisam, espantam-se de haver ardido em desejos que já não tem, e haver motejado praticas que se lhes agora figuram facilimas. É chegada então a hora e situação conveniente para intender a moral do inferno, que é a privação em tudo e por tudo, – a morte na vida.

Singular crença que não infrêa o maior numero de homens, quando o freio lhes é mais preciso; e quando o retêl-os é já inutil, e mais necessaria lhes seria a esperança, então, á entrada da sepultura, lhes sahe espantadora! Levado por ella vae o anachoreta ao suicidio, e o mundano ao embrutecimento. Esteril em verdadeiros dons, fertil em verdadeiros males, a crença no inferno bestialisa, desalenta, desespera, endurece. Melhor é esquecel-o á maneira das turbas, que pensar demasiado n'ella, que tanto monta sentir vertigens, sentir estontecida a cabeça á roda d'esse abysmo que vos attrahe e sorve. Mais algum prazer ou menos, defendido ou não, que faz? Lá no inferno não estaremos melhor nem peormente; a eternidade não terá hora menos ou hora mais. Constrangermo-nos para quê? Não ha termo medio entre o bem e o mal absolutos. Tudo que é humano é mau: é forçoso ser anjo ou demonio: seja-se diabo, que é mais comezinho. Vêde-me uns frades, padres, devotos, freiras, que a desanimação avassalou: não ha peores peccadores; rolam cada vez mais ao fundo, e vão-se consolando com as delicias que topam na sua queda. Um peccado de menos, que é na conta que hão de dar? Chegados a tal extremidade, qualquer boa acção lhes será vã. Como não podessem abster-se de tudo, os desgraçados já agora não se abstem de nada. Esta desesperada crença precipita-os abaixo do homem. D'ahi tem surdido mais libertinos que ermitões, mais blasphemos que santos, mais loucos que ajuizados; e, em verdade, é mister que o christianismo entranhe vivacissimos embriões, esplendorosissimas luzes, e poderosissimas verdades para resistir, como ha resistido, á influencia de taes doutrinas.

Tirae-nos, por favor, esse inferno tão fatal aos que o recordam como aos que o esquecem. É verdade que teremos menos monges com o purgatorio; mas teremos mais christãos. No purgatorio será util pensar, comprehender-lhe a justiça, e sentir-se o homem melhor, ainda a pesar seu; se é facil sacudir o jugo de uma revelação sobrenatural e inintelligivel, por mais beneficente que ser possa, não é facil desprendermo-nos de idêas excellentes e razoaveis, por mais importunas que nos sejam.