Atração De Sangue

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«Obrigada» sussurrei finalmente.

«Bem, então agora que já lanchaste e que desabafaste, aconselho-te a correr para o quarto para estudar biologia, se queres fazer-me mudar de ideias quanto às aulas com o Ron» exclamou a tia Cecília.

« Oh, obrigada!».

Corri a abraçá-la. Sabia que ia compreender!

«És a minha tia preferida!» acrescentei.

«Óbvio, sou a tua única tia».

Desatamos a rir juntas e depois pôs-me a estudar.

Prometi a mim mesma que melhoraria a minha média em ciências. Estudei biologia três dias seguidos e no fim, fiz uma prova oral.

Sete.

Aquela nota bastou para convencer a minha tia a anular o compromisso que tinha com o Ron.

Sentia-me no sétimo céu.

Não me interessava se o Ron tinha levado a mal, porque se tinha sentido rejeitado. Estivemos quase juntos de verdade.

Também não agradou à Patty, porque no espaço de dois dias, a minha história de amor com o Hálito Podre começou a desvanecer, até ser completamente esquecida.

Um dia, ao regressar da escola, cruzei a habitual cancela, que há já alguns dias tinha começado a ranger mais do que o habitual e corri para casa.

«Devo chegar-lhe óleo» disse-me Ahmed, referindo-se à cancela, enquanto reparava um bocado da cerca, não muito longe de mim.

«Olá Ahmed. Como estás?» perguntei-lhe.

«Hoje está sol, por isso, está tudo bem» respondeu-me.

Sorri-lhe solidária.

«Termino de reparar isto e depois vou fazer algumas comissões» acrescentou.

«Posso ir contigo?».

Quando fazia sol, não era possível estar em casa a estudar.

«É melhor não. Acabou de chegar o padre August e penso que quer ver-te» respondeu-me afastando-se com algumas tábuas na mão.

O padre August, aquele velho anão atarracado com o olhar maligno.

Tanto eu quanto a tia não podíamos vê-lo, todavia uma vez por mês vinha fazer-nos uma visita.

A tia Cecília explicou-me que, no fundo, o padre August era um bom homem e que tinham sido muito próximos, quando eu era pequena.

Ajudou a financiar os custos de saúde que teve quando me diagnosticaram aquela terrível anemia, por isso, seria sempre bem-vindo, apesar de me parecer um ser repugnante e desagradável.

Com relutância, entrei em casa.

No salão, a tia e o padre August estavam sentados no sofá a beber um café.

«Tesouro, chegaste» cumprimentou-me a tia com o mesmo carinho de sempre, ainda que eu tenha notado imediatamente uma veia de tensão na sua voz.

«Olá, tia. Bom dia, padre August».

«Vera, como estás?» perguntou-me com uma voz suspeita, enquanto continuava a olhar-me da cabeça aos pés, como se procurasse alguma pista sobre um possível agravamento da minha saúde ou qualquer outra coisa.

Dava-me sempre a impressão que eu tinha algo de errado, ainda que tentasse disfarçá-lo.

Apesar dos muitos anos de convívio, nunca me mostrou afeição como o padre Dominick.

«Bem, obrigada».

«A tua tia estava-me a contar que tomas as tuas hemodoses uma vez a cada três semanas».

«Sim, exacto».

«Muito bem. Aconselho-te a fazer sempre aquilo que diz a tua tia e se não te sentires bem, diz-lhe imediatamente».

«Assim o farei».

«Bem. Continuas a frequentar as aulas de catequese do padre Dominick, certo?».

Suspirei, já irritada com o interrogatório.

Todas as vezes, era a mesma história.

Detestava que a minha saúde se tornasse uma questão de estado.

«Olha que eu só me preocupo contigo».

«Sim, mas eu estou bem, por isso não vejo motivo para todas estas perguntas» desabafei nervosa.

O padre franziu a testa.

«Tanta gente cuida de ti e faz tudo para manter-te viva. Muitas pessoas importantes como os cardeais Montagnard e Siringer ocupam-se da tua saúde. Devias mostrar um pouco mais de gratidão!» murmurou com um tom ameaçador.

Montagnard e Siringer? Novamente estes nomes.

Não podia deixar escapar esta oportunidade.

«Desculpe-me. Não sabia que tinha chamado a atenção de pessoas assim tão importantes, mas... quem são os cardeais Montagnard e Siringer?» Tentei perguntar com uma voz ingénua.

A tia Cecília tinha o rosto pálido e tenso, mas por fim conseguiu abrir a boca.

«É culpa minha. Na realidade, Vera, não te disse uma coisa. Quando a minha prima Annie, ou seja a tua mãe, me procurou, ela estava já nos últimos meses de gravidez. Contudo, eu naquele tempo estava num convento em Portugal e não sabia nada dela. Há anos que não nos falávamos. Foi o próprio cardeal Montagnard a pôr-nos em contacto e quem tomou conta de ti quando nasceste, antes do meu regresso à Irlanda. Infelizmente, quando cheguei à clínica onde estiveram internadas, a tua mãe já tinha sido enterrada. Nunca ninguém soube o nome do teu pai, apesar das pesquisas levadas a cabo pelo cardeal Siringer» explicou a tia Cecília com ânsia.

Estava transtornada.

«Porque nunca me disseste?» perguntei sussurrando.

«Peço-te desculpa, mas não queria causar-te mais sofrimento, minha pequena» sussurrou-me a tia, enquanto os olhos enchiam-se de lágrimas.

Percebi quanto aquele assunto a fazia sofrer. Abracei-a intensamente e sorri-lhe.

«Não te preocupes».

Entretanto o padre August terminou o seu café.

Estava nervoso. Provavelmente, apercebeu-se que tinha falado demais, por isso, decidiu ir-se embora, sobretudo para evitar mais perguntas.

Sem acrescentar mais nada, aproximou-se da porta.

«Já é tarde. Tenho que ir embora» cumprimentou-nos.

Trocamos cumprimentos e começamos a preparar o jantar, sem voltar a tocar no assunto relacionado com a minha mãe e o meu nascimento, se bem que a minha tia parecia estar ainda um pouco abalada por aquilo teve que revelar.

Passou uma semana sem especiais novidades.

Tinha-se levantado um vento gelado e todos estavam fechados em casa.

Até a Patty parecia ter-se acalmado.

Entretanto eu tive uma outra bela nota em biologia.

No fim de semana, o vento abrandou e o sol voltou a aquecer com os seus últimos raios de outono.

Passei o sábado todo a ajudar o Ahmed a fazer os habituais trabalhos na quinta. Acima de tudo, era a sua assistente.

Deitamos óleo na cancela, reparamos a porta do meu guarda-roupa e acabamos de ajustar o recinto.

«Vais ao Kevin buscar comida para as galinhas?» perguntou-me Ahmed a dada altura, tentando gozar comigo.

Sabia que tinha uma grande paixoneta pelo Kevin Moore, o estagiário que trabalhava no Agricentro de John McKaine.

Loiro, olhos azuis, sorriso deslumbrante e inteligente. Resumindo, lindo de morrer.

Tinha mais seis anos que eu e estava noivo, fiel à sua bela Clara Shue, a irmã menos antipática da Patty.

E esta era justiça mundana?

Apesar disso, continuava a correr atrás dele, na esperança de que um dia se apercebesse de mim.

Era para ele que eu tinha decidido reservar o meu primeiro beijo. Dava-me conta o quanto era patética, mas não conseguia resistir-lhe.

Estava para entrar no carro com o Ahmed, quando o padre Dominick chegou no autocarro.

Desceu do transporte com esforço e aproximou-se de nós balanceando.

Fez-me sorrir. Quando caminhava, parecia mesmo um pinguim.

«Bom dia. Vão a algum lugar em particular?» perguntou-nos com os olhos brilhantes.

«Íamos comprar comida para as galinhas» respondi imediatamente.

«Imagino que toda esta vontade de ir ao Agricentro seja pelo facto que te preocupas com o bem-estar dos teus animais e não com um certo bonitão chamado Kevin».

Fiquei vermelha até à ponta dos cabelos.

Porque lhe tinha contado? Seria possível que eu nunca conseguisse guardar segredos?

«Em vez de pensares nestas coisas, porque não vais para casa fazer companhia à tia que prepara as conservas, enquanto nós vamos ao povoado? Diz à tia que voltamos num instante, ok?».

«A propósito, como está a tua tia? Quando me telefonou para cá vir, estava um pouco estranha».

«Pois. Ainda não recuperou completamente da discussão com o padre August».

«O padre August?».

«Sim. Toda a história do meu nascimento e dos cardeais Siringer e Montagnard» fui sucinta para poder ir-me embora o quanto antes.

Ao ouvir aquelas palavras, o padre Dominick ficou nitidamente mais pálido. Eu nem tive tempo de perguntar-lhe se estava bem, pois já caminhava a toda a velocidade para casa.

Estava indecisa entre segui-lo ou ir ter com o Kevin.

Escolhi a segunda opção, com a condição de voltar logo para casa para perceber o que se estava a passar.

Após um quarto de hora a andar de carro, ele estava ali, a poucos passos de mim, determinado a carregar encomendas de madeira comprimida no camião de um velho senhor.

Desci do carro e aproximei-me dele com o sorriso mais deslumbrante que consegui fazer.

«Olá, Kevin» exclamei com a voz mais alta uma oitava.

«Vera, que prazer! Como estás?» cumprimentou-me, olhando-me com os seus dois olhos azuis, que perturbaram o meu sistema nervoso.

Que simpático! Era sempre tão gentil!

«Bem, e tu?» perguntei-lhe contagiada pela habitual euforia que me enchia o coração quando estava perto dele.

«Lindamente. Tenho uma notícia explosiva e quero que sejas a primeira a sabê-la, uma vez que, para mim, és uma grande amiga» respondeu-me enquanto me despenteava os cabelos, como fazia quando eu tinha dez anos. Tinha sido sempre tão fofo comigo e isto alimentou ainda mais o meu amor por ele.

 

Aproximou-se mais de mim e sussurrou-me ao ouvido, fazendo-me arrepios na coluna: «Ontem, o senhor McKaine disse-me que está muito satisfeito com o trabalho que tenho feito para ele nestes cinco anos, por isso, perguntou-me se em maio, quando acabar o estágio, quero tornar-me seu sócio. Assim, posso ganhar muito mais e começar seriamente a fazer projetos para o futuro. Sabes, uma casa, uma família...».

«Fantástico!».

«Pois...e é aqui que surge a segunda e mais importante notícia explosiva...».

Estava tão emocionada e feliz por ele, que não estava mais em mim.

«... pedi a Clara em casamento!»

Mais que uma notícia explosiva, parecia que eu tinha acabado de pisar uma mina terrestre.

Aquele pouco rubor que me coloria as bochechas na sua presença desapareceu e senti os ângulos da boca por terra.

«Estás bem? Ficaste tão pálida» preocupou-se imediatamente.

«É só a minha anemia. Dizias que queres casar?» consegui murmurar num estado de constante apneia.

«Sim, mas obviamente não antes de maio! A Clara diz que no início de junho seria a altura perfeita, com todas as árvores em flor e os primeiros dias de sol quente a aquecer-nos» disse.

Naquele momento, só me apetecia desejar-lhe uma tempestade com trovões e relâmpagos. Tinha apenas acabado de destruir o meu sonho!

Para além disso, parecia que ninguém se tinha apercebido.

Procurei dirigir-lhe um sorriso, mas saiu-me uma espécie de careta.

«Kevin, onde puseste os sacos de aveia que chegaram esta manhã?» gritou próximo de mim John McKaine com o seu timbre de voz habitual.

Naquele momento odiei-o também.

Se ele não lhe tivesse proposto sociedade, o Kevin nunca teria cometido tamanha loucura!

Estava tão embrenhada nos meus pensamentos sombrios, que nem dei conta que ele já se tinha afastado seguido do patrão.

«Adeus, Vera. Volta em breve».

«Adeus, Kevin».

Adeus.

Permaneci ali a olhar para as suas costas cada vez mais longe, antes que Ahmed me chamasse para regressar a casa.

«Vera. Para casa».

«Sim, já vou».

Aproximei-me do carro e entrei com o olhar fixo no Agricentro.

Quando já estávamos longe, pareceu-me ter voltado a respirar ou pelo menos, a suspirar

desolada.

«Casa-se, eh?» pronunciou Ahmed.

Ainda bem que fui a primeira a sabê-lo.

Olhei Ahmed à procura de uma pista sobre uma possível telepatia.

«McKaine».

McKaine tinha-lhe dito.

Agora também me sentia enganada pelo Kevin, mas continuei a acreditar numa mudança.

«Sim, mas até maio muitas coisas podem mudar» coloquei a hipótese.

«Eles se casarão» profetizou convicto.

«Veremos».

Ahmed abanou a cabeça e não abriu a boca até casa.

Passei os últimos quilómetros de estrada, a pensar em mil e uma coisas que podiam acontecer no espaço de seis meses.

Entretanto a tia esperava-nos em casa com um belo chá quente e duas grandes fatias de tarte de maçã.

Em casa pairava o cheiro a doces e maçãs, que perfumava todo o ambiente.

No salão, o padre Dominick estava sentado no sofá, determinado a terminar o seu último pedaço de tarte. De certeza, que era a sua segunda ou terceira fatia. Era mesmo muito guloso.

«Correu tudo bem?» perguntou a tia preocupada com a compra e com a minha expressão fúnebre.

«Já temos a comida. O kevin vai casar-se com a Clara» resumiu Ahmed, antes que eu pudesse abrir a boca.

«Até maio, muitas coisas podem acontecer!» especifiquei convicta.

«Vera, não digas isso! É óbvio que o Kevin está muito apaixonado» repreendeu-me imediatamente a minha tia, feliz pela futura união dos dois jovens.

«Não me interessa! Primeiro a Patty e agora a sua irmã! Aquelas duas existem apenas para me arruinarem a vida!» desabafei furiosa.

«Em vez da tarte, preferias um pouco de pão e mel?» propôs-me candidamente a tia, sabendo o quanto isso me acalmava, mas eu não pretendia deixar-me corromper.

«Não quero nada!» explodi antes de correr para o meu quarto e bater a porta, enquanto duas grandes lágrimas escorriam sobre a minha face.

Estava desesperada! O meu lindíssimo sonho de amor tinha sido interrompido! Queria que fosse eu a casar com o Kevin em maio.

Porque é que a vida tinha que ser assim tão injusta?

MUDANÇAS

Passei duas semanas infernais.

Dentro de mim agitavam-se emoções, como a raiva, a frustração, a tristeza e a vingança, enquanto no exterior parecia apática e perto do suicídio.

Não comia, não falava e não dormia.

Enfraqueci muito rapidamente e quando me recusei a tomar uma hemodose, a tia Cecília ficou tão preocupada que chamou o padre Dominick.

«Por quanto tempo pensas continuar assim?» perguntou-me Dominick, cansado do meu silêncio.

«Para sempre» sussurrei.

«Então és uma idiota. Claro que o Kevin tem a sua cota parte de culpa porque sempre te iludiu com os seus gestos carinhosos e gentis, mas foste tu quem construiu castelos no ar. Ele nunca disse que te amava e muito menos que queria estar contigo, assim se confundiste uma paixoneta de rapariguita imatura com amor, a responsabilidade é apenas tua. Cresce porque o amor é outra coisa» desabafou Dominick furioso.

Era a primeira vez que se dirigia a mim daquela maneira e não estava mesmo nada à espera.

Olhei-o chateada.

«Então, diz-me o que é o amor» provoquei-o com um tom de voz ácido.

«É um sentimento muito mais profundo, que se constrói com o tempo e estando próximo da outra pessoa tanto nos momentos mais felizes como nos mais difíceis. Se amasses realmente o Kevin, estarias feliz pela sua escolha, porque desejarias a sua felicidade e o seu bem-estar. O amor verdadeiro não é um desejo egoísta, como o teu!».

Pensei muitas vezes naquelas palavras tão duras e fortes.

Por fim, percebi que o padre Dominick tinha razão. Aliás, o que eu sabia verdadeiramente do Kevin, para além do facto que era sempre gentil com os clientes?

Para ser sincera, não sabia nada dele.

Não sabia qual era o seu prato preferido, que tipo de música escutava, o que gostava de fazer no seu tempo livre, para além de estar com a Clara, se era desorganizado ou meticuloso...

Todavia, não conseguirei esquecer todos aqueles anos dedicados a fantasiar acerca dele e de uma possível história de amor toda nossa.

Em poucos dias, voltei a comer, dormir e falar.

A tia Cecília ficou tremendamente aliviada ao ver-me novamente em forma, sobretudo depois de ter tomado a minha hemodose e voltar a ser falastrona como antes. Durante dias tinha tentado fazer-me comer, preparando-me todo o género de comida, mas eu tinha desistido. A minha recusa contínua em dirigir-lhe a palavra, também a tinha feito desesperar.

Por fim, também eu estava feliz por voltar a ser a Vera de antigamente.

Um dia, era quase noite, quando o telefone tocou.

Eu estava entretida com o enésimo filme de amor choramingas, por isso não lhe prestei atenção. Foi a minha tia a atendê-lo.

Não conseguia compreender o que a tia dizia, mas apercebi-me que tinha acontecido algo de grave, porque o seu tom de voz mudou e ficou muito preocupada.

Foi um curto telefonema.

«Está tudo bem?» perguntei-lhe, quando a vi regressar da cozinha, onde tínhamos o telefone.

«Infelizmente, o cardeal Montagnard morreu de um enfarte».

«Lamento. Conhecias-lho bem?».

«Sim. Estava muito ligada a ele e admirava-o tanto como homem, quanto como eclesiástico» explicou-me a tia com lágrimas nos olhos.

Era a primeira vez que via a tia triste pela perda de alguém e não pensava que pudesse sofrer assim tanto.

Ficou apática e silenciosa durante dias, atormentada pela sua dor.

Por fim, decidi esperar a segunda-feira da semana seguinte.

Na escola tinha sido convocada uma greve contra a lei da redução dos professores e por isso, teria todo o dia livre e estava determinada a levar a tia ao centro comercial para fazer compras.

Ainda que não tivesse muito dinheiro de parte, devido à minha reduzida mesada semanal, tinha intenções de comprar-lhe um presente nem que para isso, gastasse todas as minhas poupanças.

Queria levá-la às lojas e comprar-lhe um perfume, uma camisola ou um livro.

Qualquer coisa que lhe fizesse voltar a sorrir.

Por sorte, aquela segunda-feira chegou rápido.

Levantei-me à hora habitual, mas desci com calma para tomar o pequeno-almoço, depois de me ter lavado e vestido cuidadosamente.

«Vera, é tardíssimo! De certeza que vais perder o autocarro!» repreendeu-me a tia, mal coloquei os pés na cozinha.

«Hoje não tenho que ir à escola! Há greve» expliquei-lhe imediatamente com um grande sorriso nos lábios.

«Ah, sim. Talvez me tinhas dito... não me lembro» respondeu-me a tia com um tom de voz ausente.

«Pois. Por isso, decidi ir à cidade, porque tenho que comprar um livro para a escola. Podes acompanhar-me, por favor? Menti. Sabia que se dissesse à minha tia que queria levá-la às compras, nunca aceitaria, mas se se tratasse de material escolar, estaria sempre pronta.

«Está bem, mas agora não. Prometi ao Ahmed que falávamos sobre o novo gado, que chegará até o fim da manhã, mas hoje à tarde de certeza que te posso levar à livraria» assegurou-me.

Projeto adiado.

Detestava adiar os meus planos, porque depois chegava o enésimo contratempo a estragar tudo.

Devia tê-lo antecipado para o dia anterior.

Assim dei por mim a não saber o que fazer.

Acabei por optar pela televisão.

Passou-me a vontade de sair.

Estava prestes a voltar para o quarto para mudar de roupa, quando de repente, soou a campainha.

Fui abrir.

Era Dominick acompanhado de dois homens altos e maciços, vestidos de negro com o desenho de uma cruz branca com uma gota vermelha ao centro, bordado no bolso do casaco.

Fiquei tão curiosa com aqueles dois endemoniados, nunca antes vistos, imóveis perante a porta da minha casa, que não prestei atenção à voz transtornada do padre Dominick, que me empurrou bruscamente para dentro de casa e gritou o nome da minha tia.

«Cecília, têm que se ir embora! Agora!» gritou o padre Dominick aterrorizado.

«O que está a acontecer?» perguntou-lhe a tia, tentando não mostrar a sua angústia.

«Eles sabem tudo e estão a chegar!» gritou novamente o padre Dominick.

«Eles quem?» intrometi-me alarmada.

Ninguém me respondeu, mas percebi que a tia sabia a quem o padre se referia, porque levou a mão direita à boca, para tentar sufocar um grito.

«Mas como é possível?» sussurrou a tia com um fio de voz.

«Assassinaram-no! Assassinaram o cardeal Montagnard, depois de o terem feito confessar! Agora eles sabem tudo e vocês não estão mais seguras. Virão procurá-las e quando o fizerem, apanharão a Vera e vão matá-la».

Eu? Mas o que tinha a ver com isto tudo?

Estava tão chocada que não consegui abrir a boca.

«Dispararam-lhe em vez de usarem o seu habitual modo de atacar. Por isso, a Ordem levou tanto tempo a perceber quem era o culpado do homicídio. De certeza que foi o Blake. Só ele e o seu bando são capazes de um crime semelhante. Ninguém sabe o que aconteceu realmente, mas ao que parece o cardeal contou tudo ao Blake, provavelmente sob tortura» continuou o padre Dominick.

«Mas é terrível!».

«Pois e agora devem fugir. Já vos reservei um quarto num hotel em Dublin. Quando chegarem, receberemos novas ordens do cardeal Siringer, que nos quer encontrar».

«Mas como fazemos?» suspirou a tia abalada.

Naquela quinta estava a sua casa, a sua vida.

E também a minha.

«Temos que partir imediatamente. Vamos viajar toda a noite, se necessário. Seremos escoltados por dois membros de confiança da Ordem, sob coordenação do cardeal Siringer, que nos levarão primeiro ao hotel e depois ao lugar prefixado para o encontro. Por isso, mexam-se! Levem o mínimo indispensável e vamos embora!» recomeçou a gritar o padre Dominick.

Por alguns segundos, que me pareceram horas, a tia e o padre olharam-se intensamente nos olhos, depois disso, como que movida por uma força inexplicável, a tia agarrou-me por um braço e arrastou-me pelas escadas até ao meu quarto.

 

Em frente à porta, abraçou-me e sussurrou-me docemente ao ouvido: «Não te preocupes. Estarei sempre presente para te defender. Não permito que ninguém te faça mal. Foi assim por dezassete anos e será sempre, enquanto for viva».

«Tia, o que está a acontecer?» consegui perguntar baixinho.

«Está calma. Agora vai para o teu quarto. Tens três minutos para pegares na mala que está debaixo da tua cama e enchê-la com aquilo que te pode ser útil nos próximos dias. Quando estivermos longe daqui te explicarei tudo. Prometo-te».

Não tive outra escolha.

Corri para o meu quarto, abri o guarda-roupa e comecei a encher a mala que tirei de debaixo da cama, com camisolas e calças. Alguma roupa interior, o estojo de maquilhagem e as minhas poupanças. Estava prestes a fechar a bagagem, quando notei a foto que tinha sobre a mesa-de-cabeceira perto da cama. Era uma foto minha com a tia abraçadas em frente à cancela da quinta.

Adorava aquela foto tirada pelo Ahmed há alguns anos atrás.

Coloquei-a também e fechei o zip da mala.

Saí do meu quarto, olhando-o mais uma vez. Aquele tinha sido o meu quarto de infância, o meu refúgio.

Tinha esperança de um dia poder voltar ali, mas alguma coisa me dizia que aquele era um adeus.

Fechei a porta do quarto atrás de mim com um véu de tristeza.

Mal desci para o piso inferior, o padre Dominick agarrou-me pelas costas e arrastou-me para fora de casa em direção a um carro negro, que estava estacionado em frente à cancela da quinta.

Mal me viram, os dois homens desconhecidos entraram no carro e o mais forte pôs-se ao volante.

«Quem são aqueles dois?» perguntei.

«Não há tempo para explicações» abreviou o padre, fazendo-me entrar no carro, para depois apressar-se a ajudar a tia, que estava a dois passos da viatura. Nesse instante, chegou Ahmed.

«Ahmed, chegou o momento do qual falámos com frequência. Adeus» a tia cumprimentou-o, pouco antes de entrar no carro empurrada pelo padre Dominick.

«Fechar a porta e partir. Adeus, Cecília. Vera, vou ter saudades tuas» cumprimentou-nos o Ahmed com um ar triste.

«Adeus, mas talvez nos voltemos a ver» confortei-o, mas ele sacudiu a cabeça e foi-se embora, no mesmo instante em que a BMW negra também partiu.

Senti uma onda de infelicidade propagar-se no meu coração.

Comparando com aquilo, o que tinha sentido pelo Kevin depois de ter sabido do seu futuro casamento, parecia uma ninharia.

Gostava muito do Ahmed e nunca pensei que um dia, ficaria sozinha.

Mal o carro partiu a toda a velocidade, senti o suspiro de alívio da tia e do Dominick.

Apenas eu permanecia tensa como uma corda de violino.

«O Ahmed não vem connosco?» tentei perguntar.

«Não, Vera. O Ahmed tem que ficar a tratar dos nossos assuntos. Dará a casa a uma instituição de caridade e avisará a escola da tua partida, informando-a da tua transferência inesperada devido a problemas de saúde e depois partirá para a Tunísia com o dinheiro que lhe deixei numa conta corrente particular, para ser usado só em caso de necessidade. Na verdade, há anos que isto está tudo planeado» explicou-me a tia, acariciando-me a cabeça.

Tudo isto era ainda incompreensível para mim. Mil pensamentos e frases pronunciadas giravam na minha mente a uma velocidade incontrolável. Não conseguia memorizar um pormenor, que depois desaparecia para dar lugar a outra coisa qualquer.

Ahmed. A escola. Kevin. Patty Shue. Ron. A quinta. Eles.

O cardeal Montagnard. Dublin. O cardeal Siringer.

Tantos, demasiados pensamentos passavam a grande velocidade na minha mente.

Pensava na escola. Estava a recuperar a biologia e ainda tinha que receber a nota do relatório de história.

Para além disso, continuava zangada com a Patty por ter dito a todos que estava noiva do Ron.

Que sentido tinha tudo isto, se no dia seguinte estarei, sabe-se lá onde?

Não voltaria a ver o Kevin. Porquê levar tão a peito o seu casamento com a Clara, se eu não ia estar presente na mesma.

Talvez estarei morta em maio. Não me tinha esquecido que alguém me procurava, depois de ter morto um homem. Era óbvio que tinha reservado para mim o mesmo final cruel.

Eles.

Eles, quem?

Ainda ninguém me tinha explicado quem era esta gente e o que queria de mim.

Tentei pela enésima vez.

«Por favor, expliquei-me porque está a acontecer isto tudo e quem são eles?».

A tia olhou-me com os olhos cheios de tristeza e desespero. Também o padre Dominick olhou-me angustiado.

«Olha, tu és uma rapariga especial» a tia iniciou com esforço.

«Em que sentido?».

«Nasceste em circunstâncias especiais, inesperadas e ainda em parte desconhecidas. Só o cardeal Montagnard sabia a verdade e quando a tua mãe morreu, ele decidiu tomar conta de ti. Desde o nascimento mostraste graves problemas de saúde por causa da tua anemia, mas ele fez de tudo para ajudar-te a sobreviver e ao fazê-lo notou que havia algo em ti maravilhosamente inesperado. Não disse a ninguém o que era, mas decidiu fazer-te crescer num ambiente protegido. Posteriormente, revelou ao cardeal Siringer, o chefe da Ordem da Cruz Ensanguentada, o teu nascimento e disse apenas que eras a solução para o seu problema».

«Qual problema?».

«Ser-te-á revelado no tempo certo, mas fica sabendo que o teu nascimento trouxe muita confusão na Ordem. O cardeal Montagnard mandou regressar do Zimbabwe Cecília, um antigo membro da Ordem, encarregando-a de criar-te, enquanto o cardeal Siringer exigiu um controlo externo, o padre August. Só cheguei mais tarde, quando a Cecília pediu uma ajuda amiga capaz de apoiá-la» interveio o padre.

Então não era verdade que quando a minha mãe morreu, a tia encontrava-se em Portugal, pensei.

«Sabes, nunca tinha tido uma filha e tinha medo de errar contigo, além que o padre August criticava todas as minhas escolhas e dizia que tinha sido um erro teres sido confiada a mim, porque me tinha apegado demasiado a ti e isso não me permitia ser objetiva. Dominick era um velho amigo meu e confiava cegamente nele. Além disso, conhecia a Ordem e as suas leis, assim decidiu envolver-se com o objetivo de dar-te uma determinada educação religiosa» contou a tia.

Agora percebo porque nunca tinha gostado do padre August.

Tinha sempre a sensação que me controlava e a tia não se sentia confortável na sua presença.

Mas, de momento, o que me deixava mais perplexa era o motivo de tanto secretismo, sobretudo da parte da minha tia, que apesar de tudo era a prima da minha mãe.

Mencionei-o à tia, que me olhou com uma expressão ainda mais angustiada.

«Bastou-me ter-te nos braços por apenas um minuto, que percebi o quanto te adorava. Eras a criatura mais doce e bela do mundo. Todas as vezes que me sorrias, a escolha de abandonar os votos para estar contigo, tornava-se menos penosa. Apercebi-me que podia ser feliz assim, mesmo servindo o Senhor de forma diferente. Todavia...» iniciou a tia, mas as palavras não lhe saiam.

«Todavia ela não é realmente tua tia, ainda que te ame como uma mãe ama o próprio filho» o padre Dominick terminou por ela a frase com um ar de sofrimento.

Fiquei petrificada.

A tia Cecília não era minha tia?

Tudo, menos isto.

Isto era demasiado.

Não consegui pronunciar nenhuma palavra.

Estava transtornada.

Olhei a minha tia, ao meu lado, no banco posterior do carro, que chorava baixinho, repetindo continuamente: «Perdoa-me».

Pareceu-me entrar em transe, num estado de semiconsciência.

Todas as minhas certezas caíram por terra.

Passaram-se horas.

Permaneci naquele estado até chegarmos a Dublin ao final da tarde.

Lembro-me apenas que o carro parou mesmo em frente a um hotel, o Jolly Hotel.

O homem da receção nem nos perguntou pelos documentos, entregou-nos simplesmente as chaves dos quartos.

Eu e a tia fomos levadas para o quarto 112, enquanto o padre Dominick dirigiu-se sozinho para a porta 115.

O quarto era pequeno com papel de parede amarelo, tal como as cortinas e as cobertas.

Havia duas camas de solteiro. Sentei-me sobre a que estava ao fundo, perto da janela.

Posei a minha mala no chão e observei a estrada iluminada pelos postes de luz, no exterior da janela.

«Tens fome?» perguntou-me a tia, fazendo-me saltar de susto. Depois de me revelar que não era minha tia, não me tinha dirigido mais a palavra.

«Não, obrigada».

«Tens a certeza? Não comeste nada, nem mesmo no autogrill onde paramos para almoçar» mencionou preocupada.

Apeteceu-me perguntar-lhe porque se interessava tanto por mim, uma vez que eu não lhe era nada, mas não o fiz.