Tasuta

O Inferno

Tekst
Autor:
iOSAndroidWindows Phone
Kuhu peaksime rakenduse lingi saatma?
Ärge sulgege akent, kuni olete sisestanud mobiilseadmesse saadetud koodi
Proovi uuestiLink saadetud

Autoriõiguse omaniku taotlusel ei saa seda raamatut failina alla laadida.

Sellegipoolest saate seda raamatut lugeda meie mobiilirakendusest (isegi ilma internetiühenduseta) ja LitResi veebielehel.

Märgi loetuks
Šrift:Väiksem АаSuurem Aa

SEGUNDA PARTE

O INFERNO CONSIDERADO ÁLÉM-TUMULO, OS CONDEMNADOS NA PRESENÇA DE DEUS, NA PRESENÇA DOS SANTOS, E NA PRESENÇA DOS HOMENS

CAPITULO PRIMEIRO

O INFERNO DE PLATÃO

Até agora consideramos o inferno sómente em relação aos resultados moraes que a crença de sua existencia tem produzido, produz e produzirá sempre n'este mundo. Já demonstramos que esta crença, fatal a quantos se compenetram d'ella, é inerte para os demais: é inutil aos verdadeiros virtuosos, por que não tem que ver com o bem que praticam, e tambem ao mal que não fazem; é inutil aos devotos e indifferentes, por que não os estorva de commetter basta dóse de peccados mortaes; e pelo que toca aos peccados que não commettem, tal abstenção explica-se em louvor d'elles, por motivos totalmente independentes das penas infernaes; é inutil para os philosophos, visto que estes a não acceitam; é, emfim, inutil aos scelerados, por que os não impede de ser scelerados; e, de mais a mais concorre, umas vezes, a precipital-os no crime, outras a empedernil-os na perversidade.

Falta agora considerar o inferno, não em referencia á terra, mas pelo que elle é em si, qual os padres, doutores e mysticos o pintaram, isto é, nas suas relações com Deus, com os predestinados e com os reprobos. Mas, antes d'isso, cumpre-nos dizer alguma coisa das opiniões de Platão ácerca da justiça divina e do inferno. Será isto, a um tempo, entrar no assumpto, e responder aos theologos que, á mingua de razões, invocam de vontade, n'esta materia, a auctoridade de Ovidio, de Horacio, de Lucrecio, de Virgilio, de Hesiodo, de Orpheo, e d'outros escriptores de costumes sobre modo extravagantes que, a tal respeito, repetiram as idêas do antigo paganismo e nada mais.

A opinião de Platão, que elles mais acintemente allegam, deriva da mesma fonte; mas, alumiada pela indole e pura vida d'aquelle philosopho, ostenta-se mais respeitavel e seductora.

É mister, no dizer de Platão, que um castigo seja razoavel para ser justo; e para que seja razoavel, uma de duas clausulas é precisa: ou que o castigo aproveite ao castigado, ou ás testemunhas d'elle.

Partindo d'este principio, Platão não prodigalisa, á feição dos nossos theologos, as penas eternas, por quanto, a seu parecer, falta n'ellas a grande virtude das penas temporarias. São estas, em verdade, dobradamente prestadias, pois que ao mesmo tempo corrigem o culpado e admoestam os espectadores; pelo contrario, as outras não corrigem o culpado e podem apenas admoestar os vivos que as conhecem: logo são menos prestantes e universaes e completas; falta-lhes aquella bemfazeja efficacia com que os deuses folgam de dulcificar as obras da sua justiça; digamol-o em pouco: são menos divinas.

Eis-ahi porque Platão é aváro das penas eternas e perdoa ao maximo numero de peccadores, descontando-lhes os gemidos, lavando-os e purificando-os em suas proprias lagrimas, á excepção dos oppressores dos povos, de seus cumplices e louvaminheiros que expressamente exclue da lei commum. Para estes é elle durissimo; eternisa-lhes as dores; todavia, os deuses não podem ser accusados por isso de inutilmente rigorosos.

De feito, se a tyrannia é o maior dos crimes, e o unico expiavel, é porque a liberdade, que ella anniquila, é o maior bem que os deuses nos doaram, unico impossivel de substituir; é porque, na sociedade escravisada, cessam os prazeres honestos, a verdadeira gloria, sabedoria e virtudes.

Tal é o senso intimo do castigo excepcional que Platão applica aos tyrannos. Bastantemente está explicado a superioridade do terrivel castigo; mas o que não se explica é a razão da sua perpetuidade. Platão suppunha-o eterno porque não sabia, como nós, que a humanidade tem que percorrer no tempo um circulo limitado, e que este universo ha de acabar. Eternisava elle, por tanto, o supplicio dos tyrannos, por suppôr que o seu exemplo devia ser eternamente util na terra. Não ha outra maneira de lhe justificar o inferno no seu systema.

Foi, porém, esta justificação do inferno destruida por Christo, o qual nos annunciou que todo o genero humano é, como cada homem, um passageiro na terra, e que um dia virá em que esta esphera que habitamos, e estes astros que nos alumiam, se sumirão no espaço como a poeira que o vento da noite espalha. Quem utilisaria com o supplicio dos condemnados, quando as testemunhas, em vez de fracos mortaes, fossem santos impeccaveis?

O inferno dos theologos não é, pois, identico ao inferno de Platão: o de Platão devia ser util sempre; o dos theologos, por fructificar um dia, ficaria esteril para sempre. Essa esterilidade já lh'a nós presentimos. Indagamos a razão d'uns padecimentos improficuos á victima, ao juiz, a todos. O coração protesta contra tal crueldade sem intento e sem effeito. Córa a gente só de o crêr. Como que o homem se sente melhor do que essa divindade absurda, sedenta sempre de torturas, ebria sempre de ira, insensivel sempre, peior que o abutre do Prometheo, que ás vezes, ao menos, adormece sobre a preza. Só pensar n'isto gera o atheismo na alma.

Erradamente, pois, se invoca, em pró de similhantes castigos, o testemunho de Platão, que se horrorisaria d'elles. Platão não condemnava o pobre pegureiro por algum roubo desconhecido ou tentativa malograda; mas bem póde ser que elle condemnasse inflexivelmente S. Clotario, S. Constantino e S. Carlos Magno. Além de que, elle tinha, para admittir um inferno sem fim, razões que não temos; e nós, para o rejeitarmos, temos razões que elle ignorava.

CAPITULO SEGUNDO

Opinião dos pagãos sobre a situação e vista interior do inferno

Os antigos situavam o inferno no centro da terra que habitamos, e pretendiam ter a este respeito pormenores muito satisfatorios. Os gregos e os romanos possuiam um mappa minucioso d'estas regiões subterraneas, a ponto de lhes conhecerem os rios, taes como o lodoso Cocyto, o ardente Phlegeton, e o invadiavel Acheronte; sabiam até que havia lá fetidas lagôas, em uma das quaes estava Tantalo atascado até aos queixos sem poder apagar a sêde; sabiam d'uns bosques medonhos em que certas almas se lamuriavam, debalde anciando o alvor do dia; conheciam montanhas, que outros condemnados, perseguidos pelas furias, em vão se esfalfavam por galgar. Contavam a historia de alguns desgraçados assim, e as particularidades do seu supplicio. Comtudo, apezar da indole inteiramente physica d'aquelles diversos castigos, diziam que os pacientes não tinham corpo, que os mortos eram apenas sombras intangiveis, bem que animadas, e que o seu maximo tormento era não poderem jámais viver vida carnal á luz do nosso sol. Isto contavam-no elles com toda a certeza, fiados em pessoas que tinham descido ao Tartaro, e de lá tinham voltado. Era conhecida a estrada por onde essas pessoas tinham viajado; havia cavernas que os pastores conheciam, poços d'onde sahiam vapores lethiferos e por onde se descia ao inferno.

Não eram menos instruidos os egypcios. Em assumpto de horrores visiveis, o Amenthi havia emprestado ao Tartaro pavorosos quadros. N'este Amenthi, que, segundo consta, quer dizer paiz da noite, estão o cão de sete cabeças e outros deuses de feitios monstruosos. Ahi se encontra o Acheronte e o seu batel, os marneis e as aridas gándaras, e todas as figurações do mundo devastado.

Tem setenta e cinco circulos, e á entrada de cada circulo um genio armado. Giram as almas d'um circulo n'outro, algumas em fórma humana, outras com fórmas immundas, com cabeças de aves de rapina, pellagem de fera, e garras de reptil. O pavimento é sangue. Estrondeiam os gemidos. Pendem os condemnados dos ganchos á maneira de carneiros no açougue, ao passo que outros, ainda palpitantes, são mergulhados em caldeirões ferventes. Uns vão fugindo, com os braços estendidos, e a cabeça quasi separada do tronco, outros levam nas proprias mãos o coração que lhes arrancaram do peito que mostram lanhado.

Conforme nos vamos aproximando das primitivas civilisações, e, por consequencia, do primitivo barbarismo, mais o genero humano parece deliciar-se no repasto espectaculoso de seus proprios soffrimentos, e o mundo invisivel é para elle um espelho de augmento das miserias e torturas do mundo visivel.

Cada povo se espelha na imagem que nos deixou de seu inferno, com as suas idêas moraes, leis, necessidades, com seus costumes, temperamento e clima.

Nas serranias do Thibet, onde rapidamente se passa do mais rigoroso frio ao mais suffocante calor, ensinam os lamas que o inferno, situado em determinado logar da Asia umas tantas legoas da superficie da terra, é formado de dezeseis circulos: oito onde se arde, oito onde se gela.

Nas esplanadas da India, onde não ha inverno, e onde as populações, languidas de calor, corruptas pelas liberalidades da terra, apenas tem phantasia para inventar prazeres e supplicios, dizem os brahmanes que certos sitios do Naraka estão cheios de mosquitos, de serpentes venenosas, de escorpiões horriveis, de tigres, de abutres e de todos os flagellos proprios d'aquellas regiões ardentes; e que os outros circulos são o theatro das mais requintadas torturas que ainda póde conceber a malicia d'um rajah arrojado. Ahi os glotões são condemnados a comer calháos asperrimos de puas agudas; os luxuriosos são apertados nos braços de estatuas de ferro em braza.

Contam pelo miudo todas as circumstancias d'estes infinitos martyrios, e taes narrativas fariam impallidecer Ixion sobre a sua roda, Sizipho debaixo do seu penedo. Sabem os hindostanicos pelos livros e pela tradição em que ponto da sua terra está situado o Naraka e a que profundeza se encontra. Mas não podem os mortos encerrados ahi achar os limites e as portas d'aquelle inferno.

No inferno dos scandinavos, chamado Nifleim, não ha fogo. Essas antigas nações do norte gostam tanto de calor, que não poderam consideral-o um supplicio; pelo que o seu inferno é de neve, onde ha o tiritar, a fome, a febre, a velhice tremente, as torrentes glaciaes, as tempestades, o uivar dos lobos, o pavor que estaleja os dentes, e os cobardes, unicos condemnados que ahi vão.

 

Concluamos esta historia, que daria assumpto para um livro. As reflexões moraes que ella suscita vão breve ser applicadas na descripção do nosso proprio inferno, que na essencia não se distingue dos infernos pagãos. Porém, sendo elle procedente do inferno judaico, paremos diante d'este.

CAPITULO TERCEIRO

Opinião dos judeus ácerca da vista interior do inferno

Sabido é que o Antigo Testamento é muito sobrio de revelações do inferno. Com muito custo se rebuscaram n'elle alguns versiculos tendentes a estabelecer aquella crença entre os hebreus, antes da destruição do primeiro templo. Os saduceos, que juravam sómente pela Biblia, negavam absolutamente a vida futura. Ora, bastantes sabios tinham os saduceos em conta de melhores interpretes da Biblia. Dizem elles que os judeus, durante as tristezas do captiveiro, souberam da bôcca dos magos a immortalidade da alma e a sciencia demonologica. Todavia, Abrahão era chaldeo; os filhos de Jacob haviam longo tempo estanciado no Egypto; – isto dá a crer que os seus descendentes deviam possuir, antes de exilados em Babylonia, parte dos conhecimentos que os escripturistas registavam. Não exerciam os prophetas um ensino mystico, e não conservava o povo tantas tradições grosseiras contemporaneas de Moysés e talvez anteriores? As passagens respigadas na escriptura e nomeadamente em Isaias, relativas ao inferno, seriam inexplicaveis, se não se lhe referissem; mas seriam egualmente inexplicaveis se o povo não tivesse, para intendel-as, mais luz da que lhe dão essas passagens. Estes trechos não encerram doutrina secreta dos prophetas, respeito á vida futura; contém mais referencias que revelações á crença vulgar e formalissima do inferno.

O nome «Géhenna» que lá dão á paragem das expiações futuras, não era estrangeiro; era o nome de um vale ao poente de Jerusalem, onde, desde a origem de sua historia, iam os hebreus adorar Molock, e sacrificar-lhe no fogo victimas humanas, e, ás vezes, seus proprios filhos. N'este sitio, tambem denominado Trophet, ou «logar horrendo», eram lançados os cadaveres dos justiçados e os despojos dos animaes. Este valle maldito, sagrado pela superstição aos deuses sanguinarios, juncado de carnes putridas e ossadas alvejantes, assombrado de larvas sinistras, resonante de gemidos e rugidos, converteu-se para os moradores da cidade santa, não já em verdadeiro inferno, mas no symbolo exterior e synonymo de inferno. No inferno verdadeiro, ardiam Moloch e os seus idolatras na mesma fogueira; os máos eram roidos pelos vermes; e estes vermes eram immorredouros como as suas prêas: – idêas positivamente exprimidas por Isaias, cap. LXVI, ultimo verso.

É egualmente certo que os rabbinos e tambem o povo, tão pouco iniciados até então andavam na mystica philosophia, que, se alguma vez discutiam, davam azo a que os prophetas se rissem ou indignassem; porém, depois que os rabbinos e o povo se recolheram do captiveiro, as suas noções eram mais amplas, e talvez as mesmas que se escondiam nas escólas do Carmelo e de Galgala.

Vamos vêr quaes são as noções não contidas no Antigo Testamento, mas traçadas manifestamente no Novo, as quaes, quando S. Paulo, S. Mathias, S. João e outros apostolos escreviam, já se haviam derramado na Judea, quinhentos ou mais annos antes.

Era dividido o Scheol, ou mundo futuro, em duas regiões, que comprehendiam o paraiso e a géhenna. A géhenna, objecto d'este estudo, era contada no numero das sete creações anteriores ao nosso universo. Á similhança do Amenthi egypcio e do Naraka indiatico, era formada de diversos circulos, mas só tinha sete, correspondendo aos sete dias do Genesis, e aos sete ceos ou sete circulos do paraiso. Havia géhenna superior e géhenna inferior. A superior abrangia os seis primeiros circulos: era uma especie de purgatorio onde baixavam, depois da morte, os peccadores dignos de perdão: uns ficavam no sexto, outros no quinto, outros no quarto circulo, outros no primeiro, conforme a gravidade ou leveza dos seus peccados. Trezentos e sessenta e cinco degráos, correspondentes aos trezentos e sessenta e cinco peccados assignalados pelos doutores, formavam escaleiras d'um circulo a outro, e em cada circulo era mister passar trezentos e sessenta e cinco dias. Porém, os grandes criminosos, abatidos sob o gravame de suas culpas, atravessavam, sem poder parar e com a rapidez de pedra arrojada por funda, os seis primeiros circulos da spiral, e cahiam no setimo, no fundo abysmo, na géhenna inferior, d'onde não ha mais sahir. Á frente de suas legiões ahi os recebia Samael, e então lhes começava o perpetuo supplicio, o insulto dos diabos, a saudade da vida, o fogo interno e externo, o tormento da sêde, e a miragem cruelissima que scintilla aos olhos dos peregrinos agonisantes no deserto5.

Taes eram, em resumo, as opiniões da synagoga ácerca do inferno. Entretanto os essenios, seita monastica celibataria que vivia em commum para espiritualmente se reproduzir, professavam outra. O inferno d'elles, coisa notavel, similhava ao dos monges thibetanos; os soffrimentos ahi eram calor e frio, e todas as intemperies das estações em climas deseguaes.

Agora vejamos o inferno dos nossos theologos.

CAPITULO QUARTO

O INFERNO DOS THEOLOGOS
POR DUAS FACES VAMOS VER O NOSSO INFERNO; PRIMEIRA A MATERIAL, DEPOIS A MORAL

I
O inferno material

São puros espiritos os demonios, e tambem puros espiritos devem considerar-se os condemnados no inferno, por quanto só a alma d'elles lá desceu, e os ossos restituidos á terra se transformam continuamente em hervaçaes, plantas, fructos, mineraes, liquidos, desfigurando-se nas continuadas methamorphoses da materia.

Tanto, porém, os condemnados como os santos hão-de resuscitar no dia final e reassumir para nunca mais o deixar um corpo carnal, o mesmo corpo com o qual passaram entre os vivos.

A distincção d'uns a outros é que os eleitos hão de resurgir em corpos purificados e radiosos, e os condemnados em corpos poluidos e afeiados pela culpa. E de então ao diante não haverá sómente puros espiritos no inferno; mas sim homens como nós. É por consequencia o inferno uma localidade physica, geographica e material, visto que hão de povoal-o creaturas terrestres, dotadas de pés, mãos, bôcca, lingua, dentes, orelhas, olhos como os nossos, veias com sangue, e nervos sensiveis á dor.

Onde está situado este inferno? Alguns doutores situam-no nas entranhas da terra; outros em certo planeta que eu não sei; mas a questão nenhum concilio ainda a resolveu. A este respeito é tudo conjecturas; o mais que se affirma é que o inferno, seja onde fôr, é um mundo composto de elementos materiaes, mas não tem sol, nem lua, nem estrellas, e é mais triste e inhospito, e mais ermo de todo o germen e apparencia de bem, do que todos os pontos inhabitaveis do mundo em que peccamos.

Não se arriscam os discretos theologos a pintar, á similhança dos egypicos, indostanicos, e gregos, o immenso horror d'essa mansão; limitam-se a dar-nos como amostra o pouco que a escriptura denuncia, o lago de fogo, e o enxofre do Apocalypse, e mais os vermes de Isaias, aquelles vermes eternamente enxameando sobre as carcaças de Thophet, e os demonios atormentando os homens que perverteram, e os homens chorando e ringindo os dentes, segundo a expressão dos evangelistas.

Santo Agostinho não concede que aquellas penas physicas sejam simples imagens das penas moraes; contempla em um verdadeiro lago de enxofre vermes e serpentes verdadeiras encarniçadas sobre todas as partes dos condemnados, exacerbando com as suas mordeduras as ulcerações do fogo. Quer, conforme um verso de S. Marcos, que este estranho fogo, posto que material como o nosso, e actuando sobre corpos materiaes, os conservará como o sal conserva a carne das victimas sempre sacrificadas e sempre viventes, sentirão a dôr d'aquelle fogo que queima sem destruir, e lhes filtra aos musculos, saturando-lhes os membros, desde a medulla dos ossos e as pupillas dos olhos até as mais occultas e sensiveis fibras do seu ser.

Se elles podessem submergir-se na cratera d'um vulcão, sentir-se-hiam ahi refrigerados e consolados.

D'esta arte fallam com toda a segurança os mais timidos, os mais discretos e reservados theologos; não negam, porém, que no inferno haja outros supplicios corporaes; sómente dizem que não tem d'elles um sufficiente conhecimento, ou pelo menos tão positivo como aquelle que receberam ácerca do horrivel supplicio do fogo, e do afflictivo supplicio dos vermes. Ha no entanto theologos mais audazes e illustrados que nos dão descripções mais miudas, variadas, e completas do inferno; e, bem que não saibam em que local do espaço tal inferno esteja, consta-lhes que alguns santos o viram.

De certo que estes santos lá não foram com a lyra em punho, como Orpheo, ou com a espada na mão, á similhança de Ulysses: baixaram lá arrebatados em espirito. D'este numero é Santa Thereza.

Quem lê a relação d'esta santa cuidará que no inferno ha cidades. Pelo menos lá viu ella uma especie de viella longa e estreita como ha tantas nas cidades antigas; entrou caminhando horrorisada sobre um terreno lamacento e fetido onde rastejavam reptis monstruosos; mas foi retida em seu transito por uma parede que atravancava a viella; e n'esta parede havia um nicho onde Santa Thereza se metteu sem saber como. Disse ella que este logar lhe estava destinado, se abusasse emquanto viva das graças que Deus difundia sobre a sua cella d'Avila. E, bem que ella se anichasse com maravilhosa facilidade n'aquella guarita de pedra, não podia nem assentar-se, nem deitar-se, nem estar de pé, nem safar-se; que estas horriveis paredes, apertando-a, envolviam-na, angustiavam-na, como se fossem animadas. Parecia-lhe que a abafavam, que a estrangulavam, e ao mesmo tempo a estripavam e a faziam pedaços.

E sentia-se arder, e não havia genero de afflição que não experimentasse. Esperança de soccorro, nenhuma. Á volta d'ella tudo escuro; mas ainda assim, atravez d'essas trevas, entrevia, com grande espanto, a hedionda rua por onde tinha passado com toda a sua immunda visinhança: espectaculo que lhe era tão intoleravel como as intalladelas da prisão.

Ora isto de certo era apenas um cantinho do inferno.

Outros viajantes espirituaes foram mais obsequiados. Houve tal que viu no inferno grandes cidades a arder, Babylonia e Ninive, e até Roma, com os seus palacios e templos abrazados, e os habitantes acorrentados, mercadejando no balcão, padres misturados com meretrizes nas salas dos festins, hurrando nas suas poltronas d'onde não podiam arrancar-se, e levando aos beiços, para apagar a sede, copos que golphavam lavaredas; validos em joelhos sobre almadraques ardentes, com as mãos postas, e principes vertendo sobre elles devorante lava d'ouro fundido. Outros viram no inferno descampados sem limites, cavados e semeados por lavradores famelicos. E d'essas plantas fumegantes de suor, como nenhum fructo vingasse, os lavradores devoravam-se uns aos outros; e, depois, tantos quantos tinham sido, magros e famintos do mesmo modo, dispersavam-se em bandos pelos horisontes fóra em cata de terras mais ditosas, e eram logo substituidos por outras colonias errantes de condemnados.

Houve quem visse no inferno serranias cavadas de abysmos, de florestas gementes, poços sem agua, fontes de lagrimas, regatos de sangue, turbilhões de neve em desertos de gelo, barcos desesperados vogando em mar sem praia. Em fim lá viram quanto os pagãos tinham visto, o reflexo lugubre da terra, uma sombra incommensuravelmente augmentada de suas miserias, os seus naturaes soffrimentos eternisados, entrando n'isto masmorras, forcas, e os instrumentos de tortura que as nossas proprias mãos forjaram.

 

Ha com effeito lá n'essas profundezas demonios que se fazem corporeos, para mais a preceito atormentarem os homens em suas carnes. Uns tem azas de morcego, pontas, coiraças escamosas, griphos e agudissimos dentes. Temol-os visto pintados, armados de espadas, de forcados, de tenazes ardentes, de serras, de grelhas, de folles, de clavas, empregando tudo isto durante a eternidade n'uma especie de açougue e cosinha da carne humana. Ha outros transformados em leões, e viboras enormes, arrastando as prêas em solitarias cavernas.

Alguns desfiguram-se em corvos para arrancar os olhos a certos padecentes, em quanto outros se transformam em dragões volateis, e vão carregados d'almas sanguentas e lastimosas atravez de tenebrosos espaços, e as precipitam no lago de enxofre. Além se vê nuvens de gafanhotos, e de agigantados escorpiões, cuja vista arripia, cujo cheiro enoja, cujo menor contacto convulsiona. Acolá estão os monstros polycephalos abrindo vorazes fauces, sacudindo as crinas formadas de aspides, triturando os condemnados entre os seus queixos sangrentos, e vomitando-os logo mastigados, mas ainda vivos, porque são immortaes.

Estes demonios de fórma sensivel, recordando tão ao vivo os deoses do Amenthi e do Tartaro e os idolos que os phenicios, os moabitas e outros gentios visinhos da Judea adoravam, estes demonios não funccionam á toa; cada qual tem seu officio e sua tarefa: o mal que fazem no inferno corresponde ao mal que elles inspiraram e fizeram commetter n'este mundo. São os condemnados punidos em todos os sentidos e orgãos porque offenderam Deus por todos os orgãos e sentidos. Os comilões são punidos de certa maneira pelos demonios da intemperança, e d'outra maneira os calaceiros pelos demonios da preguiça, e ainda d'outra maneira os lascivos pelos demonios da sensualidade; em fim, são tantas as maneiras quantas as variedades de peccar. Dizem que elles até na fogueira terão frio, e no gelo se sentirão arder; estarão ávidos de descanso e irrequietos; sempre com fome, sempre com sede, e mil vezes mais cansados que o escravo no fim do dia, mais doentes que os moribundos, mais lacerados, mais escalavrados, mais lazaros que os martyres, e assim para todo o sempre.

Nenhum demonio se desgosta nem desgostará jámais do seu terrivel officio; n'esta parte são elles disciplinados a ponto, e fidelissimos na execução das ordens vingativas que receberam. Se não fosse isso, que seria do inferno? Se os demonios tivessem rixas entre si ou se fatigassem, os pacientes descansariam. Mas nem uns descansam, nem os outros se desavêm; e posto que sejam máos e muitissimos, os demonios harmonisam-se d'um cabo a outro do abysmo, por tanta maneira que nunca na terra se viram nações mais submissas a seus principes, exercitos mais doceis a seus generaes, communidades fradescas mais obedientes a seus prelados. Nada se sabe da ralé dos demonios, d'essa canalha de espiritos villãos que formam legiões de vampiros, de sapos, de escorpiões, de corvos, de hydras, de salamandras e outra bicharia sem nome que constituem a zoologia das regiões infernaes; mas são conhecidos de nome muitos principes que commandam aquellas legiões, entre outros Belphegor, o demonio da luxuria, Abbaddon ou Apollyon, o demonio da carnificina, Beelzebuth, o demonio dos desejos impuros, ou o principe das moscas geradoras da podridão, e Mammou, o demonio da avareza, e Moloch, e Belial, e Baalgad, e Astaroth, e outros mais, e sobre todos o chefe universal, o sombrio archanjo que no céo se chamava Lucifer, e no inferno se chama Satan.

Eis aqui, em summa, a idêa que se nos dá do inferno, observado em sua natureza physica, e nas penas corporaes que lá se padecem. Lêde os escriptos dos padres e antigos doutores, interrogae as piedosas legendas, examinae as esculpturas e paineis das nossas egrejas, attentae o ouvido no que se diz em nossos pulpitos e sabereis muitas outras coisas.

5O inferno mahometano é copia do judaico, mas copia singularmente alterada. O anjo Trakek é quem lá governa. Ha lá chuva de peçonha. Chama-se Géhenna e divide-se em sete circulos. Porém, exceptuado o primeiro circulo, reservado exclusivamente para os musulmanos, e o ultimo, destinado aos hypocritas, cada qual dos outros é pertencente a cada uma das religiões diversas que precederam o islamismo. Estes hereticos estão portanto em andares sobrepostos, quasi por ordem de sua antiguidade: os christãos no segundo, os judeus no terceiro, os sabeos no quarto, os guebros no quinto, os idolatras no sexto. D'estes seis ultimos ninguem sahe: ahi é o verdadeiro inferno; mas o primeiro, o circulo de honra dos crentes, é purgatorio, no dizer dos doutores.