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Hamlet

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SCENA III

Uma sala no castello
Entra o REI com a sua comitiva
O REI

Mandei chamar Hamlet e procurar o cadaver. Que perigo deixar livre um tal homem; mas não podemos fazer pesar sobre elle todo o rigor das leis. A multidão insensata estima-o, decidindo-se mais pela vista do que pela rasão; n'estas circumstancias o que devemos pensar é o castigo dos culpados, nunca o crime só por si. Para prevenir qualquer descontentamento é forçoso que este precipitado exilio pareça consequencia de madura reflexão. Para males desesperados remedios energicos, ou nenhuns. (Entra Rosencrantz.) Então que aconteceu?

ROSENCRANTZ

Nada podemos saber da sua bôca relativamente ao cadaver.

O REI

Onde está Hamlet?

ROSENCRANTZ

No quarto vizinho, esperando debaixo de segura guarda as ordens de vossa magestade.

O REI

Que venha á nossa presença.

ROSENCRANTZ

Olá, Guildenstern. Conduze Hamlet a este aposento. (Entram Hamlet e Guildenstern.)

O REI

Hamlet, onde está Polonio?

HAMLET

N'um banquete.

O REI

N'um banquete?! onde?

HAMLET

Onde não come, mas é devorado. Uma multidão de vermes politicos disputa o seu cadaver. O verme é o monarcha dos comedores. Engordâmos todas as creaturas para nos engordarmos, e engordâmo-nos para pasto dos vermes. Um rei gordo e um mendigo magro são duas iguarias differentes, comtudo hão de ser servidas á mesma mesa. Esta é a verdade.

O REI

Infelizmente assim é!

HAMLET

É possivel que se pesque, com um verme creado em cadaver real, um peixe, e que se coma depois o peixe que enguliu o verme.

O REI

Que significam as tuas palavras?

HAMLET

Nada; apenas as transformações pelas quaes póde passar um rei para penetrar nos intestinos do pobre.

O REI

Onde está Polonio?

HAMLET

No céu. Mande ali o seu mensageiro procural-o, e se não o achar, procure-o então o rei no sitio opposto. Em todo o caso se não o acharem até d'aqui a um mez, o olfato o denunciará junto á escada da galeria.

O REI (á sua comitiva)

Procurem-o já.

HAMLET

Esperal-os-ha com certeza. (Sáe a comitiva do rei.)

O REI

Hamlet, no interesse da tua saude, que nos é tão cara, quanto dolorosa a acção que commetteste, é forçoso que partas com a maior brevidade; vae, pois, preparar-te. O navio está prompto e o vento sopra propicio; os teus companheiros esperam-te, e tudo está disposto para a tua viagem a Inglaterra.

HAMLET

A Inglaterra?

O REI

Sim, Hamlet.

HAMLET

Está bem.

O REI

O mesmo dirias conhecendo todos os meus projectos.

HAMLET

Descubro um anjo que os vê. Mas partâmos para Inglaterra. Adeus, minha querida mãe.

A RAINHA

E teu pae que te estremece?

HAMLET

Não, minha mãe; pae e mãe são marido e mulher, marido e mulher são uma e mesma carne. Assim, pois, adeus, minha mãe. Vamos para Inglaterra. (Sáe.)

O REI (a Rosencrantz e Guildenstern)

Sigam-o passo a passo, façam-o embarcar promptamente, não ha tempo que perder. Quero que já esta tarde esteja afastado d'estes sitios. Vão! Tudo quanto respeita a este negocio foi já expedido e sellado com as nossas armas. Aviem-se, peço-lh'o. (Sáem.) (Continuando) Rei de Inglaterra, sabes até onde chega o meu poder; as feridas infligidas pelo ferro dinamarquez ainda sangram, e teu respeito nos presta livre homenagem. Se, pois, prezas a minha benevolencia, não receberás friamente as ordens soberanas contidas nas minhas cartas e que exigem a morte de Hamlet. Obedece-me, rei de Inglaterra, porque Hamlet é febre que requeima o meu sangue, e tu é que me deves curar d'ella. Não terei um dia de prazer e descanso emquanto não souber a completa execução das minhas ordens, aconteça o que acontecer. (Sáe.)

SCENA IV

Uma planicie na Dinamarca
Chega FORTIMBRAZ á frente das suas tropas
FORTIMBRAZ (a um dos seus officiaes)

Capitão, saúde da minha parte o rei de Dinamarca e diga-lhe, que, em conformidade com a sua promessa, Fortimbraz lhe pede livre passagem pelo seu territorio; sabe o ponto em que nos devemos encontrar. Se sua magestade desejar fallar-me, irei prestar-lhe as minhas homenagens. Diga-lh'o da minha parte.

O OFFICIAL

As suas ordens serão cumpridas, meu senhor!

FORTIMBRAZ (ás suas tropas)

Avancemos em attitude pacifica. (Fortimbraz e as suas tropas afastam-se. O official fica.)

Chegam HAMLET, ROSENCRANTZ, GUILDENSTERN e mais pessoas
HAMLET (ao official)

Que tropas são essas, meu amigo?

O OFFICIAL

É o exercito norueguez, senhor!

HAMLET

Qual é o seu destino?

O OFFICIAL

Um ponto do território da Polonia.

HAMLET

Quem o commanda?

O OFFICIAL

Fortimbraz, sobrinho do rei de Noruega.

HAMLET

É contra a Polonia toda, ou só contra um ponto determinado da fronteira que marcham?

O OFFICIAL

Se quer que lhe diga a verdade, marchâmos contra uma parte da Polonia, cuja conquista será para nós gloria, sem proveito algum. Estou certo que a sua renda não vale cinco ducados, e se se vendesse ninguem daria mais.

HAMLET

Se assim é, os polacos não devem offerecer resistencia?

O OFFICIAL

Pelo contrario, até já o guarneceram.

HAMLET

Duas mil almas e vinte mil ducados chegarão apenas para tão futil empreza; é um d'estes abcessos que resultam de uma demasiada e prolongada prosperidade que rebenta internamente, sem que nada indique exteriormente a sua acção mortal. Obrigado, amigo.

O OFFICIAL

Deus seja comvosco, senhor. (Afasta-se.)

ROSENCRANTZ

O principe quer que continuemos o nosso caminho?

HAMLET

Póde ir indo, em breve o alcançarei. (Sáem Rosencrantz e Guildenstern.) (Continuando.) Como sempre tudo me accusa e me excita á tardia vingança. O que é o homem, se o seu primeiro bem, o maior negocio da sua vida, consiste em comer e dormir! É um animo brutal, nada mais. Seguramente, que aquelle que nos dotou com essa vasta comprehensão, capaz de abraçar o passado e o futuro, não nos deu essa intelligencia, esse admiravel raciocinio, para que ficassemos ociosos e sem emprego. Quer seja estulto esquecimento, quer cobarde escrupulo, medito demasiado na acção que tenho que commetter, pensamento composto de uma quarta parte de siso e tres quartas partes de cobardia. Como me espanto a mim mesmo quando repito: Eis o que devo fazer, já que me sobram os motivos, tenha eu ao menos vontade, força e energia para o executar. Incitam-me os mais irrecusaveis exemplos; testemunho este numeroso exercito, capitaneado pelo seu joven principe, cujo genio intrepido, soprado por uma ambição divina, affronta, rindo, as eventualidades de um porvir invisivel, expondo uma vida mortal e incerta, a tudo quanto podem ousar a fortuna, a morte e os perigos, e tudo por nada, por uma bagatella. A verdadeira grandeza consiste, não só em commover-se com grandes e poderosas rasões, mas tambem em achar n'uma bagatella rasões de conflicto, cuja verdadeira causa é o pundonor. Que posição pois a minha, eu que tenho um pae assassinado, uma mãe deshonrada; eu que tenho tantos motivos de colera e que tudo deixo adormecer, emquanto que para minha vergonha vejo vinte mil homens, por uma louca esperança de gloria exporem-se á morte, caminharem para o tumulo, como caminhariam para o leito; irem combater para conquistar um quinhão de terra insufficiente para caberem n'elle, e cujo terreno seria uma sepultura acanhada para os mortos. Ah! quanto se revelam sanguinarios os meus pensamentos, ou então nada. (Afasta-se.)

SCENA V

Uma sala no castello de Elsenor
Entram HORACIO e a RAINHA
A RAINHA

Não lhe quero fallar.

HORACIO

Pede-o encarecidamente. Verdade é que ella perdeu a rasão; o seu estado é digno de compaixão.

A RAINHA

O que pretende ella?

HORACIO

Falla sempre no pae, pretende terem-lhe dito que n'este mundo se commettem bem más acções, suspira, bate no peito, exaspera-se sem motivo. Profere palavras equivocas e sem sentido. Nada diz, comtudo quem ao ouvil-a não teria vontade de a comprehender. Aquelles que a ouvem procuram adivinhar o sentido, e preenchendo as lacunas, tentam completar o sentido das suas fallas. Vendo os movimentos que faz, acompanhando as palavras, todos lhe suppõem um pensamento, um sentido, e provavelmente tem-no, mas de certo bem sinistro.

A RAINHA

É conveniente fallar-lhe, porque poderia impressionar malevola e perigosamente os espiritos. Que venha. (Horacio sáe.) (Continuando) Ah! minha alma enferma! Será uma condição do crime, que a menor bagatella pareça sempre a precursora de alguma grande calamidade? Tal é a desconfiança em uma consciencia culpada, que se trahe a si mesma com o receio de se trahir.

 
HORACIO entra com OPHELIA
OPHELIA

Onde está a bella rainha de Dinamarca?

A RAINHA

Ophelia?

OPHELIA
 
Como hei de eu conhecer o bem amado
Por entre a multidão?
Pelo chapéu de conchas enfeitado
E pelo seu bordão.
 
A RAINHA

Infeliz Ophelia! Que significam esses versos?

OPHELIA

Pergunta-mo? Escute então…

 
Levaram-no bem morto ao cemiterio!
O que tu foste e és!..
Sob a fronte senil myrto funereo,
E fria pedra aos pés!
 

Ai de mim! (Chora.)

A RAINHA

Ophelia, querida Ophelia?

OPHELIA

Ouça mais, peço-lh'o…

Branca de neve a frigida mortalha…

Entra o REI
A RAINHA

Veja, senhor!

OPHELIA
 
É como um prado em flor
Baixou á campa a fronte e não a orvalha
Com lagrimas o amor!!
 
O REI

Como está bella, Ophelia?

OPHELIA

Bem, louvado Deus, dizem que a coruja fôra outr'ora filha de um padeiro. Meu Deus, nós sabemos o que somos, mas nunca o que poderemos vir a ser. Que Deus abençôe a sua mesa.

O REI

Recorda-se do pae?

OPHELIA

Não fallemos mais n'isso, mas se me perguntam o que significa, dir-lhes-hei o que é. Respondam.

 
São Valentim! dizes-me a minha sina?
A pé já todos são.
Queres que eu seja a tua Valentina?
Sou virgem, sim ou não?
Ergueu-se elle e vestiu-se; mansamente
Do quarto a porta abriu;
E virgem ella entrou… mas tão sómente
Mulher quando saíu.
 
O REI

Encantadora Ophelia!

OPHELIA

Em verdade vou terminar sem juramento.

 
Por Jesus! pela santa caridade!
Quem vale á infeliz?!
Ai! são todos assim na mocidade,
A sorte é quem n'o quiz!
Antes da minha quéda prometteste
Conduzir-me ao altar:
Por Deus o houvera feito… não quizeste.
Quem te mandou entrar?
 
O REI

Ha quanto tempo é que este infeliz estado se apoderou d'ella?

OPHELIA

Tudo vae bem! É preciso ter paciencia; não posso reter o pranto, pensando que está debaixo da terra fria e humida. Meu irmão ha de sabel-o, obrigada pelo conselho. Chegue a minha carruagem. Boa noite, minhas senhoras, boa noite, bellas senhoras, Adeus, boas noites! (Sáe correndo.)

O REI (a Horacio)

Siga-a, não a perca de vista, vigie-a cautelosamente, peço-lh'o eu! (Horacio sáe.) (Continuando) Oh! é aquelle o veneno de uma dor profunda, causada pela morte do pae. Ah! Gertrudes, Gertrudes, quando as dores nos assaltam, nunca é isoladamente, é como se viessem em tropel. Primeiro a morte do pae, depois a partida de Hamlet, que tão violentamente decretou o proprio exilio; o povo alvoroçado e descontente, commenta malevola e insidiosamente a morte de Polonio, e nós obrámos pouco assisadamente ordenando o prompto enterro; a infeliz Ophelia, inconsciente do seu estado, está privada da rasão, sem a qual somos simples estatuas, creaturas brutas. Para cumulo de desgraça esta vale todas as outras, seu irmão voltou secretamente de França, embrenha-se no labyrintho de noticias, e mantem-se occulto. Não deixará por certo de haver bôcas malevolas, que por occasião da morte de seu pae, envenenem seus ouvidos com insinuações perfidas, e a calumnia, na carencia de outro assumpto, não nos poupará com os seus dardos envenenados e mortiferos. Ah! querida Gertrudes; tudo isto, similhante a um instrumento de morte, vibra-me mais golpes que os necessarios para pôr termo á minha vida. (Ouve-se um grande rumor fóra da sala.)

A RAINHA

Que rumor é esse?

O REI

Olá, venha alguem. (Entra um official do palacio.)

O REI (continuando)

Onde estão os meus suissos? Que defendam as portas. Dize-me já o que ha.

O OFFICIAL

Fuja, senhor; o oceano, rompendo os diques, não invade com mais violencia a campina, do que o joven Laerte, á frente da rebellião, derruba a resistencia dos vossos officiaes. O povo chama-lhe soberano, e como se fosse no começo do mundo, sem tradições, nem passado, nem usos, sobre que tudo se firma, ou as tivesse esquecido, exclama: Elejâmos um rei! Laerte será o nosso rei? Todos se descobrem e agitam os gorros, todas as mãos applaudem, todas as vozes repetem: Laerte será rei. Viva o rei Laerte!

A RAINHA

Com que prazer esta matilha segue uma pista falsa! Enganam-se! Dinamarquezes ingratos!

O REI

Entraram á força. (Redobra o rumor. Entra Laerte seguido por muito povo dinamarquez.)

LAERTE

Onde está esse rei? Senhores, retirem-se para fóra.

O POVO

Nada! Queremos todos entrar.

LAERTE

Façam o que lhes peço.

O POVO

É justo! é justo! (Sáem.)

LAERTE

Obrigado, senhores; guardem as portas. (Ao rei.) Infame! entrega-me meu pae.

O REI

Socegue, meu caro Laerte.

LAERTE

Se uma só gota do meu sangue não fervesse, essa gota proclamar-me-ía bastardo, attestaria a deshonra de meu pae, e imprimiria na casta fronte de minha adorada mãe um estigma indelevel de infamia.

O REI

O que deu azo, Laerte, a uma rebellião, que assumiu proporções tão colossaes? Está tranquilla, Gertrudes, por nós nada receies; graças ao caracter sagrado que protege os reis, a traição não lança senão um olhar timido e incerto para o resultado que anhelam os seus desejos, e os effeitos estão longe de corresponder á sua esperança. Dize-me, Laerte, o motivo d'esta irritação violenta. Nada receies, Gertrudes. Falla, Laerte.

LAERTE

Onde está meu pae?

O REI

Morreu.

A RAINHA

Mas o rei está innocente.

O REI

Deixa-me interrogal-o á minha vontade.

LAERTE

Como morreu elle? Não admitto duvidas, dispenso juramentos; leve o demonio a fé jurada, sepultem-se no abysmo a consciencia e a fidelidade. Affrontarei a condemnação, declaro-o formalmente; renuncio a tudo n'este e no outro mundo, aconteça o que acontecer, comtanto que vingue de um modo bem patente a morte de meu pae.

O REI

E quem t'o impede?

LAERTE

A minha vontade só e não a do universo inteiro; quanto aos meios de que disponho, empregal-os-hei de modo que com recursos limitados tire d'elles o maior proveito.

O REI

Comprehendo, querido Laerte, que queiras saber a verdade toda a respeito da morte de teu estremecido pae. Mas estás tu resolvido a confundir amigos e inimigos, aquelles que perderam e aquelles que ganharam com a sua morte?

LAERTE

Unicamente os inimigos quero punir.

O REI

E queres conhecel-os?

LAERTE

Quanto aos seus amigos, abro-lhes os braços com alvoroço; e similhante ao pelicano que rasga o seio, para com o sangue alimentar os filhos, estou prompto a por elles dar o meu sangue todo.

O REI

Ainda bem; fallas agora como bom filho e homem honrado. Sou innocente na morte de teu pae, e deploro-a amargamente; demonstral-o-hei á tua rasão com provas tão claras como a luz do dia.

O POVO (de fóra)

Deixem-a entrar.

LAERTE

O que é? Que rumor é esse? (Entra Ophelia estranhamente enfeitada com flores na cabeça e palhas entrançadas nos cabellos.) (Continuando.) Meu pobre cerebro! Sequem-se as minhas lagrimas, que, sete vezes corrosivas, queimam meus olhos e afastam d'elles o sentido da vista! Por Deus! A tua demencia será paga com usura, até que o nosso peso faça baixar uma das conchas da balança. Rosa de primavera, filha querida, carinhosa irmã, boa Ophelia! Oh! ceus! pois será possivel que a rasão de uma jovem mulher seja tão fragil como a vida do ancião! A natureza tem no seu amor um perfume subtil e raro, cujas emanações se infiltram no objecto amado.

OPHELIA
 
Levaram-no em mesquinha padiola
E foram-no enterrar!
Mas chove-lhe na tumba, ai! grata esmola
De lagrimas um mar.
 
LAERTE

Possuisses tu toda a tua rasão, animasses-me tu á vingança, não conseguias crear em mim uma emoção.

OPHELIA

Forçoso é que eu cante e tu tambem:

 
Abaixo! Abaixo!
Lançae-o abaixo!
 

Devias ouvir cantar ás fiadeiras; é a canção do intendente desleal, que raptou a filha de seu amo.

LAERTE

Estes nadas tudo me dizem.

OPHELIA (a Laerte, dando-lhe uma flor)

Toma, é rosmaninho a flor da lembrança. Lembra-te de mim, peço-t'o, meu querido; estes são amores perfeitos, é para que sempre viva no teu coração de irmão.

LAERTE

Ha sentido no seu delirio. Acaba de distinguir acertadamente a lembrança e o pensamento.

OPHELIA (ao rei)

Aqui tendes, senhor, estas symbolicas flores. (Á rainha) Para vós, senhora, é arruda e tambem para mim; para vós será a herva da ventura, para mim a da dor. Eis um malmequer. Queria dar-vos violetas, mas feneceram todas quando meu pae morreu; dizem que teve o fim do justo.

Porque era o bom Robim minha alegria

LAERTE

A melancolia, a afflicção, a colera, o proprio inferno, tudo é divino proferido por ella.

OPHELIA
 
E nunca mais virá?!
Morreu! morreu! morreu! ai! que agonia!
Não mais! não voltará!
Era a barba tão branca como a neve:
Partiu! foi para os céus.
Perdida, inutil dor! Breve, até breve,
Tem dó d'elle, meu Deus!..
 

Assim como de todas as almas christãs, assim o peço a Deus, e elle seja comvosco. (Sáe.)

LAERTE

Vêem? Meu Deus!..

O REI

Deixa-me, Laerte, fallar-te no teu infortunio; é um direito que me pertence e que me não pódes negar sem injustiça. Reune em particular os teus amigos mais assisados; elles nos ouçam, e depois julguem entre nós dois. Se culpado me acharem, directa ou indirectamente, entrego-te, em expiação da minha culpa, reino, corôa e vida, e tudo quanto possa dizer meu; no caso contrario, peço-te só paciencia, e de accordo obraremos para te alcançar uma completa satisfação.

LAERTE

Consinto. As circumstancias da sua morte, o seu funeral obscuro, em que nem trophéus, nem espada, nem brazão figuraram, a ausencia de toda a ceremonia funebre no saímento do seu corpo, são como um aviso do céu, que me clama pela voz celeste: Indaga como foi.

O REI

Faça-se pois um inquerito, e o cutelo do algoz puna o culpado. Agora peço-te, Laerte, que me sigas. (Sáem ambos.)

SCENA VI

Um quarto no castello de Elsenor
Entram HORACIO e um CREADO
HORACIO

Quem é que me pretende fallar?

O CREADO

Marinheiros… e dizem que têem cartas que lhe são dirigidas.

HORACIO

Que entrem pois; (o creado sáe) (só) não percebo de que canto do mundo se lembraram de me escrever. Só se for Hamlet.

Entram os MARINHEIROS
PRIMEIRO MARINHEIRO

Guarde-o Deus, senhor!

HORACIO

Igualmente a ti!

PRIMEIRO MARINHEIRO

Fal-o-ha, se for da sua vontade. (Entrega uma carta) Aqui tem esta carta, é do embaixador que foi mandado a Inglaterra; o senhor, segundo me asseguraram, chama-se Horacio, não é verdade? (Dá-lhe outra carta.)

HORACIO (abrindo a carta, lendo)

«Horacio, quando receberes esta carta, proporciona a estes homens o fallarem ao rei; têem cartas para lhe entregar. Mal tinhamos dois dias de viagem, um corsario armado até aos dentes deu-nos caça; vendo nós que elle era mais veleiro, fizemos das fraquezas forças, e encetámos combate. Na abordagem, saltei-lhe na tolda, mas n'aquelle momento afastaram-se os dois navios, e eu achei-me só e prisioneiro. Comportaram-se commigo como corsarios humanos, mas sabiam o que faziam, porque contam pedir avultado resgate. Faze chegar ás mãos do rei a carta que lhe envio, depois vem ter commigo, com a celeridade que porias em evitar a morte. Tenho que confiar aos teus ouvidos palavras que te emudecerão de espanto, e comtudo ainda são fracas para a gravidade do assumpto que devem exprimir. Estes marinheiros te conduzirão ao sitio onde me acho. Rosencrantz e Guildenstern navegam para a Inglaterra. Tenho muito que te contar a esse respeito. Adeus. Aquelle que sabes ser teu do coração==Hamlet.» Venham, vou facilitar-lhes a entrega das cartas, depois conduzam-me o mais prompto que podérem junto d'aquelle que lh'as entregou. (Sáem todos.)

 

SCENA VII

Outro quarto no castello
Entram o REI e LAERTE
O REI

Devo estar illibado aos teus olhos, e deves ver em mim um amigo sincero, agora que já deves ter percebido que o assassino de teu pae tambem queria a minha morte.

LAERTE

Parece-me evidente! Mas diga-me porque, depois de actos tão graves e criminosos por sua natureza, não perseguiu o auctor, como era obrigado a fazel-o, por sua dignidade, pela sua salvação, pela sua prudencia, por tudo emfim?

O REI

Ah! por duas rasões, que provavelmente acharás sem valia, mas que a meus olhos têem toda a gravidade. A rainha sua mãe idolatra-o, é a existencia d'ella esse filho; eu por minha parte não sei se deva considerar isto como virtude ou como desgraça; mas ella está tão intimamente ligada á minha alma, qual satellite ao seu planeta, que só por ella e para ella vivo. O outro motivo que me impede de formular contra elle uma accusação publica, é a immensa affeição que o povo lhe consagra; affeição que desculpa todas as suas faltas, e similhante a essas fontes que transformam em pedra a madeira, converteria as suas cadeias em aureola de gloria. N'estas circumstancias, pois, as minhas frechas demasiado tenues para romperem tão forte vento, em vez de tocarem no alvo, voltando-se, feririam só o que as despediu.

LAERTE

Assim perdi meu nobre pae, e vejo minha estremecida irmã na mais desordenada demencia! Mas se é permittido elogiar o que já passou, ella excedia em perfeições as creaturas da sua idade, e não me hei de eu vingar?

O REI

Essa mágua não te perturbe o somno; não me julgues de um caracter tão pusillanime e estulto, que um perigo, que tanto me impressionou, seja por mim tratado de bagatella. Brevemente saberás ainda mais. Eu estremecia o teu pae; nós somos devéras amigos, agora deves acreditar que…

Entra um MENSAGEIRO
O REI

Que queres? que ha de novo?

O MENSAGEIRO

Senhor, cartas de Hamlet; esta para vossa magestade, est'outra para a rainha.

O REI

De Hamlet!! quem as trouxe?

O MENSAGEIRO

Disseram-me que uns marinheiros, eu não os vi. Estas cartas foram-me entregues por Claudio, que as recebeu do portador.

O REI (pegando na carta)

Ouvirás, Laerte, o seu conteúdo. (Ao mensageiro) Retira-te (o mensageiro sáe) (abre a carta e lê): «Alto e poderoso monarcha, depozeram-me em territorio vosso, nú; ámanhã solicitarei o comparecer na vossa presença, e então se me for permittido referir-vos-hei o que deu causa ao meu estranho e inesperado regresso.==Hamlet». Que significa isto? voltariam todos, será engano, será tudo falso?

LAERTE

Conhece a sua letra?

O REI

É a letra de Hamlet. , e n'um post-scriptum acrescenta . Poderás tu dizer-me o que tudo isto significa?

LAERTE

Nada sei responder; mas que venha. Sinto renascer a chamma no meu coração abatido, pensando que lhe poderei dizer cara a cara: Foste tu o assassino de meu pae.

O REI

Se assim é, Laerte, não póde nem poderia ser de outra maneira; queres tu seguir um meu conselho?

LAERTE

Sim, comtanto que não me aconselhe a paz.

O REI

Pois que faças pazes com o teu coração é que eu quero: se é verdade que regressou, o que indica que Hamlet recúa diante da viagem e renuncia a ella, suggerir-lhe-hei uma aventura, cujo plano está maduro no meu espirito, e em que não poderá deixar de succumbir, e sem que a sua morte possa ser attribuida a pessoa alguma intencionalmente; tanto que sua propria mãe limitar-se-ha a lastimar o occorrido, vendo só uma fatalidade.

LAERTE

Seguirei gostosamente os seus conselhos, e ainda de melhor vontade, se podér combinar de modo que eu seja o agente principal.

O REI

Vejo que os nossos desejos se combinam completamente. Frequentemente, desde as tuas viagens, têem-me gabado por excederes a todos no exercicio de uma arte. Todas as tuas qualidades reunidas excitaram em Hamlet menos ciumes do que esta só; é comtudo talvez a menos importante.

LAERTE

E qual é essa qualidade?

O REI

Um laço de fitas no chapéu da juventude, mas um enfeite necessario; porque não lhe fica menos bem um ornamento um pouco frivolo mesmo, do que convem á idade madura as vestes encorpadas e serias que lhe impõem a saude e a gravidade. Ha dois mezes esteve aqui um cavalleiro normando; tenho visto francezes e combatido com elles, e são devéras habeis, mas a habilidade d'esse homem parecia ter o poder da magia. Parecia arroscado á sella, e guiava o cavallo tão prodigiosamente, que pareciam um só e o mesmo animal intelligente. Excedeu tudo quanto se póde imaginar na arte de cavallaria e volteio, tão perfeita era a execução.

LAERTE

Um cavalleiro normando, disse?

O REI

Um normando.

LAERTE

Então era Lamond; não póde ser outro.

O REI

Elle mesmo.

LAERTE

Bem o conheço, é a phenix, a perola da sua patria.

O REI

Fallou de ti vantajosamente, fez os maiores elogios da tua pericia no manejo das armas, sobretudo da espada, declarando ser impossivel achar outro igual, e jurando que os jogadores de espada francezes perderam agilidade, posição e golpe de vista depois que comtigo se mediram. Estes elogios que elle te dispensava, de tal modo exasperaram o ciume de Hamlet, que anhelava só pelo teu regresso para comtigo combater, e transformaram o ciume em furia. Tirando pois partido d'estas circumstancias…

LAERTE

Que partido poderemos nós tirar?

O REI

Laerte, amavas tu realmente teu pae, ou não era a tua dor senão um simulacro, toda exterior e nada interior?

LAERTE

Porque esta pergunta?

O REI

Longe de mim o pensar que não amavas teu pae; mas a affeição é um sentimento que se gera em nós, e a experiencia de todos os dias nos faz ver que o tempo destempera a sua vivacidade e o seu ardor. Mesmo na chamma do amor ha ás vezes uma mancha que a amortece, e cousa alguma se conserva permanentemente bella, porque o bom, pelo crescimento degenera em plethora, e parece abafado pela demasiada nutrição. O que pretendemos fazer, devemos fazel-o na occasião propria, porque a vontade tambem muda; tantas são as suas mudanças, quantas as linguas, mãos e outros accessorios que se cruzam no seu caminho, e então a execução não é mais que um dever, cujo cumprimento, similhante aos demasiado frequentes suspiros, nos magôa, alliviando-nos. Mas entremos francamente na questão. Hamlet regressa. Que estás tu disposto a fazer, para te mostrares digno filho de teu pae, não com palavras, mas com obras?

LAERTE

Assassinal-o-ía mesmo no templo do Senhor.

O REI

Effectivamente o assassino não recúa perante o santuario, quando pretende saciar a vingança. Mas, querido Laerte, queres seguir o meu conselho? Encerra-te nos teus aposentos. Hamlet, regressando, saberá da tua estada n'estes logares; farei com que exaltem na sua presença os teus talentos, e que encareçam os elogios mais que os francezes o fizeram; por este meio seguir-se-hão um desafio e apostas sobre a pericia dos contendores. Elle que está desprevenido e é generoso e de nada desconfia, não examinará os floretes; de modo que, com alguma habilidade da tua parte, poderás escolher um florete sem botão, e por meio de uma bem dirigida estocada fazer-lhe pagar a morte de teu pae.

LAERTE

Como o rei disse, Laerte o fará; mesmo envenenarei a ponta do meu florete. Comprei a um empirico uma droga mortal. Por pouco que a ponta de um punhal esteja n'ella banhada, por leve que seja o ferimento, não ha balsamo precioso, embora composto dos mais energicos contravenenos, que possa salvar da morte inevitavel e rapida o ferido. Assim, prepararei a ponta do meu florete, para que mesmo leve arranhadura lhe seja fatal.

O REI

Tornaremos ao assumpto, e combinaremos o momento e maneira mais facil e favoravel para a sua execução. Se tivesse que falhar este nosso plano, mais valeria nada tentar. Mas é necessario que esta primeira combinação se firme n'uma segunda, que a substitua, no caso da arma se quebrar no primeiro encontro. Um momento… Vejamos. Faremos apostas importantes sobre a respectiva pericia de ambos. Quando, no calor do combate, estiverem afogueados e sedentos, para conseguir o intento não poupes o teu adversario, ataca-o com vigor. Hamlet, sem duvida, pedirá uma bebida; ser-lhe-ha então apresentada uma, de antemão preparada, e uma só gota bastará, se a tua espada te trahir, para conseguirmos o fim desejado. Mas silencio! Que rumor é este? (Entra a rainha.) Que ha de novo, querida Gertrudes?

A RAINHA

Accumulam-se as desgraças, e repetem-se com assustadora rapidez. Laerte, tua irmã suicidou-se, afogando-se.

LAERTE

Onde?

A RAINHA

Na margem da vizinha ribeira cresce um salgueiro, cuja prateada folhagem se reflecte nas aguas crystallinas. Tua irmã approximou-se d'aquelle sitio, sempre tecendo grinaldas de rainunculos, ortigas, malmequeres, e d'essas flores a que os nossos pastores dão um nome bem grosseiro, mas que as nossas castas donzellas denominam poeticamente dedo da morte. Quando procurava ornar com as suas innocentes grinaldas as argenteas frondes do salgueiro, oh! desgraça! descuidosa foi envolvida na corrente, cercada dos ornatos que lhe serviam como de corôa virginal. Algum tempo suspensa pelas vestes sobre a corrente, assimilhava-se á sereia, cantando incoherentes trechos, inconsciente do proprio risco, como se estivesse no seu nativo elemento. Mas tudo tem um fim, e em breve, sossobrando pelo peso das encharcadas vestes, cessou de cantar, e tornou-se cadaver levado pela corrente.

LAERTE

Oh! desgraçada! afogada!!

A RAINHA

Sim, Laerte!

LAERTE

Sequem-se as minhas lagrimas; já tiveste agua em demasia, infeliz Ophelia! Mas porque? Mais força tem a natureza do que a vontade; todos lhe devemos obediencia. Para que uma falsa vergonha? Rolem, pois pelas faces lagrimas santas, e arrebatem na sua corrente a minha ultima fraqueza. Adeus, senhor! As minhas palavras de fogo tornar-se-íam embravecido vulcão, se as lagrimas do coração o não apagassem. (Sáe.)

O REI

Sigâmol-o, Gertrudes. Quanto me custou a serenar a sua colera! Receio bem que estas novas desgraças lhe despertem em toda a sua plenitude a sanha da vingança. Sigâmol-o, pois.

Fim do acto quarto